"A verdade será sempre um escândalo". (In Adriano, M. Yourcenar)

"Quero imaginar sob que novos traços o despotismo poderia produzir-se no mundo... Depois de ter colhido em suas mãos poderosas cada indivíduo e de moldá-los a seu gosto, o soberno estende seus braços sobre toda a sociedade... Não quebra as vontades, mas as amolece, submete e dirige... Raramente força a agir, mas opõe-se sem cessar a que se aja; não destrói, impede que se nasça; não tiraniza, incomoda, oprime, extingue, abestalha e reduz enfim cada nação a não ser mais que um rebanho de animais tímidos, do qual o governo é o pastor. (...)
A imprensa é, por excelência, o instrumento democrático da liberdade."
Alexis de Tocqueville (1805-1859)



domingo, 30 de junho de 2013

"EPIDEMIA" DE MANIFESTAÇÕES TEM QUASE 1 PROTESTO POR HORA E ATINGE 353 CIDADES

Movimento ganhou força depois do dia 17, ao monopolizar o noticiário das grandes redes de TV, e auge foi no dia 20, em 150 cidades

No dia 6 de junho, os jornais de São Paulo ainda repercutiam mortes violentas em tentativas de assalto quando uma primeira manifestação de 150 jovens, aparentemente despretensiosa, aconteceu no centro da cidade, na hora do rush, rumo à Avenida Paulista.

Era o primeiro protesto do Movimento Passe Livre (MPL), que nos dias seguintes atrairia os holofotes da imprensa e se espalharia como "epidemia" pelo Brasil, contagiando rapidamente a população de diferentes cidades.

Manifestantes na Avenida Paulista,  em São Paulo, na quarta-feira, 26 - JF Diorio/AE
JF Diorio/AE
Manifestantes na Avenida Paulista, em São Paulo, na quarta-feira, 26
Até quinta-feira, a população saiu às ruas com cartazes para protestar em pelo menos 353 municípios, conforme levantamento feito pelo Estado em eventos no Facebook e em menções na imprensa regional.
Ao todo, houve pelo menos 490 protestos em três semanas (mais de 22 por dia). Já a Confederação Nacional dos Municípios (CNM), em pesquisa feita nas prefeituras, identificou protestos em 438 cidades.
 O papel das redes sociais (Twitter e Facebook) foi decisivo para a articulação dos discursos e para divulgar hora e local dos protestos. Mas a epidemia só ganhou força depois do dia 17, ao monopolizar o noticiário das grandes redes de televisão.
"Fazendo um paralelo com o casamento, esses eventos não têm causa única. O casal não termina porque a toalha foi deixada em cima da cama.
Essa toalha pode ser a gota d’água de brigas antigas. O mesmo ocorreu nos protestos, que explodiram por uma longa história de crises enfrentadas em silêncio", diz o professor de comunicação digital Luli Radfahrer (ECA-USP).
Avanço. Em São Paulo, os primeiros três protestos aconteceram em um intervalo de seis dias e não ultrapassaram os 10 mil manifestantes. Mesmo assim, já eram a principal história dos jornais.
No dia 13 de junho, outras dez cidades aderiram - capitais ou cidades médias, como Natal, Porto Alegre, Rio, Santos e Sorocaba. No dia 17, quando São Paulo parou, com 200 mil pessoas nas ruas, já eram 21 protestando.
O auge foi no dia 20, quando 150 municípios tiveram protestos. Pelo menos 1 milhão de brasileiros foram às passeatas, segundo dados das Polícias Militares de 75 cidades. Desde Belém, no Pará, até Santana do Livramento, na fronteira com o Uruguai. A menor cidade a se rebelar foi Figueirão (MS), que tem 2,9 mil habitantes.
O mote do transporte público foi o mais popular principalmente nas cidades que têm rede de ônibus. Mas os protestos também ganharam conotações regionais, especialmente nas cidades menores. Picos (PI), por exemplo, atraiu manifestantes contra os pistoleiros. Coxim (MS) protestou contra os buracos nas ruas e pediu a saída do secretário de obras.
"Foi uma revolta típica da pós-modernidade, aparentemente sem causa. Do ponto de vista político, contudo, a multiplicidade de causas tornou os protestos mais fortes justamente porque permite várias interpretações dos que vão se manifestar", diz o psicanalista Jorge Forbes.
Forbes enxerga, no entanto, um ponto em comum nas demandas. "Trata-se de uma sociedade civil renovada, mais informada e educada, que continua tendo de lidar com as instituições do século passado, anacrônicas, que não atendem mais os anseios da população."
Difícil leitura. Mesmo para aqueles que acompanham a história do movimento, a epidemia de protestos surpreendeu. O filósofo Pablo Ortellado, coautor do livro Estamos Vencendo! (Conrad), sobre os movimentos autonomistas no Brasil, ainda se esforça para entender o que aconteceu. "A resistência e a desobediência civil já eram discutidas desde Seattle, em 1999, nos movimentos antiglobalização. A novidade foi o Passe Livre, que passou a ter uma pauta clara, com um grupo de referência para negociar.
O governo foi acuado pelas passeatas e mudou sua decisão." As manifestações continuaram em menor quantidade depois da redução das tarifas, apesar de muitos protestos contra a Copa das Confederações.
30 de junho de 2013
Bruno Paes Manso e Rodrigo Burgarelli - O Estado de S. Paulo

DILMA TENTA SALVAR O QUE RESTA DE SEU GOVERNO MUDANDO O MINISTÉRIO

Planalto vê pior cenário; cresce pressão por reforma
 
 

O resultado da pesquisa Datafolha, indicando queda de 27 pontos na popularidade da presidente Dilma Rousseff, foi acima do pior cenário esperado pelo Palácio do Planalto, que previa um recuo máximo de 20 pontos.
 
Esta é a avaliação reservada de assessores presidenciais. Para eles, a forte queda aumenta a pressão por uma reforma ministerial.
 
Segundo a Folha apurou, apesar das resistências da presidente, a maior pressão é por uma mudança na área econômica. O ministro Guido Mantega (Fazenda) tem sido alvo de críticas do mercado e dentro do próprio governo.
 
Em público, o Palácio do Planalto acionou ministros para relativizar a queda, atribuindo o recuo a algo "natural" e que atinge a "todos" os governantes devido às manifestações no país.
 
"Em momentos como este, de manifestações e protestos, é natural que os governantes tenham queda de aprovação. Isso deve ter acontecido com todos os outros governantes, principalmente chefes de Executivo", afirmou a ministra Gleisi Hoffmann (Casa Civil).
 
