"A verdade será sempre um escândalo". (In Adriano, M. Yourcenar)

"Quero imaginar sob que novos traços o despotismo poderia produzir-se no mundo... Depois de ter colhido em suas mãos poderosas cada indivíduo e de moldá-los a seu gosto, o soberno estende seus braços sobre toda a sociedade... Não quebra as vontades, mas as amolece, submete e dirige... Raramente força a agir, mas opõe-se sem cessar a que se aja; não destrói, impede que se nasça; não tiraniza, incomoda, oprime, extingue, abestalha e reduz enfim cada nação a não ser mais que um rebanho de animais tímidos, do qual o governo é o pastor. (...)
A imprensa é, por excelência, o instrumento democrático da liberdade."
Alexis de Tocqueville (1805-1859)



terça-feira, 4 de outubro de 2011

TIRAR DE COMER A QUEM TEM FOME


Seis governos - os da Alemanha, do Reino Unido, da Suécia, da Holanda, da Dinamarca e da República Checa - querem reduzir em 75 % o montante dedicado ao programa europeu de assistência alimentar aos mais carentes, e depois extingui-lo em 2013.

European family

No seu discurso sobre o estado da União, Durão Barroso fez uma declaração de amor incondicional à Europa. A sua Europa: uma União "de disciplina e solidariedade", uma União a caminho da "confiança e do crescimento".
A Europa de que falou é a que, vendendo ilusões, serve frias as decepções.

O que se passou nesse dia não poderia ser mais revelador. Horas depois, o Parlamento que escutara Barroso discutiu o programa europeu de assistência alimentar aos mais carentes.

Estamos a falar do principal recurso de sobrevivência para 19 milhões de pessoas. Seis governos - os da Alemanha, do Reino Unido, da Suécia, da Holanda, da Dinamarca e da República Checa - querem reduzir em 75 % o montante dedicado a este programa e extingui-lo em 2013.

Este apoio aos mais pobres entre os pobres tem custado a cada europeu exatamente um euro por ano ou, se se quiser, um quinto de cêntimo de euro por dia.
Reza a história que este bloqueio absurdo começou porque a França terá usado a sua parte nesta verba para comprar os bens alimentares diretamente aos seus agricultores, o que os outros governos, suportados num processo judicial que ainda decorre, consideram "concorrência desleal".

Por outras palavras: a Europa não se entende para colocar o programa alimentar em andamento, e quem paga são os pobres. É com murros destes no estômago que se afogam as ilusões sobre o estado da União.

Que se clarifiquem as irregularidades, nada contra; mas que este episódio seja usado para acabar com um dos raros fundos de uso social, é vergonhoso. Sabemos que a União tem problemas estruturais - os que estão a acentuar cada vez mais a divisão entre os países do norte e os do sul; mas também sabemos que a pobreza tem aumentado, que as desigualdades se multiplicam e que os mais pobres não podem ficar sem resposta.

Este programa usa os excedentes agrícolas em benefício de quem tem fome. É um bom programa e um programa bom. O seu bloqueio só é compreensível à luz de uma sociedade que é capaz de produzir excedentes, mas que não os quer usar decentemente.

Não deixa de ser sintomático que o discurso das ilusões tenha ocorrido no mesmo dia do debate sobre o programa alimentar.
Barroso falou da "Europa da disciplina orçamental". Essa existe mesmo. É a que insiste nas medidas de austeridade que aumentam a pobreza e as desigualdades.

E falou também da "Europa da solidariedade". Mas essa é a que vive no mundo das palavras e se dispensa de atos. Devia ser ao contrário, não é?

Artigo originalmente publicado no jornal As Beiras, de Portugal
2/10/2011
Marisa Matias é eurodeputada, dirigente do Bloco de Esquerda, socióloga.

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