"A verdade será sempre um escândalo". (In Adriano, M. Yourcenar)

"Quero imaginar sob que novos traços o despotismo poderia produzir-se no mundo... Depois de ter colhido em suas mãos poderosas cada indivíduo e de moldá-los a seu gosto, o soberno estende seus braços sobre toda a sociedade... Não quebra as vontades, mas as amolece, submete e dirige... Raramente força a agir, mas opõe-se sem cessar a que se aja; não destrói, impede que se nasça; não tiraniza, incomoda, oprime, extingue, abestalha e reduz enfim cada nação a não ser mais que um rebanho de animais tímidos, do qual o governo é o pastor. (...)
A imprensa é, por excelência, o instrumento democrático da liberdade."
Alexis de Tocqueville (1805-1859)



sábado, 16 de março de 2013

A AGONIA DE MUSSOLINI



Pontífice de uma religião leiga
Os últimos dias e o legado de Mussolini
por BORIS FAUSTO
 

Nenhum ditador, dentre os que proliferaram no século XX, teve um fim tão rocambolesco quanto Mussolini. Seus últimos dias foram cercados de mistério, de muitas indagações e controvérsias, e atraíram o interesse de um importante historiador do fascismo, o francês Pierre Milza, autor de um livro que se lê como uma novela: Os Últimos Dias de Mussolini, que a editora Zahar lançará em junho.

Milza revela o nome de quem realmente comandou os partigiani – Luigi Longo, futuro secretário-geral do Partido Comunista Italiano, o PCI – e levanta questões até hoje sem resposta. Onde foi parar o tesouro em joias e dinheiro que os familiares de Mussolini, em fuga, pretendiam levar para o exterior? Nas mãos de alguns espertos milicianos antifascistas? Nas caixas do PCI? Mais ainda: onde teria ido parar o incômodo arquivo secreto que Mussolini carregava consigo, contendo supostamente uma longa correspondência entre o Duce e Churchill, por muito tempo simpatizante do líder do fascismo, a quem considerava um homem ideal para enquadrar o “temperamento caótico” dos peninsulares.

Nascido em 1883, em Predappio, uma pequena cidade da Emilia Romagna, no nordeste da península, o nome completo de Mussolini, à maneira italiana, era plural: Benito Amilcare Andrea Mussolini. Sua opção inicial pelo socialismo teve a ver com a região em que nasceu e viveu quando menino e adolescente, pois a Emilia Romagna já era considerada uma zona “vermelha” nos últimos anos do século XIX. Mais ainda, o pai do futuro Duce, Alessandro Mussolini, foi por um tempo ferreiro de profissão e, pela vida afora, ativo militante socialista.

Mussolini tinha pouco mais de 20 anos quando ingressou no Partido Socialista Italiano, o PSI. Sua ascensão na política foi rápida: tinha talento como orador e jornalista, além de boas relações com nomes importantes no campo da esquerda, como Giacinto Serrati e sua amiga Angelica Balabanova, que viria a ser dirigente da IIIaInternacional Comunista.
Ele os conhecera na Suíça, para onde emigrara no início do século XX. Nos anos anteriores à Primeira Guerra Mundial, Mussolini se ligou ao setor mais radical do PSI, que condenava as guerras, adotava uma agressiva postura anticlerical e, em nome da revolução, combatia o reformismo.

Antes de completar 30 anos, mudou-se da provinciana Forli para Milão, a brilhante capital do norte da Itália. Ali, o futuro Duce deu um passo decisivo na carreira política. Alcançou maior projeção e se tornou diretor do Avanti!, o jornal do partido. Mas logo sua carreira teve outra guinada.
O detonador da mudança de curso foi a eclosão da Primeira Guerra Mundial. Diante do conflito, os partidos socialistas europeus dividiram-se entre as correntes internacionalistas, contrárias à guerra, e as que adotaram a linha de união nacional, em apoio aos governos de seus respectivos países. No âmbito do PSI, Mussolini, que vinha assumindo posições nacionalistas, passou a defender uma política de “neutralidade ativa”, oposta à condenação frontal da guerra.

As desavenças com a direção partidária cresceram em poucos meses, a ponto de resultarem na sua expulsão do partido, em novembro de 1914, quando a Itália ainda se declarava neutra.
A partir daí, ele tomou o rumo da direita, acentuou o patriotismo e a visão antiparlamentar, sustentando a necessidade de se implantar uma “ditadura democrática”, baseada na mobilização popular, oposta às “ditaduras reacionárias”. O que mais lhe custou foi abandonar o anticlericalismo de outros tempos, substituindo-o por relações pragmáticas e acomodatícias com a Igreja Católica.

Em maio de 1915, a Itália entrou na guerra, ao lado da França e da Inglaterra. O país esteve entre os vencedores do conflito, mas não conseguiu obter o atendimento de suas reivindicações territoriais.
Os anos de pós-guerra foram marcados não só pelas decepções no plano internacional, mas também pelas greves operárias, pela ocupação de fábricas e pelas mobilizações de camponeses, que levaram a direita e a esquerda a acreditar na iminência de uma revolução social.