"A presidente, por ser uma pessoa que se expõe muito e tem muita visibilidade, acaba respondendo por problemas que muitas vezes não são de sua responsabilidade. Avaliamos que isso é reflexo da conjuntura", disse.
 
José Eduardo Cardozo (Justiça) afirmou que "todos os governantes serão atingidos". Segundo ele, a presidente pode ser mais afetada por ser "autoridade máxima do país e porque tinha um altíssimo grau de aprovação".
 
Gleisi Hoffmann afirmou também que o "mais importante são as respostas que a presidente está dando a esse momento, como a proposta do plebiscito sobre reforma política, que foi bem recebida pela população".
 
Ontem, a presidente passou o dia no Palácio da Alvorada em reuniões.
 
O presidente do PT, Rui Falcão, disse que Dilma tem índices superiores aos piores momentos registrados nos governos Lula e FHC. "A economia vai melhorar no segundo semestre e isso vai ensejar uma recuperação."
 
Para o líder do governo na Câmara, Arlindo Chinaglia (PT-SP), a queda não pode ser ignorada. Ele acredita que o momento é de "questionamento generalizado".
 
"A presidente relatou na quinta-feira que todos estão satisfeitos da porta para dentro de casa; mas, da porta para fora, a situação piorou."
 
O líder do PMDB na Câmara, Eduardo Cunha (RJ), diz que "se há a percepção de que a economia piorou, então é, sim, um foco de insatisfação com o governo federal".
 
Desafeto de Dilma, Cunha evita falar em reflexos eleitorais. "É prematuro falar em 2014. Estamos saindo vivos de uma batida de trânsito. Resta saber se conseguiremos sair vivos do hospital."
 
30 de junho de 2013
Folha de São Paulo
 (VALDO CRUZ, MÁRCIO FALCÃO E TAI NALON)
 

"INFELIZ E NÃO SABIA"

Forte queda da popularidade de Dilma Rousseff mostra que insatisfação extrapolou questões específicas e voltou-se contra o sistema político
 
Assume proporções dramáticas a queda de popularidade experimentada pela presidente Dilma Rousseff, na esteira das manifestações que tomaram o país nas últimas semanas.
 
Conforme registra o Datafolha, passou de 57% para 30% o percentual dos que consideram "ótimo" ou "bom" o desempenho de seu governo. De 6 e 7 de junho, datas do levantamento anterior, até agora, cresceu de 9% para 25% a proporção dos que o consideram "ruim" ou "péssimo".
 
Sem dúvida, o empuxo do mergulho se deve a uma situação conjuntural, com o componente de passionalismo indissociável das grandes manifestações de massa.
 
Não deixa de ser irônico, à primeira vista, que o governo federal seja atingido tão duramente, quando foram, ao menos no início, os governos municipais e estaduais os principais alvos dos protestos --contra aumentos de tarifas de transporte e a truculência policial.
 
Evidentemente, tampouco governadores e prefeitos se podem considerar a salvo dessa brusca reversão de popularidade.
 
Confirma-se, entretanto, que a insatisfação das ruas voltou-se também contra a política nacional, e não apenas contra problemas urbanos específicos. Ainda que não pesem contra Dilma Rousseff quaisquer acusações de improbidade, a presidente paga o preço por um sistema corrupto e desmoralizado, a que não teve meios ou energia para se contrapor.
 
Outros fatores devem ser levados em conta, de todo modo, nessa inflexão estatística brutal.
 
"Eu era feliz e não sabia": utiliza-se com frequência, e nem sempre com razão, essa frase feita. Com as manifestações das últimas semanas, parece estar-se generalizando a sensação inversa.
 
"Eu estava infeliz e não sabia" talvez possa ser o lema adotado por muitos dos que, até há pouco, concediam ao governo federal altos índices de aprovação.
 
Não que inexistissem, como se sabe, fatores a diminuí-los mais recentemente, como o baixo crescimento econômico, a demora nas obras de infraestrutura e os sinais de aceleração inflacionária.
 
Seja como for, a letargia do Planalto talvez contaminasse a própria atitude dos entrevistados em pesquisas desse tipo. Na ausência de maiores perspectivas de mudança e de reforma, era razoável contentar-se com o que havia.
 
Repentinamente, a insatisfação, que hibernava, amanheceu com apetite. Exitosos na reivindicação das tarifas, os manifestantes não se limitaram à questão. E os governantes pagam um preço bem mais alto pela poltrona, até agora confortável, de onde dirigem --ou não-- os destinos do país.
 
30 de junho de 2013
Editorial da Folha
 

"DILMA EM CHAMAS"

O Datafolha confirma para o leitor/eleitor o que oposições, Planalto e Lula já sabiam: a popularidade de Dilma esfarela e a reeleição vai para o beleléu. Uma queda de 27 pontos pode ser mortal.
 
Não foi por falta de aviso. Dilma entrou mal em 2013, autoconfiante com os recordes nas pesquisas, surda para o baixo crescimento com inflação alta, muda para os políticos e estridente com os auxiliares.
 
A popularidade já tinha despencado oito pontos antes mesmo das manifestações, pela falta de comando político e de rumo na economia. A explosão social fechou o cerco.
 
E não houve má vontade da mídia, tão demonizada no poder. Telejornais e jornais resistiram a admitir que a crise batia à porta da presidente, mesmo com o Planalto cercado na quinta-feira aguda. Não foi só o Exército que protegeu Dilma...
 
Mas o presidencialismo brasileiro é muito concentrador, e os louros e as culpas de tudo e qualquer coisa são sempre do (da) presidente. Dilma ainda pode se recuperar em parte, mas a abstrata reforma política não sensibiliza as massas e ela nunca mais será a mesma.
 
A perda de mais da metade da popularidade (8 mais 27) deixa o PT em pânico, desequilibra as peças no PMDB e mexe com os cálculos de toda ordem na complexa base aliada.
 
Do outro lado, reacende a candidatura Eduardo Campos, dá gás a Marina Silva e cria a sensação de "agora vai" na campanha de Aécio Neves, em que as atenções estão no PMDB, que tem faro para o poder.
 
Dilma ofendeu o vice Temer com a "barbeiragem" da constituinte exclusiva, bateu de frente com o deputado Eduardo Cunha, que manda na bancada, e não tem ideia do efeito arrastão que o PMDB pode ter nos outros partidos aliados.
 
Mas o mais devastador para Dilma é o efeito em Lula. Calado estava, calado continua. Soltou nota burocrática na sexta-feira e escafedeu-se para Lilongwe e Adis Abeba. Posto a salvo, enquanto Dilma vira cinzas.
 
