Nosso mundinho está cheio de
madalenas arrependidas, que pecaram com gosto durante a juventude e querem
redimir-se em idade provecta. Em dezembro passado, Fernando Gabeira lançou
Onde está tudo aquilo agora?, onde canta seu “difuso desejo de
liberdade".
Segundo Gabriel Manzano, redator do Estadão, se O que é
isso, companheiro?, lançado há 33 anos, era um balanço de sua breve
militância na luta armada, constituída por um sequestro, uma prisão e um exílio,
este novo livro abre o olhar para cinco décadas de uma vida agitada, iniciada
ainda jovem em Juiz de Fora (MG) com "um difuso desejo de liberdade".
Atravessa
o jornalismo, a rebeldia, o exílio, a causa ecológica, o PT e o PV mais 16 anos
como deputado e candidato, para terminar com a pergunta do título.
No
Facebook já pipocam postagens louvando a honestidade do autor. Neste país sem
memória, é espantoso ver como velhas prostitutas se transformam em vestais da
noite para o dia, bastando para isso mentir com convicção. Eu também não li o
livro, mas tenho não poucas informações sobre o autor.
Fernando Gabeira,
velho bolche e ex-terrorista, ganhou uma aura de ilibada reputação após ter
renunciado a seus delírios de jovem. Mas a mim jamais convenceu. Gabeira, se
alguém não mais lembra, militava no movimento terrorista MR-8, que responsável
pelo seqüestro do embaixador americano Charles Elbrick, em 1969. É um dos
responsáveis pela sobrevida política dessa excrescência chamada José Dirceu.
Após o seqüestro, Gabeira foi fazer turismo ideológico em Cuba, foi depois para
o para o Chile e acabou caindo na social-democracia sueca, onde, ao que tudo
indica, tornou-se mais cordato.
Mas nada justifica seu passado. O
seqüestro do embaixador ocorreu no final dos anos 60. Gabeira era jornalista e,
por uma questão de ofício, pessoa bem informada. Ao aderir a um movimento
stalinista, já era grandinho suficientemente para ter plena consciência das
purgas de Stalin nos anos 30, dos gulags, da affaire Kravchenko, das denúncias
de Kruschov no XX Congresso do PCUS, em 1956. Se optou pelo terrorismo, não foi
por falta de informação.
Em 2008, ao ter notícias das bolsas-ditadura
recebidas por Ziraldo e Jaguar – isso sem falar nas milhares de outras – Gabeira
deitou verbo contra os dois vigaristas do Pasquim. Em 6 de maio do mesmo ano, a
Folha de São Paulo noticiava que seria julgado no dia seguinte,
pela tal de Comissão de Anistia do Ministério da Justiça um pedido seu para que
a União considerasse o tempo em que foi exilado, na época da ditadura militar,
para efeitos de aposentadoria.
Segundo o noticiário, de 2002 para cá,
quando foi sancionada a Lei de Anistia a perseguidos políticos, o governo
brasileiro autorizou o pagamento de R$ 2,4 bilhões em indenizações em 25.013
pedidos feitos à comissão, na época. A média das indenizações pagas em
prestações únicas era de R$ 59.004,46. As indenizações pagas em prestações
continuadas era de R$ 3.653,00. Quem paga tudo isto? Eu, você, nós
contribuintes, que nunca pegamos em armas para praticar
terrorismo.
Gabeira, entusiasmado com o dinheiro fácil das
bolsas-terrorismo, deixou cair a máscara de neoimpoluto e mostrou ao que vinha.
Afirmou não ter condições de demonstrar no que trabalhou. “Eu pedi para
contarem, para efeito de aposentadoria, os anos que passei no exílio. Foram nove
anos. Não tenho condições de demonstrar claramente que eu trabalhei. Os dois
jornais em que trabalhei, o Binômio e o Panfleto, foram
empastelados. O Diário da Noite e o Última Hora fecharam. Para
pedir aposentadoria, preciso disso”.