Nessa conjuntura carregada de excitação e temores, os fascistas ganharam terreno ao defenderem a manutenção da ordem a qualquer preço, bem como a ascensão ao poder de um homem providencial, destinado a restaurar a estabilidade do país e a conter o pericolo rosso. A violência se tornou um recurso político cotidiano e a tropa de choque fascista (os fasci di combattimento) desencadeou ataques terroristas em toda a Itália.

A mítica Marcha sobre Roma – mítica porque, no poder, o fascismo a transformou numa heroica ação revolucionária – levou Mussolini, em outubro de 1922, ao cargo de primeiro-ministro. O rei Vittorio Emanuele III e o Exército apoiaram a nomeação, enquanto o Vaticano, convenientemente, lavou as mãos. Um passo mais e Mussolini passou de primeiro-ministro a ditador. Era ele o “homem providencial”.

os anos que se seguiram à conquista do poder, o regime fascista atravessou momentos incertos, como os que resultaram no sequestro e morte do deputado socialista Giacomo Matteotti, figura de prestígio nos círculos da esquerda europeia. Mas a coação exercida pela polícia política, o apoio – ou pelo menos a passividade – da maioria da população, o beneplácito institucional do rei e da Igreja Católica garantiram a continuidade do regime.

No caso da Igreja, o Tratado de Latrão, firmado entre o Estado e o Vaticano em 1929, garantiu as boas relações entre as partes, a ponto de o papa Pio xi referir-se a Mussolini como “um enviado da Providência”. Mas é bom lembrar que os desentendimentos perduraram e, em anos que precederam a Segunda Guerra Mundial, o papa criticou o nacionalismo exaltado, as teorias racistas e o antissemitismo do regime.

A partir dos anos 30, Mussolini voltou-se para o front externo, na tentativa de projetar-se como árbitro da Europa. Interveio em grande escala na Guerra Civil Espanhola (1936-39), e contribuiu significativamente para a implantação da ditadura de Franco. Ao mesmo tempo, desfechou uma operação de conquista colonial: a guerra da Abissínia (hoje Etiópia), que durou de 1935 a 1936. Ele contava com uma vitória fácil diante do que considerava um bando de sub-homens mal adestrados. Apesar da grande disparidade de forças, porém, o rei Hailé-Selassié e seus “sub-homens” resistiram por vários meses aos ataques e às atrocidades das tropas italianas, até capitular.

A aliança entre a Itália e a Alemanha nazista não se deu com facilidade. Mussolini temia o expansionismo de Hitler e estava longe de ser simpático a ele. Em certa ocasião, como lembrou Renzo de Felice – o maior biógrafo de Mussolini –, o Duce confiou a um intelectual fascista: “Os alemães são amigos difíceis, mas inimigos terríveis. Eu escolhi tê-los como amigos.” A aliança desigual dos amigos de conveniência concretizou-se formalmente com o chamado Pacto de Aço, celebrado em Berlim em maio de 1939.

A opção abalou a popularidade de Mussolini. Talvez tenha sido essa a principal razão de ele manter uma atitude de “não beligerância”, quando a guerra explodiu, em setembro de 1939, com a invasão da Polônia. A “não beligerância” durou até junho de 1940, quando o Duce anunciou a uma multidão entusiasta, aglomerada na Piazza Venezia, em Roma, a entrada na guerra contra “as democracias plutocráticas e reacionárias do Ocidente”. Naquela altura, as restrições da população à entrada no conflito tinham praticamente desaparecido devido à instauração de um clima guerreiro, alentado por uma sistemática propaganda e pelas vitórias alemãs.

O entusiasmo iria transformar-se em tragédia. Cerca de 400 mil italianos encontraram a morte na guerra – a cota maior, nas terras geladas da União Soviética. Além disso, as tropas italianas foram humilhadas nas frentes de combate.
Hitler considerava um estorvo a presença de tropas peninsulares na União Soviética e, a pedido do próprio Mussolini, os alemães substituíram os italianos, que vinham sendo derrotados no norte da África.

No início de 1943, tendo como marco a vitória soviética em Stalingrado, os sinais de derrota do Eixo se multiplicaram e o descontentamento do povo italiano cresceu. Ele foi impulsionado pelos rumos da guerra e pelas restrições impostas ao consumo cotidiano. Greves de grandes proporções, organizadas pelos comunistas infiltrados nos sindicatos oficiais, explodiram em Turim e Milão, espraiando-se por outras cidades.

Nessa conjuntura, a destituição de Mussolini foi tramada por trás das cortinas. Ele acabou sendo derrubado do podernuma tempestuosa reunião do Grande Conselho – órgão máximo do Par-tido Nacional Fascista – em julho de 1943. Entre os que votaram pela destituição estava o conde Ciano, marido de sua filha Edda, cuja antiga admiração pelo nazismo dera lugar ao ódio de Hitler.