30 de junho de 2013
Eliane Cantanhede, Folha de São Paulo

"SÓ SEI QUE NADA SABIA"

 
Opinião do eleitor vira do avesso e, na falta de política maior, procura alternativa ainda incógnita
 
FAZ MENOS de três semanas, 6 de cada 10 brasileiros diziam que o governo de Dilma Rousseff era bom ou ótimo. Uns 60% do país, mostrava o Datafolha. Mas o rio de protestos que passou na vida da presidente reduziu a simpatia pela metade: o governo é ótimo/bom para apenas 30% dos brasileiros, quase tantos quantos o consideram ruim/péssimo (25%).
 
Dilma era lembrada espontaneamente como candidata preferida a presidente para 35%; agora, por menos da metade disso. A maioria quer nome novo ou não sabe o que quer.
 
"Ninguém está entendendo nada" tornou-se um clichê desta temporada de revolta. Trata-se de antes de mais nada de presunção travestida de modéstia e maravilha diante das razões ocultas ou ignoradas do povo, por assim dizer. Pressupõe que antes a gente estivesse "entendendo tudo", ou alguma coisa, ou que pelo menos ligasse a mínima para a política ou problemas sociais.
 
Mais importante que a pose de despretensão, porém, é a possibilidade de que, de fato e literalmente, ninguém estivesse entendendo nada, nem a si mesmo. A julgar por pesquisas de opinião, muitos brasileiros talvez tenham descoberto algo faz duas ou três semanas ou deixaram de fingir a dor que deveras sentiam.
 
Mesmo agora parece existir uma espécie de disjunção analítica na população, vamos dizer assim. Em pesquisas feitas pelo Ibope na semana retrasada durante protestos em oito grandes cidades, 71% dos manifestantes se diziam satisfeitos ou muito satisfeitos com a sua vida. Metade, pelo menos, estava otimista com o futuro do país ou o seu próprio, de acordo com várias pesquisas.
 
Sim, o prestígio de Dilma vinha caindo, desbastado principalmente pela alta do custo da comida. Sim, as pesquisas não contavam com perguntas sobre a satisfação com a política ou com detalhes enormes da vida cotidiana. Mas, talvez, caso tivessem se dedicado a investigar tais coisas, pode bem ser que não tivessem descoberto nada. Por quê?
 
Talvez porque os brasileiros, na maioria ou na média, talvez ainda não tivessem pensado nisso. Talvez porque tenham sido provocados a pensar no assunto quando viram uma manifestação simpática (ônibus barato), conduzida por jovens, ser espancada pela tropa do Estado ("coisa do governo"). Talvez porque muitos brasileiros (em especial os menos pobres) dissociem melhorias da vida que aparecem via mercado (ou algo assim, emprego) da vida ruim que relacionam a "coisas da política" (serviços públicos ruins, "político ladrão" etc). Note-se que os mais pobres e com menos anos de escola ainda são os mais simpáticos ao governo Dilma.
 
Por ora, o povo continua a demonstrar sua ira com as coisas da política. Mas ainda não há política nisso. O protesto segue perigosamente despolitizado.
 
 
"SÓ QUE NÃO"
 
"Claro que eu vou me destruir. Sozinho é ridículo, a gente não pode fazer nada. Meu negócio era o poder. Quando a gente não pode fazer nada, a gente avacalha. Avacalha e se esculhamba. Pra mim, a revolução era o terror, mas não é mais. A terceira guerra começou, e ninguém tá dando bola!"
 
Jorge, "O Bandido da Luz Vermelha", filme de Rogério Sganzerla, de 1968.
 
30 de junho de 2013
Vinícius Torres Freire, Folha de São Paulo

"E O REAL FOI PARA AS RUAS..."


O real se tornou a moeda nacional há 19 anos, quando a inflação beirava 50% mensais, mas não havia ninguém nas ruas. Durante os 15 anos anteriores, quando a inflação acumulou 20.759.903.275.651% (vinte trilhões e troco), o brasileiro produziu grandes manifestações em raras ocasiões: para pedir eleições diretas, e depois para derrubar o primeiro presidente que elegeu nesse formato. A hiperinflação, a maior desgraça econômica que o País já viveu (exceto pela escravidão), não chegou a produzir mais que episódios isolados, seu efeito mais marcante e paradoxal foi o torpor.

Como foi possível que uma monstruosidade econômica desta grandeza não pusesse o País submerso em protestos e passeatas?
Talvez nunca seja possível responder com precisão. A hiperinflação foi um fenômeno gigantesco e incompreensível, inclusive por que faltava clareza quanto ao autor. Não havia uma causa, pois se dizia que a inflação de hoje era a de ontem, portanto, de "natureza inercial", e não tínhamos responsável. Contra quem protestar?

Na verdade, a própria inflação era o protesto, pois a experiência de quem viveu aqueles dias sombrios era sempre a do repasse, ou de "correr atrás" para recuperar poder de compra que se derretia. O custo de vida se elevava 1% ou 2% ao dia, era preciso passar adiante os aumentos, pois era um Tsunami, uma reação em cadeia, um conflito distributivo que nos impunha um comportamento nefasto, pois buscava-se "correr à frente" do processo, e assim nos tornávamos cúmplices do vício, ainda que em legítima defesa.

Conforme observou Elias Canetti, numa passagem famosa do livro Massa e Poder, a hiperinflação pode ser tomada como "um sabá de desvalorização no qual homens e unidade monetária confundem-se da maneira mais estranha. Um representa o outro; o homem sente-se tão mal quanto o dinheiro, que segue cada vez pior; juntos, todos se encontram à mercê desse dinheiro ruim e, juntos, sentem-se igualmente desprovidos de valor".

A hiperinflação era, portanto, um fenômeno depressivo, um exercício cotidiano de queimar a própria bandeira, uma destruição de valores de forma ampla, o suicídio de um símbolo nacional, uma ferida ética. O sentimento de culpa talvez explique, em parte ao menos, o desinteresse na busca de responsáveis. A vilania jamais era associada aos líderes políticos que ordenaram a gastança, as pirâmides e estádios, as transposições, as emendas orçamentárias e a generosidade nos bancos oficiais. Nenhum desses farsantes jamais defendeu a inflação diretamente: apenas atacavam quem queria combater a inflação a sério, os miseráveis neoliberais ortodoxos a serviço do FMI e da globalização.

A imprensa jamais conseguiu produzir um rosto, um vilão, quando muito um ministro que naufragou com um plano de estabilização, e o Ministério Público nunca conseguiu processar ninguém por produzir inflação. Nenhuma CPI funcionou com esses termos de referência. Foi o crime perfeito.