Gabeira, o impoluto, queria
indenização pelos dias bem vividos no paraíso social-democrata. Se a moda pega,
todo lavador de pratos que saiu do Brasil naqueles anos vai querer o seu. Por
outro lado, as novas gerações serão imbuídas da consciência de que investir em
terrorismo sempre garante uma velhice tranqüila. Como disse Millôr Fernandes. "A
luta armada não deu certo e eles agora pedem indenização? Então, eles não
estavam fazendo uma rebelião, mas um investimento".
Lula tem a fama de
ser o Teflon da política brasileira. Nele nada gruda, nem os escândalos que
avaliza, nem as bobagens que profere. Mas pelo menos recebeu a comenda por parte
da imprensa. Não é, no entanto, o único em quem nada gruda na política nacional.
Por mais alta que seja sua aprovação entre os eleitores, nunca conseguiu
erguer-se à condição de reserva moral da nação. Fernando Gabeira sim. Nenhuma
das besteiras que cometeu em sua vida – nem seu passado terrorista, nem seu
requerimento da bolsa-ditadura, nem as viagens de sua família com dinheiro do
contribuinte – gruda em seu nome. Pelo contrário, continua sendo visto como um
dos raros exemplos de honestidade no universo político tupiniquim.
Em 17
de julho de 2009, escrevia Fernando Gabeira na Folha de São Paulo:
“Há uma dezena de deputados dispostos a enfrentar o PMDB, aliados e a
combatividade da estrela vermelha. Aliás, voltei ao Salão Verde, pensando nela.
A estrela vermelha para mim não tem sentido. Eu a vi nos tanques sérvios que
atiravam nos civis e em nós, repórteres. Agarrados à estrela vermelha,
perpetraram crimes horrendos sob o título de limpeza étnica”.
Quem o lê,
pode até imaginar que o bravo deputado esteve algum dia nalgum front. Já contei
como foi a cobertura de Gabeira. Sinto-me obrigado a contar de
novo.
Guerra da Iugoslávia, 1991, nos dias de independência da Croácia.
Eu trabalhava na editoria de Internacional da Folha de S. Paulo.
Gabeira, nosso correspondente responsável pelo Leste europeu mandava suas
matérias de Berlim, que isso de cobrir guerras no front é muito arriscado. Por
volta das três horas da tarde, começava a enviar seus despachos, a partir do
noticiário dos jornais da manhã. Isto é, os jornais haviam sido redigidos ontem,
os fatos ocorridos anteontem e o leitor brasileiro os leria amanhã, com pelo
menos três dias de atraso. As agências noticiosas, mais ágeis, nos enviavam
notícias fresquinhas. A nós, redatores, cabia substituir o lead da reportagem
por material mais quente. Lá pelas cinco da tarde, o despacho enviado caíra para
o pé do texto. Quando o correspondente informava que os iugoslavos planejavam um
ataque, nós já tínhamos os alvos destruídos e os aviões de volta às bases.
A cobertura da guerra, em verdade, era feita da redação na Alameda Barão
de Limeira, em São Paulo. Que, de certa forma, estava mais próxima dos fatos que
o correspondente na Alemanha. O texto todo era redigido na redação. Começávamos
a atualizar a matéria pelo lead e Gabeira ia descendo rumo ao pé. Muitas vezes
não sobrava sequer uma linha do despacho original. Mas a matéria saía assinada
por Fernando Gabeira, "enviado especial".
Como era feita esta cobertura?
O redator recebia um punhado de despachos, que iam sendo renovados a toda hora
pelo boy que os retirava do telex. (Eram ainda os dias do telex). Havia matérias
quentes das agências, que tinham seus correspondentes no campo de batalha,
reportagens frias que davam o clima local, análises de especialistas e informes
sobre a repercussão dos fatos nas diferentes capitais do mundo. Cabia ao redator
juntar todos esses relatos e criar uma história coerente. Fossem os textos
assinados ou não, os fragmentos aproveitados pelo redator eram todos atribuídos
ao “correspondente de guerra”, comodamente instalado em Berlim.