A pretexto de lhe ser dada proteção, o Duce foi conduzido preso a um hotel de difícil acesso, ao pé de um pico da cadeia montanhosa dos Abruzzi. Menos de dois meses depois, numa operação espetacular, paraquedistas alemãeso resgataram. Ele se converteu então num títere manipulado por Hitler: um Mussolini alquebrado cedeu às pressões do Führer para que se pusesseà frente de um arremedo de regime – a República Social Italiana, mais conhecida como República de Saló, referência a uma pequena cidade às margens do lago de Garda, onde o precário governo foi instalado.

s Últimos Dias de Mussolini começa quando a República de Saló já não existia e uma caravana de fugitivos partira de Milão para o norte da Itália. Era abril de 1945, a Segunda Guerra Mundial estava em seus últimos dias. Na frente italiana, as tropas anglo-americanas tinham avançado pela península, após o desembarque na Sicília e no continente. Em blindados, automóveis e caminhões, escoltada pelos soldados da SS, a caravana tentava encontrar um refúgio nos Alpes para Mussolini, sua amante Clara Petacci e os principais dirigentes fascistas.

A marcha envolvia riscos: os ataques dos partigiani tinham se tornado cada vez mais frequentes. Quando percorria uma estrada ao longo do lago de Como, o comboio foi barrado pelosguerrilheiros de uma brigada -– comandada pelo conde Pier Luigi Bellini delle Stelle, um aristocrático advogado florentino – composta de vários estrangeiros que haviam integrado as Brigadas Internacionais na Guerra Civil Espanhola.

Quando se fazia uma inspeção dos veículos detidos, um dos partigiani deu com um militar embrulhado num capote cinzento do Exército alemão. Ele parecia mergulhado em sono etílico. Depois de muita insistência, ao ser chamado de “cavaliere Benito Mussolini”, o Duce finalmente se rendeu e entregou a seus captores uma metralhadora fornecida pelos alemães.

Começou uma discussão sobre seu destino. Um setor dos partigiani optava por um julgamento pelo recém-formado governo italiano, ou pelos países vencedores da guerra, como viria a ocorrer com os nazistas no Tribunal de Nüremberg. Majoritários entre os resistentes, os comunistas insistiram no fuzilamento sumário do Duce, opção que acabou por prevalecer.

Mussolini e Clara foram fuzilados na manhã do dia 28 de abril de 1945, nas proximidades de Dongo, pequena cidade junto ao lago de Como. De frente para os executores, Mussolini morreu com vários tiros no tórax, como revelou a autópsia do cadáver, realizada em Milão. Provavelmente, aconteceu o mesmo com Clara, mas seu corpo não foi autopsiado, ao que se sabe por influência familiar.

A manhã de 29 de abril apenas se esboçava em Milão quando os primeiros transeuntes que passavam pela Piazzale Loreto deram com os corpos de Mussolini, de Clara e de dezesseis dirigentes fascistas estendidos no chão. Sob a guarda de alguns sonolentos partigiani, os cadáveres haviam sido depositados à noite na praça. A escolha do local não fora fortuita. No ano anterior, tinham sido executados ali quinze presos políticos, em represália ao ataque contra uma viatura alemã.

A surpresa inicial dos passantes transformou-se em fúria. Sem encontrar obstáculos, uma pequena multidão pisoteou longamente os corpos de Mussolini e Clara, a ponto de se tornarem quase irreconhecíveis. Por fim, jatos de água dispersaram a multidão. Os partigiani recolheram os corpos do casal, do irmão de Clara e de mais quatro dirigentes fascistas, que foram pendurados de cabeça para baixo nas traves de um posto de gasolina. Horas depois, as cordas que sustentavam os corpos foram cortadas e eles se estatelaram no chão.

s biógrafos do Duce costumam separar o homem público do indivíduo Mussolini. A divisão é explicável, com a ressalva de que a vida privada do líder fascista tem dimensões que incidem na esfera pública. Nessa esfera, o jornalista e orador talentoso tornou-se não apenas um personagem supostamente infalível, comandante supremo do povo italiano, como o pontífice de uma religião leiga que tinha um mito de origem, um culto e uma liturgia.
O mito de origem era a Roma dos imperadores, que fizera do Mediterrâneo o mare nostrum, alvo dos planos expansionistas de Mussolini. A águia dos césares, a saudação imperial com o braço estendido, a cabeça do Duce – uma “cabeça romana” – integraram a simbologia do fascismo.

A própria denominação do movimento derivou de um símbolo romano, o fascio littorio – o feixe de tiras de vime no qual se encaixava uma machadinha representativa do poder do litor, alto magistrado de Roma. Após ser utilizado por vários movimentos sociais desde a Revolução Francesa, o fascio foi apropriado pelos fascistas e escolhido como símbolo oficial do seu partido.

A retórica do Duce seduzia a multidão que se aglomerava para vê-lo quando pronunciava seus discursos do alto do balcão do Palácio Venezia. A fala impositiva, o tom estridente da voz, as perguntas à multidão cuja resposta era previsível, as frases bruscamente interrompidas, enquanto ele colocava as mãos na cintura com ar de desafio, compunham uma figura ridícula aos olhos de hoje, mas magnetizante na Itália da época.