Pois agora, passados 19 anos, ao invés de festejar a monotonia da estabilidade, a ocasião serve para o registro que muitos desses personagens estão de volta. Parece novamente recomposta a mesma coalizão inflacionária da "Nova República", movida pelo "tudo pelo social", ou pela promessa de inclusão social, ou de conquistas, a qualquer custo, e também por projetos megalomaníacos e pela descrença em limites fiscais, tudo isso resultando em um "hiperinflacionamento de desejos" no orçamento ou nos bancos oficiais, bem além das possibilidades dadas pela disposição da sociedade em pagar impostos.


Esta é a matriz da hiperinflação, cujo desenrolar invariavelmente compreende a descoberta da capacidade de administrar "politicamente" a realização de desejos incorporando seletivamente grupos beneficiados na coalizão governista numa espécie de clientelismo de massa. Em seguida, para que o processo ganhe escala, é preciso capturar o Banco Central, a fim de adquirir o controle sobre o crédito e sobre a fabricação de papel pintado, mágica que pode ser compartilhada com os Estados, cada qual com o seu banco emissor e sem limites quanto à capacidade de se endividar.


Agora, todavia, esses canais monetários e creditícios estão bloqueados, embora com alguns vazamentos. A inconsistência entre o inflacionismo da política fiscal e as barreiras institucionais à inflação, notadamente na forma das metas de inflação e dos impedimentos ao endividamento dos Estados (Lei de Responsabilidade Fiscal e outros acordos de reestruturação de dívidas), nunca foi tão aguda, parecendo configurar um quadro de inflação reprimida. O sistema político se vê pressionado a fazer escolhas, as tensões vão se multiplicando, e também o intervencionismo, pois o Estado tenciona ser maior que a Sociedade.


Diante dessas limitações, o governo precisa racionar a realização dos desejos que inflou, e para tanto parece ter criado uma espécie de feira de favorecimentos e seletividades, fiscais e regulatórias, guiadas por idiossincrasias, amizades, preferências e por clientelismo. A Casa prevalece sobre a Rua, como diria Roberto da Matta, não há impessoalidade nos atos da administração, tudo tem o seu destinatário, aos amigos tudo, aos outros a horizontalidade do mercado e a hostilidade dos reguladores. Instala-se o primado da malandragem, o investimento em lobby toma o lugar daqueles que se destinam à produção e à competitividade, o país do futebol se torna propriedade dos cartolas e a Rua se levanta.


Soa familiar? Não é parecido com as reclamações que se ouve nas ruas?
É surpreendente e alvissareiro que a sociedade exiba uma capacidade antes inexistente de perceber a vilania dos velhos mecanismos de socialização dos custos de estádios de futebol ou do apoio aos "campeões nacionais". A imprensa não tem dificuldade em identificar os enredos e beneficiários, bem como as fórmulas de ocultação e os truques contábeis e manipulações. A irritação se torna cotidiana e crescente. Ninguém quer pagar as contas que não lhe pertencem, as escolhas do governo são equivocadas e provocam indignação: se há dinheiro para o Itaquerão e para o trem-bala, como as escolas, hospitais e ônibus podem ser tão ruins?

O "sistema político" tem muitos defeitos, mas o problema aqui tem muito mais que ver com a liderança e há uma eleição logo à frente. No mundo plano da globalização e das redes sociais, seria normal que a aversão a esse pseudo-capitalismo de quadrilhas trouxesse para o centro da política o desejo de horizontalidade, transparência, responsabilidade fiscal, probidade, meritocracia e impessoalidade nas regras do jogo econômico. Era disso que se tratava o Plano Real, sobretudo no seu capítulo sobre reformas. Mas o que estamos vendo nos últimos anos é muito diferente. É compreensível a irritação dessa maioria silenciosa com a epidemia de "seletividade", privilégio e compadrio, que se sabe serem o berço da corrupção. Surpreendente mesmo não é o protesto e seus temas, mas o timing e a faísca que o determinou.

30 de junho de 2013
Gustavo Franco

"A VEZ DO POVO DESORGANIZADO"

 
Os políticos se tornaram uma casta que se apropriou da máquina do Estado em seu próprio benefício
 
As manifestações de protesto ocorridas nas últimas semanas em numerosas cidades brasileiras são, sem sombra de dúvida, um fenômeno novo na vida política do país, nos últimos 20 anos.
 
Causou surpresa a muita gente --inclusive a mim-- que o aumento de R$ 0,20 nas tarifas de transporte urbano tenha provocado tamanha revolta e mobilizado tanta gente.
 
É que essas manifestações traziam consigo outras motivações que não se revelaram no primeiro momento. Logo pôde-se ver que o aumento das tarifas foi apenas o detonador de um descontentamento maior que põe em questão o próprio sistema político que nos governa.
 
Ouvi e li opiniões segundo as quais trata-se de um fenômeno internacional, uma vez que, em vários países, protestos populares têm se repetido com frequência. Trata-se, creio eu, de uma opinião equivocada, já que as razões desses protestos são diferentes de país para país. O que há de comum neles é a influência das redes sociais, que possibilitam mobilizações em tal escala.
 
No caso do Brasil, por exemplo, está evidente que a revolta é contra os políticos em geral, sejam de que partidos forem, pertençam ao governo ou à oposição. Isso se tornou evidente em diversos momentos quando militantes deste ou daquele partido tentaram se manifestar: foram vaiados e até espancados. Foi o caso do PT que, oportunista como sempre, tentou tirar vantagem da situação e se deu mal.
 
Mas de onde vem esse horror aos políticos? A resposta é óbvia: eles se tornaram uma casta que se apropriou da máquina do Estado em seu próprio benefício.
 
Essa máquina, que é mantida com o dinheiro de impostos escorchantes, eles usam para empregar seus parentes e companheiros de partido, para enriquecer a si e a seus familiares, manipulando licitações e contratos de obras públicas --e usam isso, sobretudo, para se manter no poder.
 
Essa situação tornou-se particularmente insuportável depois que Lula assumiu o governo e pôs em prática uma política populista que veio agravar ainda mais aqueles fatores negativos da vida política brasileira. Quem nele acreditava viu, decepcionado, que ele ignorou os compromissos éticos assumidos e aliou-se a figuras como Maluf e o bispo Macedo --sem falar na compra, com dinheiro público, de partidos corruptos.
 
Essa aliança, com o submundo político, de um líder que surgiu como uma esperança de renovação, só poderia conduzir as pessoas em geral --e particularmente os que confiaram nele-- à desesperança total quanto ao futuro da nação.
 