A segunda
edição do jornal, a que circularia no dia seguinte apenas em São Paulo (na
cidade), era fechada lá pela 01h da manhã. Como os redatores da Internacional
eram ágeis, o leitor paulistano pelo menos tinha uma visão muito atualizada da
guerra, graças ao intrépido correspondente Fernando Gabeira. Ocorre que o texto
que chegava ao leitor não era de Gabeira. Era nosso.
Gabeira deveria
sentir-se muito surpreso se lesse sua matéria publicada, falando de fatos dos
quais ele, o suposto autor do texto, nunca ouvira falar. Mas nunca reclamou,
como seria de se esperar de um jornalista honesto.
Pelo jeito, de tanto
assinar artigos que não escrevia, acabou acreditando que esteve no front.
“Tanques sérvios que atiravam nos civis e em nós, repórteres”. Heróico, o
deputado! Pena que só viu tanques sérvios pela televisão. Vai ver que se sentiu
ameaçado em seu sofá, pelos canhões que avançavam na tela.
Em 19 de maio
de 2010, a Agência Estado noticiava que Gabeira, então candidato do PV ao
governo do Rio de Janeiro, reagiu com indignação às declarações feitas pela
ex-prefeita de São Paulo Marta Suplicy sobre a sua atuação no seqüestro do
embaixador norte-americano Charles Elbrick, em 1969. "Esse sim sequestrou",
disse a petista, afirmando que caberia à Gabeira a incumbência de matar o
embaixador.
A vestal do PV reagiu indignada: "Ela está equivocada, está
inventando coisas, está mentindo. Não havia escala para isso (para um
assassinato). Lamento que ela use esse tipo de coisa na campanha eleitoral. Até
porque tem muita gente dentro do PT que sabe bem dessa história",
afirmou.
Ao acusar Gabeira, Dona Marta respingou Franklin Martins, um dos
seqüestradores do embaixador, então ministro da Comunicação Social no governo do
PT – et pour cause. De Madri, o velho terrorista apressou-se a autorizar o outro
velho terrorista: "O Gabeira não foi escalado. Não tinha ninguém escalado para
matar. A participação do Gabeira era ser basicamente o responsável pela
casa."
Ora, se você seqüestra alguém isto significa que não vai
libertá-lo se não obtiver satisfação às suas exigências. E se o governo não
atendesse as reivindicações dos terroristas? Estes iriam devolver Elbrick
intacto à embaixada americana? Se assim fosse, para que seqüestrar então?
Seqüestro implica sempre uma ameaça de morte. Armas servem para matar. Que mais
não seja, ser responsável pela casa em que se guarda um seqüestrado é ser
cúmplice do seqüestro.
Gabeira disse então que não pretendia processar a
petista pelas declarações. "Vou ignorá-la. Como ela merece, de uns anos para
cá". Nem teria como processá-la. Por acaso Dona Marta disse alguma inverdade?
Houve um ar de indignação nos jornais, a afirmação de que a ex-prefeita
“apelou”. Apelou como? Quem não sabe que Gabeira teve um passado terrorista? Há
até quem fale em pós-dedo-durismo. São lindos os neologismos. Têm a virtude de
“enjoliver” uma realidade suja.
Gabeira, se alguém não lembra, é a
vestal que, como se nada tivesse a ver com as falcatruas do Senado, escreveu em
sua coluna na Folha de São Paulo, em julho de 2009: “Não se trata só de
um constrangimento ao ver o Senado definido como casa de horrores. Mas o de
conviver um grupo de homens idosos, movendo-se com uma desenvoltura criminosa,
unindo nos lábios do povo as palavras velho e safado, como se fossem gêmeas que
nascem ligadas. Tempo de tormentas”.
De sua militância comunista, Gabeira
não escapou ao velho vício stalinista, o de devolver qualquer acusação a quem o
acusa. Minha mãe, não. É a tua. Velho e safado, quer hoje negar seu passado como
terrorista.
Ainda não li o livro de Gabeira, disse. Mas da boca de quem
teve tal passado desonesto, não pode sair coisa que preste.
04 de janeiro de 2013
janer cristaldo