O ferimento de Mussolini na Primeira Guerra Mundial facilitou sua apresentação como combatente heroico, como o valoroso soldado italiano que nada tinha a ver com a imagem negativa que lhe atribuíam as nações inimigas (e as amigas também). Ao mesmo tempo, Mussolini surgia nas telas de cinema e nos jornais com imagens alternadas: ora aparecia como um homem comum, realizando tarefas corriqueiras no campo, ora como um super-homem, de torso nu, protagonizando extraordinárias proezas esportivas. Mao Tsé-Tung seguiria seus passos, muitos anos depois, ao supostamente atravessar lagos gelados na China, em pleno inverno.

Na vida privada, a figura doméstica de Mussolini, traçada pela propaganda, tinha algo de verdadeiro. O Duce seria o chefe de família tradicional, o pater familias provedor, afetuoso e infiel. Em 1915, ele se casou com Rachele Guidi, jovem de origem camponesa, nascida como ele em Predappio. Tiveram cinco filhos e, bem ou mal, mantiveram-se unidos até a morte de Mussolini. Dentre os membros da família, ele dedicava grande afeto a Arnaldo, seu irmão mais novo, cuja morte súbita, em 1931, o levou a uma profunda depressão.

Já a filha mais velha despertava sentimentos contraditórios. Edda era uma mulher de costumes avançados, além de viciada no jogo e na bebida. Mussolini teve altos e baixos nas relações com a filha até que o conde Ciano, marido de Edda e membro do Grande Conselho, votou pela destituição de Mussolini. Ele foi preso em outubro de 1943, acusado de alta traição, e submetido a julgamento. Os apelos de Edda ao pai para que salvasse o marido da morte certa não foram atendidos. Após um julgamento pro forma em Verona, Ciano e outros acusados foram condenados como traidores e fuzilados pelas costas por um pelotão de milicianos. Pai e filha romperam de vez.

Em paralelo à vida familiar, além de relações fugazes com uma coleção de mu-lheres, Mussolini teve pelo menos duas amantes: Margherita Sarfatti e Clara Petacci. A primeira era uma talentosa jornalista judia, casada com um advogado sionista, promotora da arte e da literatura de vanguarda.
Mussolini se encantou por ela quando veio da província para Milão, onde Margherita o aproximou de escritores de vanguarda e redigiu muitos de seus discursos. Passados os anos, o amor arrefeceu. Margherita foi morar em Nova York, mas os contatos se mantiveram até por volta de 1942, quando a perseguição aos judeus tornou impossível o relacionamento entre os dois.

Clara era bem diferente de Margherita. Jovem romana, ela pertencia a uma família conservadora de classe média. Seu pai tinha boas relações nas altas esferas, a ponto de ter sido médico do papa. Aparentemente, era uma moça frívola, ociosa, cheia de luxo. Entretanto, alentou o Duce, já na meia-idade, com o sopro de sua juventude, e exerceu considerável influência sobre ele até a morte de ambos.

sicologicamente instável, Mussolini alternou fases de euforia e de depressão. Sofria de vários males e cólicas estomacais o atormentavam desde a juventude. Quando nos primeiros anos da ditadura teve uma forte crise, médicos lhe diagnosticaram uma úlcera. Nunca se livrou dela, apesar de seguir uma dieta rígida que excluía vinhos, pratos condimentados e o fumo. Após sua morte, os legistas constataram a inexistência da “úlcera” e diagnosticaram um quadro psicossomático.

A emergência do fascismo desnorteou seus adversários políticos e deu margem a interpretações conflitantes. O historiador australiano R.J.B. Bosworth, também ele biógrafo de Mussolini, lembra uma afirmação de Antonio Giolitti, líder dos liberais italianos: “Os fascistas não passam de fogos de artifício: farão muito ruído, mas não deixarão atrás de si mais do que fumaça.” A ascensão de Mussolini ao cargo de primeiro-ministro foi facilitada por essa miragem. Figuras liberais, entre elas o próprio Giolitti, que se odiavam entre si, preferiram que Mussolini assumisse “transitoriamente” o poder a vê-lo entregue a um de seus rivais.

A desorientação ocorreu também no campo da esquerda. Antonio Gramsci, a vítima mais famosa do fascismo, preso por mais de dez anos nos cárceres de Mussolini até encontrar a morte, desdenhara do movimento fascista quando de sua formação, pois ele seria composto por “gente ridícula, do tipo que faz as notícias, mas não faz a história”.

Ao se tornar evidente que o fascismo era um fenômeno trágico e duradouro, a IIIª Internacional partiu para uma reconfortante interpretação de classe. O fascismo foi explicado como uma expressão espúria do grande capital, assentado socialmente na pequena burguesia e nas massas desorganizadas.

A explicação tinha aspectos de verdade. Os fasci di combattimento, de fato, foram financiados pelos grandes proprietários rurais e pela burguesia urbana. Após a conquista do poder, estabeleceram-se relações relativamente harmônicas entre Mussolini e as grandes corporações. Para o mundo empresarial, a “paz social” assegurada pelo fascismo era um trunfo de muita valia, depois de anos de incerteza e de caos.