O mais grave é que, somando-se isso à política assistencialista que adotou, tornou-se eleitoralmente imbatível. Assim, sem outra saída, os inconformados foram para as ruas. Nessa rejeição ao poder constituído e aos políticos em geral, o povo descontente pode não saber ainda por onde vai, mas sabe por onde não vai.
 
Não por acaso, a maioria desses manifestantes é de classe média. Não foram os pobres dos subúrbios que vieram para as ruas protestar, pois recebem Bolsa Família e melhoraram de vida. Quem está insatisfeita e revoltada é a parte da sociedade que só perdeu com o populismo lulista, uma vez que o dinheiro público, em lugar de ser investido em hospitais, escolas e serviços públicos, foi e é usado em programas assistencialistas e demagógicos.
 
Por outro lado, o lulismo cooptou as entidades representativas dos trabalhadores e dos estudantes (a CUT e a UNE), que, contrariamente a suas origens e à sua história, agora impedem manifestações contrárias ao governo. Desse modo, tanto os trabalhadores quanto os estudantes não têm quem os represente na luta por suas reivindicações.
 
Por isso, meses atrás, afirmei nesta coluna que a única solução possível seria o povo desorganizado ir para as ruas, já que não conta com as organizações que deveriam representá-lo. É o que acontece agora: o povo desorganizado está nas ruas. Desmascarada, a CUT tentou juntar-se aos manifestantes, mas foi repelida por eles.
 
Sem alternativa, a presidente Dilma promoveu uma reunião com governadores e prefeitos para aparecer como porta-voz dos inconformados, e propôs medidas que não se sabe quando nem se serão mesmo postas em prática.
 
30 de junho de 2013
Ferreira Gullar

"A MISÉRIA DO NACIONAL-ESTATISMO"

É preciso aprender com a História, inclusive a recente. Duas das experiências internacionais enaltecidas pelo nacional-estatismo brasileiro ao longo da última década enveredam por caminhos cada vez mais sombrios. Falo da Rússia e da Argentina.

O elogio partia de uma premissa verdadeira - sim, os governos de Boris Yeltsin e Carlos Menem terminaram em desastre, num misto de "fundamentalismo de mercado" com "capitalismo de compadrio" - para chegar à conclusão falsa de que nos governos de Vladimir Putin e do casal Kirchner, respectivamente, se estavam erguendo boas alternativas ao capitalismo liberal.
Os descaminhos a que esses países estão sendo conduzidos eram relativamente previsíveis. Não, porém, para aqueles que encontram refúgio na idealização do nacionalismo e do "Estado forte". Na sua versão mais autoritária, o nacional-estatismo produz uma dupla distorção. A nação, no lugar de ser entendida como expressão plural e soberana de seus cidadãos, é reduzida à vontade do Estado, instrumentalizada por grupos que controlam o governo.
Assim, o nacionalismo converte-se em ideologia para excluir os opositores como antipatriotas, ao passo que o Estado deixa de zelar pela esfera pública para se transformar em ferramenta de poder dos ocupantes circunstanciais do governo.
Em seu afã de crítica ao capitalismo liberal, o "desenvolvimentismo" brasileiro não raro se deixa cegar pela fascinação nacional-estatista. Dessa maneira, confunde-se a justa crítica ao "fundamentalismo de mercado" com o rechaço em bloco ao liberalismo político e econômico clássico, base necessária, embora não suficiente, do pensamento e da experiência democrática contemporânea.
Na Rússia, onde Putin se elegeu pela segunda vez para a Presidência, depois de um intervalo de quatro anos como primeiro-ministro, o nacionalismo laico juntou-se ao tradicionalismo religioso para sufocar os espaços de autonomia e contestação da sociedade civil russa. A santa aliança entre o Kremlin e a Igreja Ortodoxa promove ataque sistemático às liberdades civis no país.
O mais recente é o projeto de lei - indisfarçavelmente homofóbico - que define como crime a promoção de "relações amorosas não tradicionais" entre crianças e jovens. Sua aprovação é tida como líquida e certa, pois o Partido Rússia Unida, de Putin, conta com maioria parlamentar, resultante de eleições consideradas fraudulentas. A iniciativa surge na sequência do processo que levou à prisão as integrantes da banda Pussy Riot, acusadas de desrespeito a símbolos patrióticos e eclesiais.
A liberdade de imprensa é outra das maiores vítimas. As seis principais cadeias de televisão estão em mãos do governo ou de seus prepostos. Avolumam-se os processos contra jornalistas e veículos da mídia independente, que não encontram num Poder Judiciário garroteado proteção contra as arbitrariedades oficiais. Para a criminalização recorrente de indivíduos e organizações da sociedade civil o governo acusa-os de "agentes de potências externas e interesses estrangeiros".
O núcleo de poder no governo de Putin é formado pelo serviço de inteligência e por uma nova geração de oligarcas que substitui a que emergiu com as privatizações "selvagens" de Boris Yeltsin. Putin livrou-se daquela oligarquia encarcerando ou forçando ao exílio os seus membros mais recalcitrantes. Não o fez para sanear o país, mas para se apropriar de suas empresas e abrir espaço para uma nova burguesia, desta vez umbilicalmente ligada ao Estado e ao seu poder pessoal.
A recuperação da economia, favorecida pelos preços altos do petróleo e do gás natural nos mercados internacionais, e a retomada do orgulho nacional ferido pelo colapso da União Soviética e pelos anos caóticos de Boris Yeltsin asseguraram a Putin, até recentemente, elevada popularidade.
O quadro, porém, está mudando. Com a desaceleração do crescimento, a explosão das desigualdades sociais, a inconformidade social cada vez maior com os privilégios e a corrupção que campeiam na nova burguesia estatal, a conservação do status quo passa a depender de doses crescentes de repressão política e fraude eleitoral, preço que Putin parece disposto a pagar para se manter no poder.
Mutatis mutandis, também na Argentina a manipulação do nacionalismo vem sendo utilizada intensamente pelos governos Kirchner para permitir que um grupo político se apodere do Estado e para justificar um ataque sistemático e deliberado não apenas às oposições, mas a quaisquer instituições que ousem pôr freio nos desígnios e propósitos oficiais. Claro, na Argentina a manipulação nacionalista tem marcas diferentes das características que assume na Rússia. Na primeira, apela à raiz popular do peronismo.
Na segunda, à nostalgia de um passado imperial e ao sentimento presente de uma potência militar acossada. Mas há um traço comum: tanto lá como cá, a ideologia nacional-estatista é empregada para justificar a apropriação do Estado por grupos políticos determinados, o manejo discricionário das políticas e das instituições públicas e a asfixia da sociedade civil e das oposições.
A não compreensão das afinidades eletivas entre dirigismo estatal, manipulação nacionalista e autoritarismo - comprovadas pela frequência histórica com que esses três fenômenos surgem associados, reforçando-se mutuamente - explica por que certa corrente crítica ao capitalismo liberal namora o pensamento antidemocrático, quando não se acasala integralmente com ele.
Num nível mais concreto, ajuda a entender também por que expoentes do "desenvolvimentismo" brasileiro - como Luiz Carlos Bresser-Pereira, a quem sobram credenciais democráticas - se tenham deixado seduzir pelos governos de Vladimir Putin e Cristina Kirchner, ensaiando só agora crítica tardia e insuficiente.
30 de junho de 2013
 Sérgio Fausto, O Estado de São Paulo