Mas, por seu grau de autonomia em relação às classes sociais, por seu estilo revolucionário, bem diverso do estilo da dominação burguesa tradicional, o fascismo se diferenciava da classe dominante. Grandes empresários foram reticentes à aventura da Abissínia, assim como à entrada da Itália na Se-gunda Guerra Mundial. De sua parte, Mussolini não hesitou em utilizar como recurso retórico a campanha antiburguesa, que ganhou força na década de 30.
Assim, num discurso de 1934, lembrado por Renzo de Felice, no qual criticava os fascistas “aburguesados”, o Duce proclamou: “Não nego a existência de temperamentos burgueses, mas excluo que eles possam ser fascistas. O credo do fascista é o heroísmo; o do burguês, o egoísmo. Contra esse perigo só há um remédio: o princípio da revolução permanente.”

A maioria dos quadros do regime, por sua vez, tal como ocorreu na Alemanha nazista, tinha origem na classe média, e alguns de seus setores se beneficiaram com a ampliação dos grupos burocráticos de governo e do aparelho partidário. Houve mesmo uma renovação parcial da classe dirigente, provocada pela ascensão de “novos notáveis”, provenientes da pequena burguesia. Mas não é possível concluir que a ascensão do fascismo representou a tomada do poder pela classe média. Se a origem social tem de ser levada em conta, um fascista era antes de tudo um “homem novo”, um soldado da causa que tinha em Mussolini seu chefe e ídolo.

O ímpeto da classe operária organizada e de seus dirigentes foi quebrado com o impasse das greves. Quando o fascismo chegou ao poder,o que restava de organização independente nos sindicatos e partidos foi destruído. Mussolini empregou um misto de repressão e de cooptação para atrair os trabalhadores, como bem expressa o Codice del Lavoro, de 1927 – copiado, aliás, pelo Estado Novo no Brasil –,ao estabelecer o controle dos sindicatos e a proibição das greves e prever, ao mesmo tempo, várias garantias sociais. O Codice del Lavoro decorreu de um princípio maior do fascismo: a instituição de um Estado corporativo, em que a representação de patrões e empregados nas corporações asseguraria a colaboração, e não a luta entre as classes.

interpretação liberal do fascismo seguiu um caminho diverso da versão classista, ao tomar como base a noção de totalitarismo, desenvolvida por Hannah Arendt e colegas. Estados totalitários seriam tanto o fascismo e o nazismo como o comunismo soviético, por buscarem intervir em todos os aspectos da vida social, e construir um “homem novo”, oposto ao indivíduo burguês. Dentre as virtudes desse “homem novo” estariam a obediência cega ao líder supremo e à sua capacidade de decisão, além do culto e da estética da violência, cuja estrela de primeira grandeza foi o poeta futurista Marinetti – um admirador de Mussolini que nunca abandonou as tendências anarquizantes do primeiro fascismo.

Essa interpretação sofreu críticas violentas do pensamento de esquerda, por colocar no mesmo balaio o nazismo, o fascismo e o regime soviético. De Felice, que estava bem longe das posições de esquerda, criticou também a noção de totalitarismo, pois ela seria incapaz de dar conta de regimes intrinsecamente diferentes, aos quais se aplicava o mesmo rótulo.

Seja como for, um dos méritos da noção de Estados totalitários consistiu na percepção de que esses estados tinham algumas características em comum, indo além dos traços gerais dos regimes autoritários, como é o caso do controle dos meios de comunicação, do aniquilamento dos divergentes e da utilização da violência como recurso político. Mas, para além de elementos comuns, a noção de totalitarismo não dá conta das distinções entre os Estados definidos como totalitários.

Mesmo entre a Itália fascista e a Alemanha de Hitler, as diferenças não são poucas. O regime nazista foi um furacão arrasador que em doze anos destruiu as instituições da República de Weimar e ergueu das cinzas um Estado policial, que levou o mundo à guerra. No âmbito externo, ao contrário da Alemanha nazista, Mussolini teve de se limitar à expansão no Mediterrâneo e ao sonho de construir um império na África, mesmo porque não poderia ir mais longe, pois a Itália era, no contexto europeu, uma potência de segunda classe.

O antissemitismo teve na península um papel ideológico e político pouco relevante até 1938, embora houvesse antijudeus raivosos nos círculos do poder, do gênero de Roberto Farinacci, um ex-ferroviário admirador estridente do nazismo, ou de Aquiles Starace, um simples contador que se tornou secretário do Partido Nacional Fascista.
 
Mussolini adotou, quase sempre, uma atitude de benevolência com relação aos judeus e, afinal de contas, tinha junto de si Margherita Sarfatti, de origem judia. Judeus fascistas participaram da Marcha sobre Roma, ocuparam vários postos de governo e lutaram na guerra da Abissínia, a ponto de o governo ter instituído, em terras africanas, um rabinato militar.
 
A reviravolta ocorreu logo após o fim da guerra colonial, quando os judeus – tidos como personagens execráveis do capitalismo financeiro – deixaram oficialmente de pertencer à “raça italiana”. Muitos deles foram jogados nos campos de concentração de Hitler, com o destino conhecido.
 
No plano das instituições, o fascismo italiano subordinou o partido único ao Estado, ao contrário do que sucedeu na Alemanha nazista. Era uma subordinação relativa: exibir a carteira de membro do partido era condição necessária para se assumir um cargo público. A preeminência do Estado como encarnação da nacionalidade teve no filósofo Giovanni Gentile seu nome mais expressivo e sintetizou-se numa frase que se tornou célebre: Tutto nello Stato, niente al di fuori dello Stato, nulla contro lo Stato. Em tradução livre: “Tudo no Estado, nada fora do Estado, nada absolutamente contra o Estado.”
 
A emergência do fascismo teve muito a ver com as circunstâncias da Itália do pós-guerra, na qual se entrecruzaram fatores como a descrença na democracia; a irrupção de um movimento operário vigoroso, mas que chegou a um impasse; as decepções sofridas pela Itália – nação proletária, como dizia Mussolini – nas negociações de paz posteriores à Segunda Guerra Mundial. De Felice, que se opunha às “interpretações demonológicas” do fascismo, tratou de inseri-lo num quadro histórico mais amplo. A ideologia fascista representaria o ponto de chegada de uma tradição política e cultural que deitava raízes no nacional-jacobinismo do Risorgimento (período de luta pela unificação da Itália), e se ligava aos “intervencionistas de esquerda” dos anos 1914-15.

história de Mussolini não terminou na Piazzale Loretto. A partir das cenas macabras na praça, seu corpo ganhou outras dimensões de personagem principal. Enterrado discretamente num cemitério de Milão, ele foi dali “sequestrado” por um pequeno grupo de fascistas e percorreu um périplo secreto até ser entregue à sua família. Esta construiu um mausoléu em Predappio para onde acorrem, nas datas solenes do fascio, fascistas remanescentes e neofascistas vestidos de camisas negras, braços erguidos na saudação fascista, aos gritos de “Duce! Duce! Duce!”.
 
O mausoléu de Predappio é um lugar de memória. Mas não se pode afirmar que o fascismo esteja ali enterrado. Afinal de contas, menos de dois anos da morte de Mussolini, os remanescentes do Partido Nacional Fascista criaram uma nova agremiação partidária, o Movimento Social Italiano, MSI, numa referência à República Social Italiana dos últimos anos do Duce. É certo que o MSI regrediu e desapareceu, após ter alcançado vitórias eleitorais significativas nos anos 70 do século XX.
 
Mas a “lembrança inspiradora” de Mussolini não se extinguiu. Ela surge aqui e ali, nos discursos de Berlusconi e na vaga esperança de que um homem providencial venha salvar a Itália atual da crise econômica e da desordem.

16 de março de 2013
Revista Piauí - 78 março

O ETERNO FEMININO EM CRISE?

                    o que é isso, companheiras?


2-2

Segundo o antropólogo carioca Marcelo Silva Ramos estamos vivendo uma nova moral: indecente não é mais tirar a roupa e, sim, ter um corpo fora do padrão estético. E, para não ser, digamos, amoral, vale tudo – mas tudo mesmo

Uma coisa todo mundo sabe: conquistamos o Everest nas últimas duas, três décadas. Só que essa escalada de poder também aumentou os distúrbios ligados à alimentação e a necessidade, artificialmente provocada, de corresponder a um modelo idealizado de mulher. Muitas vezes, mesmo que inconscientemente, desrespeitamos nossa essência para nos transformarmos naquilo que é aceito e admirado.

As roupas, as cores, as tendências e até os cortes de cabelo são cíclicos, sazonais, assim como as estações do ano, assim como as fases da vida. O engraçado é que estamos esquecendo que os padrões de beleza são incoerentes, nos distanciam do que somos para nos aproximar do que é comum, banal.
Aqui Marcelo Silva Ramos, co-autor dos livros “Os Novos desejos” e “Nu e Vestido”, destrincha esse comportamento para lá de paradoxal.

Por que elas tiram a roupa?

Há, de fato, uma superexposição dos corpos femininos, mas também dos masculinos. Expor-se dessa forma não é tão simples como parece. Vejo o ato de tirar as roupas em nossos dias tal como o ato de se vestir. Seja nua ou vestida, a intenção é exibir a forma. Não há mais pudor em se valorizar a beleza comprada, fruto de investimento de tempo e dinheiro. A busca pela perfeição física tornou-se imperativa. A liberdade para agir sobre o próprio corpo não para de ser estimulada, cobrada, trazendo a idéia de que só é feio quem quer. Sendo assim, digamos, que “elas tirem a roupa” para exibir uma conquista.

Você acredita que exista uma inversão de conceitos e valores?

A nudez parece confirmar a idéia de que vivemos uma liberdade física e sexual sem precedentes. No entanto, a aparente liberação acontece com um alto grau de controle. Se antes havia um pudor em expor o corpo, hoje é a exposição de um corpo fora de forma que é considerada indecente, vergonhosa. Acho que é possível falar do surgimento de uma nova moral, que, sob essa aparente liberação física e sexual, prega a conformidade e aprisionamento a um determinado padrão estético.

A mulher precisa de aprovação do homem para sentir-se bela?