PROPOSTAS PODEM CUSTAR R$ 50,8 BILHÕES AOS COFRES DA UNIÃO

Demanda por verba para Saúde e isenção de tributos, como os de Transporte, explodem despesas
 
O Palácio do Planalto acionou o sinal de alerta sobre “a conta das ruas” para os cofres públicos. Além dos projetos de moralização, como tornar corrupção crime hediondo, o Congresso ampliou o leque de propostas com mais recursos para Educação e Saúde, que podem causar novo rombo no Tesouro.
 
O governo Dilma Rousseff poderá ter que enfrentar uma despesa extra de R$ 50,8 bilhões caso três propostas, em fase adiantada de análise, sejam aprovadas.
 
A maior obriga a União a destinar 10% da Receita Corrente Bruta à Saúde, o que significaria de R$ 35,5 bilhões a R$ 40 bilhões a mais no Orçamento Geral da União.
Essa bandeira foi resgatada, no calor das manifestações de rua da semana passada, pelo presidente do Senado, Renan Calheiros (PMDB-AL), que anunciou a antecipação da votação desse projeto como parte da resposta aos protestos, o que contrariou a presidente Dilma.
 
Em valores de 2013, a obrigação do governo seria investir R$ 118 bilhões em Saúde por ano, o que equivale a 10% de uma Receita Corrente Bruta de R$ 1,18 trilhão, já revisada depois do contingenciamento no Orçamento da União deste ano. Antes do corte, a Receita Corrente Bruta estava fixada em R$ 1,29 trilhão.
 
Como o gasto com Saúde em 2012 fechou em R$ 78 bilhões, a diferença seria de R$ 40 bilhões. Para 2013, o piso nacional de Saúde já está fixado em R$ 82 bilhões, que são os gastos mínimos no setor segundo o atual critério (que é aplicar o valor do Orçamento do ano anterior mais a variação do PIB de dois anos anteriores).
 
Há também impacto previsto de R$ 3,9 bilhões referente à isenção dos tributos federais PIS/Cofins sobre a comercialização do combustível para as empresas de transporte público — nesse caso, a presidente Dilma defendeu a desoneração para ajudar na redução do custo das tarifas de ônibus, desde que estados e municípios também façam desoneração.
 
Esse projeto foi aprovado na Comissão de Assuntos Econômicos (CAE) do Senado, mas depende de aprovação no plenário, e depois na Câmara.
Impacto de nova regra de distribuição
 
Outra conta que vai cair mais rapidamente no colo do governo Dilma foi aprovada semana passada no Congresso: o projeto — já levado à sanção presidencial — que estabeleceu novas regras para o rateio do Fundo de Participação dos Estados (FPE). No texto aprovado, foi incluída a obrigação de a União custear, sozinha, as desonerações que ela promove com Imposto de Renda e IPI (Imposto sobre Produtos Industrializados) — os dois tributos que o governo federal divide com os estados e municípios —, sem repartir a renúncia.
 
A valores de hoje, seriam mais R$ 6,9 bilhões (dinheiro que deixou de ser repassado a estados e municípios por causa das desonerações feitas no ano passado) com os quais a União teria que arcar sozinha.
 
No caso da maior conta, a da Saúde, a proposta foi prevista no parecer do senador Flexa Ribeiro (PSDB-PA) e aprovada na CAE, que modificou o texto aprovado na Câmara. O projeto aprovado pelos deputados foi anexado a outro do Senado, o que deve agilizar sua aprovação. O projeto dá quatro anos para o governo federal se adequar à obrigação de aplicar 10% da Receita Bruta na Saúde: a União pode diluir o novo gasto em quatro anos, com aplicação mínima de 25% em cada ano.
 
Ao anunciar a votação do projeto, Renan Calheiros disse que as novas despesas serão bancadas com recursos que virão dos royalties do petróleo. É que a Câmara já aprovou — e o Senado deve fazer o mesmo — a proposta de destinar 75% dos royalties à Educação e outros 25% à Saúde.
 
Mas o Planalto é contra a aprovação da proposta, e a equipe econômica está em polvorosa. A avaliação é que isso criaria mais uma obrigação ao governo e engessaria mais o Orçamento, reduzindo a parcela dos recursos públicos destinada a investimentos. Hoje, apenas 11,6% do Orçamento são despesas de livre gasto. O restante é de despesas obrigatórias. Publicamente, a presidente Dilma não vai ficar contra o discurso de mais recursos para Saúde e Educação.
 
— Isso bagunça o Orçamento inteiro — queixou-se uma fonte do governo.
Abordado sobre as preocupações do governo com a responsabilidade fiscal, Renan disse que essa também é a preocupação do Congresso:
 
— O governo está tendo preocupação com o ajuste fiscal, mas o Congresso vai apoiar o equilíbrio fiscal sempre. A Câmara deu alento à Saúde, destinando 25% dos royalties ao setor.
 
A pauta de respostas aos protestos das ruas tem ainda propostas de impactos bilionários a longo prazo. É o caso do Plano Nacional de Educação (PNE), que destina 10% do Produto Interno Bruto (PIB) ao setor e já foi aprovado na Câmara. Renan quer votar no Senado até agosto.
 
Em valores de 2013, isso daria um gasto de R$ 487 bilhões, pois o PIB está estimado em R$ 4,87 trilhões. Se fosse hoje, União, estados e municípios teriam que gastar R$ 171 bilhões a mais, pois o gasto em Educação nas três esferas é de cerca de R$ 266 bilhões, segundo dados do Inep de 2011.
 