A mulher deseja ser desejada por um homem. Seu pleno reconhecimento é pelo olhar de desejo masculino. Sem isso, mesmo as mais belas, sentem-se fracassadas. É interessante observar, no entanto, que o corpo que elas buscam não é exatamente o corpo que eles dizem desejar. Em pesquisa recente, feita no Rio com homens de classe média, para surpresa de todas as obcecadas por ossos aparentes, os homens elegeram Sheila Carvalho e Juliana Paes padrões exemplares de beleza feminina.

Mulheres são instintivamente mais “exibidas” que os homens ou esse comportamento é cultural, independe de gênero?

Tradicionalmente, as mulheres sempre foram admiradas e valorizadas por sua beleza e juventude, características que, em nossa sociedade, são percebidas, hoje mais do que nunca, como centrais em suas existências e afetos.
O antropólogo francês Marcel Mauss destaca que a forma como os indivíduos usam e representam seus corpos é mais determinada por critérios de aprovação e desaprovação coletivos do que pelas particularidades individuais.
No que se refere à exibição dos corpos, as mulheres, até a metade do século passado, eram recatadas. Hoje, como já disse, os corpos femininos parecem mais livres, menos contidos, por estarem mais expostos. Porém, para exibir o corpo sem constrangimentos as mulheres (e hoje também os homens) se submetem a um estilo de vida e a um conjunto de normas de conduta que podem ser vistas como novas “prisões”.


Quando o corpo passou a ter o valor que tem hoje?

Nos últimos vinte anos, com o surgimento de modelos que se tornaram celebridades, esta cultura do corpo se tornou mais forte. A mídia adquiriu um imenso poder de influência, expandiu-se o consumo de produtos de beleza e generalizou-se a paixão pela moda. Como lembra Marcel Mauss, os indivíduos imitam atos, comportamentos e corpos que obtiveram êxito. Quem tem prestígio hoje são modelos, atrizes e atores, que exibem corpos moldados e cuidados com todos os recursos hoje disponíveis no mercado.
A maneira pelas quais os indivíduos fazem uso de seus corpos varia de acordo com as épocas, com as modas, com os prestígios. Hoje, é possível perceber dois movimentos diferentes: uma banalização da nudez feminina (nas revistas, propagandas, carnaval etc) e, ao mesmo tempo, um receio enorme das mulheres que se consideram “fora de forma” em expor seus corpos, inclusive para seus parceiros.


O desejo feminino se manifesta de forma diferente do desejo masculino? Eles querem desejar e as mulheres querem ser desejadas?

O corpo feminino é e sempre foi a principal fonte de atração sexual masculina. Já as mulheres, até bem pouco tempo, buscavam nos homens poder, proteção, sucesso, inteligência e até dinheiro. Hoje, elas também valorizam a estética. Aliás, o culto ao corpo está fazendo com que as pessoas fiquem similares demais. A valorização da aparência, se apresentou, de forma surpreendente para mim em uma pesquisa da UFRJ sobre os desejos, as expectativas e as mudanças nos relacionamentos afetivos e sexuais. Ao analisarmos algumas das questões da pesquisa, foi surpreendente constatar a presença significativa da resposta “o corpo” como algo invejado, desejado e admirado no sexo oposto e no mesmo sexo.

16 de março de 2013
silvia pilz

CONHECIMENTO DA HISTÓRIA. A VERDADEIRA FACE DE SÊNECA


Mestre da arte da retórica, o filósofo viveu no centro do poder durante os principados de Calígula, Cláudio e Nero. Uma figura ambígua, que pregava um código de conduta bem diferente da sua prática

O verdadeiro busto de Sêneca, descoberto em escavações
arqueológicas com o nome do filósofo entalhado no mármore.


Nascido em Córdoba entre os anos 4 e 1 a.C., Lucius Annaeus Sêneca era a própria imagem de sua época. Segundo filho de Sêneca, o Orador, e por isso também conhecido como Sêneca, o Jovem, mudou-se cedo para Roma. Tinha um vivo interesse pela filosofia dos mestres, como o estóico Átalo, ou o pitagórico Sótio. Para eles, a moral tinha prioridade absoluta. Sêneca conseguiu se destacar em uma sociedade cuja elite valorizava um mesmo ideal: ser orador. Em torno da eloqüência organizavam-se reuniões de salão e leituras públicas. Sêneca fez parte da Corte romana, e se comprazia em uma vida requintada que não combinava com seus ensinamentos. Não se deixar corromper, não ser tentado pelo luxo e pela luxúria, levar uma vida simples e honesta: essa era a sua filosofia. Mas não sua vida. Foi mais retórico que estóico, mais trapaceiro que honesto e mais ligado ao artifício que à verdade.

Não foi sempre assim. Sêneca parece ter levado uma vida recatada durante a juventude. Em sua carreira de servidor do Império, o cursus honorum, galga algumas posições na magistratura, além de revelar-se brilhante advogado.

Calígula, cultor ele próprio da eloqüência, tinha restrições às qualidades de Sêneca. Desprezava seu estilo estudado e elaborado, acusava seus livros, os mais populares da época, de “inconsistentes” e de serem “puras tiradas teatrais”. Às vezes, preparava respostas aos discursos do orador. Só poupou Sêneca da morte por estar convencido de que ele não chegaria à velhice devido à sua saúde frágil.