O PNE prevê chegar a 10% do PIB em 2020, contra os 6,1% do PIB gastos atualmente, conforme o Inep. O plano é uma proposta do governo, mas o Planalto não concorda com os 10% incluídos no Congresso.
 
30 de junho de 2013
CRISTIANE JUNGBLUT - O Globo

"DEMOFOBIA EM MARCHA"

 

Norberto Bobbio, em artigo muito lúcido, mostra que a democracia surge dos choques entre a praça e o palácio. Ele cita Guicciardini:
"Entre o palácio e a praça existe uma densa névoa ou um muro tão grande que pouco sabe o povo sobre o que fazem os governantes e por que o fazem, como se o assunto dos dirigentes fosse algo feito na Índia".
Atualizando a reflexão, Bobbio adianta que ainda não contamos com uma eficaz sociologia da praça.
Manifestações de rua significam a multidão de pessoas indignadas com os palácios. A praça reúne muitos indivíduos, a sua forma aberta permite livres discussões. Quem para ela se dirige tem alvo comum: reivindicar direitos, ouvir líderes.
"Na democracia representativa (...) a praça é a mais visível consequência do direito de reunião ilimitado quanto ao número de pessoas que possam exercitá-lo juntas e ao mesmo tempo" (Bobbio).
Finaliza o pensador: "Palácio e praça são expressões polêmicas para designar, respectivamente, governantes e governados, sobretudo o seu relacionamento de incompreensão recíproca, estranheza, rivalidade, ainda hoje como no trecho de Guicciardini. (...) Vista do palácio a praça é o lugar da liberdade licenciosa; visto da praça o palácio é o lugar do poder arbitrário. Se cai a praça, o palácio também é destinado a cair" (Il Palazzo e la Piazza).
No ofício de analisar as formas de atuação coletiva, leio com frequência políticos, colegas da universidade, estudantes, sindicalistas, profissionais da imprensa. Fiquei preocupado com as visões da praça expressas em várias entrevistas e textos. O foco dado à baderna e ao vandalismo diminuiu muito a percepção do importante fenômeno.
Terra onde o Estado domina a sociedade e se põe a serviço de setores diminutos nas políticas públicas, o Brasil demonstra, desde sua origem histórica, a demofobia que preside o absolutismo. A certidão política de batismo vem do século 16, quando a razão de Estado está no auge.
Para os governantes e intelectuais que defendem a razão estatal, o mundo divide-se, como expõe Guicciardini, citado por Bobbio, entre quem merece respeito, porque vive nos palácios, e a plebe que habita a praça.
Tal assimetria estabelece uma divisão na ordem coletiva (acima os dirigentes, abaixo os "cidadãos comuns"). Ela é a marca dos Estados que ainda não conhecem os efeitos das revoluções democráticas. Neles a multidão dos que pagam impostos obedece sem questionar.
E quem controla os impostos manda sem prestar contas. A força democrática de um país é medida pelo vigor, nele, da prática cunhada pelos revolucionários ingleses, a accountability. As revoluções modernas ensinaram aos soberanos lições básicas de responsabilidade.
Os conservadores atacam os "simples cidadãos", neles vendo ameaças ao poder estabelecido. Eles exorcizam o "perigo" representado pela soberania popular. Sempre que o elo político é invocado, do Renascimento ao século 21, o povo, com seus conflitos, é posto fora dos escalões estatais porque, na lição platônica, ele segue o contrário da harmonia. François Hotmann, jurista e autor do tratado intitulado Franco Galia, teme o Her omnes (Senhor Todo Mundo), apelido dado por Lutero à massa.
Os documentos gerados na literatura grega ou romana mostram desconfiança no povo. Este, para os latinos, é o "populo exturbato ex profugo", o "vulgus credulum, imprudens vel impudens, stolidum", etc. (Zvi Yavetz: La Plèbe et le Prince).
"O povo", diz Etienne de la Boétie, "não tem meios para bem julgar porque é desprovido do que fornece ou confirma o bom juízo, as letras, os discursos e a experiência. Como não pode julgar, ele acredita nos outros. A multidão acredita mais nas pessoas do que nas coisas, ela é persuadida pela autoridade de quem fala, e não pelas razões ditas" (Mémoires touchant l'Édit de Janvier 1562).
Gabriel Naudé, teórico do maquiavelismo que norteia o governo de Mazarino, diz ser preciso cautela com a "fera de múltiplas cabeças, vagabunda, errante, louca, estulta, sem freio, sem espírito nem julgamento. O juízo do povo sempre é tolo e seu intelecto, fraco.A populaça, fera cruel, enfurece e morde com frequência. Ela odeia as coisas presentes, deseja as futuras, celebra as pretéritas, sendo inconstante, sediciosa, briguenta, famélica de boatos, inimiga do repouso e da tranquilidade". A massa, arremata, é "inferior às feras, pior do que as feras e mil vezes mais tola dos que as feras" (Considérations Politiques sur les Coups d'État).
Donoso Cortés, fonte de terríveis governos, não enxerga na pobreza a origem das massas revoltas. A inveja e o desejo de poder atravessam a praça, açulada pelos demagogos: "O germe revolucionário reside nos desejos superexcitados da multidão pelos tribunos que a exploram e beneficiam.
'Sereis como os ricos', vejam aí a fórmula das revoluções socialistas contra as classes médias.
'Sereis como os nobres', vejam aí a fórmula das revoluções das classes médias contra os nobres.
 'Sereis como os reis', vejam aí a fórmula das revoluções dos nobres contra os reis".
As manifestações que abalam o Brasil seriam expressões do ressentimento invejoso conduzido por ambiciosos e delirantes.
O juízo negativo sobre a praça gerou o Brasil de Vargas, de 1964 e do AI-5. A esquerda clássica ostenta idêntica ojeriza à rua. Basta recordar a doutrina leninista sobre a "consciência vinda de fora".
No Partido, máquina feita para derrubar o Estado burguês e construir a ditadura "proletária", intelectuais superiores definiriam o destino das massas. Caso contrário, Sibéria nelas.
É tempo de mudar a visão da praça. É tempo de saudar a democracia, apesar dos seus percalços. É tempo de recusar regimes plebiscitários que reduzem a praça ao monossilábico "sim", ou "não".
É tempo de iniciar o diálogo democrático. A etimologia e a semântica proclamam: democracia é poder do povo, não de privilegiados e palacianos operadores do poder estatal.
Se cair a praça, ensina Bobbio, tombam os palácios. E o remédio é oferecido por Donoso Cortés: a ditadura.
30 de junho de 2013
Roberto Romano, O Estado de São Paulo
 

QUEDA DE POPULARIDADE DE DILMA ZERA CORRIDA PELA SUCESSÃO PRESIDENCIAL

 

 
A queda vertiginosa nos índices de aprovação, que a devolveu ao patamar histórico de votação do PT antes da primeira eleição de Lula, - 30% -, marca o ingresso da presidente Dilma Rousseff numa etapa em que a meta passa a ser salvar o que resta de seu governo.
A reeleição, em pouco mais de 30 dias, deixou de ser uma certeza para transformar-se em meta improvável, segundo avaliações da sua própria base de sustentação.
Estimulante para qualquer candidato que parte do zero, o índice a que desceu a presidente é dramático para quem está no cargo e pretende a reeleição. Não autoriza sequer a previsão de chegada ao segundo turno, o que no seu caso, indica uma velocidade inédita na corrosão de um capital político que, há 60 dias, avalizava a vitória no primeiro turno.
O tempo também conspira contra a capacidade de reação da presidente, cuja consistência depende de movimentos ousados que a indisporiam ainda mais com sua base, onde o descontentamento, principalmente no PT, já virou fogo amigo.
Possibilidade de reação existe, mas poucos acreditam que a presidente a encare pela ruptura que significaria com sua base, sem garantias de êxito. Como reduzir à metade os ministérios, por exemplo.
Passa também pela mudança de rumos da economia, cuja crise atingiu o bolso do eleitor bem antes do que previra a otimista área de marketing que orienta as ações de seu governo.
Como se vê, não é pouco, considerando as circunstâncias políticas desfavoráveis. A pesquisa agora divulgada traz índices que o Planalto já conhecia de suas consultas e responde pelo movimento queremista no PT pelo retorno de Lula.
Esse movimento, que o ex-presidente sugere avalizar com seu silêncio público, se materializado, terá o efeito de liberar os aliados dos compromissos com a reeleição.
Para partidos como o PMDB e o PSD, uma coisa é Dilma, outra, Lula - a primeira sem qualquer historicidade no PT; o segundo, o próprio PT.
E resta ainda a aventura embutida no retorno do ex-presidente, que provavelmente já não ostenta os mesmos índices com que encerrou seus dois mandatos e, portanto, já não seria uma aposta incondicional.
Em outro cenário, bem mais remoto, o PT teria de admitir não concorrer com candidato próprio - e aí o nome mais palatável ao partido seria o inimigo da hora, o governador de Pernambuco, Eduardo Campos (PSB).
30 de junho de 2013
JOÃO BOSCO RABELLO - O Estado de S.Paulo

MANIFESTAÇÕES COLOCAM A NU A MONUMENTAL REALIZAÇÃO DE LULA E DO PT



"A política nas ruas"


As manifestações populares que tomaram as ruas nas últimas semanas, entre os resultados concretos que já produziram - como a redução das tarifas dos transportes - e outros que certamente ainda provocarão, colocam a nu a monumental realização de Lula e do PT em pouco mais de dez anos no poder: a debilitação, quase a anulação, do debate político em seu maior foro institucional, o Parlamento. 
Na falta de quem exprimisse seus anseios e necessidades mais prementes - captá-los e processá-los é função dos políticos, numa democracia representativa -, o cidadão saiu às ruas para dizer ele próprio o que pensa e o que quer do governo. É simples assim.
Menos mal, é claro, que vivemos num país em que o cidadão tem a liberdade de sair às ruas para se manifestar. Mas é muito ruim que seja forçado a esse exercício democrático porque se cansou de ver obstruídos os canais institucionais que, por definição, existem para representá-lo.
Esse gravíssimo sintoma do mau funcionamento do sistema democrático só pode ser debitado na conta de quem tem a responsabilidade de manejá-lo: o governo.
E o simples fato de o governo ter sido constrangido a vir a público para admitir que o coro das ruas tem razão e para anunciar providências emergenciais para atendê-lo leva à inescapável conclusão: se o governo tivesse tido a competência de fazer antes, no tempo certo, o que está tentando fazer agora, sob a pressão do clamor popular, os brasileiros estariam hoje celebrando em paz o país de sonho que o PT prometeu e não entregou.
O fato é que o lulopetismo, do alto de sua soberba, messiânico e populista, a partir de 2003 tomou enorme gosto pelo poder e passou a cultivar a obsessão de nele se perpetuar. Uma ambição até legítima, se sustentada de forma genuinamente democrática.
Mas está longe de ser democrático quem sustenta seu poder - para ficarmos apenas no caso do Congresso Nacional - por meio da subjugação das instituições, exatamente aquelas que têm a missão constitucional de representar os cidadãos (a Câmara dos Deputados) e as unidades federadas (o Senado Federal), além de fiscalizar os atos do Executivo.
Pois foi exatamente essa a tarefa a que, inicialmente sob o desastrado comando do mensaleiro José Dirceu, o PT se dedicou com afinco: transformar o Congresso Nacional num mero balcão de negócios, silenciando a discussão das grandes questões políticas do País com a generosa distribuição de toda sorte de vantagens pessoais, inclusive de nacos de poder. Afinal, para que debate, se os iluminados donos do poder sempre souberam perfeita e exatamente o que o povo quer?
É claro que, a partir do instante em que senadores e deputados se mostram incapazes e desinteressados de atuar em sintonia com o sentimento popular, se abre espaço para o clamor das ruas. Trata-se de reação saudável do ponto de vista da democracia, mas obviamente excepcional.
A necessária participação popular nos sistemas democráticos tem à sua disposição mecanismos e foros adequados, de organizações não governamentais e entidades associativas aos partidos políticos. Mas é nos Parlamentos que devem desaguar as aspirações populares.
Por essa razão é que, por meio da cooptação puramente fisiológica dos partidos no Congresso Nacional, o lulopetismo vinha tentando impor-se absoluto e incontrastável na missão de definir os rumos do País. Vinha - até que as ruas se tingiram de verde-amarelo e chamaram para si a definição da agenda política prioritária e aos atônitos governantes não restou senão correr atrás do prejuízo.
A teoria da separação e autonomia dos Poderes constitui o núcleo duro do sistema democrático de governo. Sua prática, entretanto, depende da competência com que os atores da cena política logram equilibrar o jogo de interesses conflitantes inevitável em qualquer tipo de convivência humana.
Aqui, lamentavelmente, o lulopetismo alterou em seu benefício o equilíbrio entre os Poderes da República ao impor o fisiologismo como moeda corrente da vida pública nacional. Despolitizou o Parlamento. O resultado está nas ruas.
30 de junho de 2013
Editorial de O Estado de São Paulo