Durante o principado de Cláudio e Messalina, Sêneca participava de bom grado das recepções dadas pela imperatriz. Depois, Messalina deixou de convidá-lo, alegando que ele se permitia fazer observações pouco respeitosas. Com sua eloqüência, Sêneca fascinava demais os jovens para não ser considerado perigoso. Sêneca revelou ao imperador a conduta libertina de sua esposa. Messalina se defendeu, lembrando a avareza de Sêneca e suas relações com suas serviçais do palácio, e a audácia com que ele tinha ousado insultar Calígula. Por fim, acusou-o de semear a discórdia entre ela e o imperador.
Os temores de Messalina aumentaram quando suas primas Júlia e Agripina foram trazidas por Cláudio de volta do exílio a que Calígula as condenara. Sêneca se tornou amante de Júlia – que era casada – e se pôs a aconselhar Agripina, seduzida por sua capacidade de encantar a multidão. A lei condenava ao exílio todos os homens culpados de adultério. Assim, Messalina informou Cláudio do romance com Júlia. Sêneca foi mandado para a Córsega e Júlia, para a ilha de Pandateria.

O filósofo permaneceu no exílio por oito anos. Enviou várias cartas aduladoras a Messalina, tentando fazê-la mudar de idéia. Pensando em suicídio, com a saúde abalada, ninguém acreditava que voltasse a Roma. Todavia, mesmo que por vezes sua conduta fosse condenável, os romanos ainda o respeitavam, pois tomava posições firmes diante dos problemas de sua época, não hesitando, por exemplo, em condenar os combates de gladiadores. Depois da morte de Messalina, Agripina, a Jovem (homônima de sua mãe), manobrou para se casar com seu tio Cláudio, o que se efetivou no ano 49, e desde o início de seu reinado impôs seus caprichos. Conseguiu que Sêneca fosse trazido de volta do exílio e que se tornasse pretor (ver glossário). Confiou a Sêneca a educação de seu jovem filho, Domício, o futuro Nero. Mas Agripina se deu rapidamente conta do gosto pelo poder de Sêneca e de sua habilidade de manobra. Sêneca, por sua vez, logo percebeu a crueldade de Agripina e decidiu se opor a ela, aliando-se a Sextus Afranius Burrus. Os dois homens orientavam o jovem Nero: Burrus, por seus talentos militares, e Sêneca, por seus ensinamentos de sabedoria. Aos 12 anos, Nero viu em Sêneca um substituto do pai, Domitius Athenobarbus, que tinha morrido dez anos antes.

Com a morte de Cláudio, coube a Sêneca a honra de redigir o elogio fúnebre proferido por Nero. A fim de exibir sua sabedoria e de fazer seu talento brilhar, Sêneca tinha o costume de redigir para Nero discursos cheios de clemência, favorecendo acusados pertencentes aos altos estratos sociais. Sêneca conseguiu pouco a pouco desviar para si mesmo toda a afeição que Nero sentia pela mãe.

Quando Agripina tentou se reaproximar do filho para retomar sua influência sobre ele, Sêneca se apressou a enviar uma ex-escrava, Claudia Acte, para seduzir o imperador. Na verdade, estava preocupado com o futuro de sua carreira, caso Agripina conseguisse retomar as rédeas do Estado. Em 58, o advogado Suillius acusou Sêneca de ser hostil aos amigos do antigo imperador, Cláudio. Acrescentou ainda que, acostumado à vida de estudos, Sêneca tinha inveja dos que dedicavam uma eloqüência “sadia” à defesa dos cidadãos.

Sêneca acumulava uma fortuna de 300 milhões de sestércios, que certamente não vinham de suas aulas de filosofia. Em Roma, caíam em sua rede os testamentos dos velhotes sem herdeiros. Pela usura, esgotou a Itália e as províncias. Como advogado não tinha direito de receber pagamentos pelo trabalho que fazia. Como resultado de ter enfrentado Sêneca, Suillius foi acusado de todos os crimes e mandado para as ilhas Baleares . Entretanto, se Suillius também era afeito à corrupção, seu mestre havia sido o próprio Sêneca.Quando Nero organizou o assassinato da mãe, o filósofo limitou-se a lhe perguntar se deveria encarregar os soldados do assassinato, sem proferir uma única palavra para salvar Agripina.SUICÍDIO Para não perder o posto, Sêneca prestou-se a todas as concessões.


Quando seu príncipe decidiu se misturar aos histriões (ver glossário), ele providenciou uma cena teatral. Quando quis conduzir uma biga de corrida, mandou delimitar na colina do Vaticano uma área onde pudesse guiar seus cavalos.A morte de Burrus em 62 afetou seu poder. Muitos foram os que tentaram afastar Nero do filósofo, denunciando as imensas riquezas que ele havia acumulado durante os anos em que vivera na Corte. Sêneca queria ultrapassar o imperador, pelos atrativos de seu jardim e pela magnificência de suas casas de campo.
Seu orgulho o levou a acreditar que era o melhor orador do mundo. Quanto às diversões do príncipe, depois de tê-las facilitado, as lamentava. Sentindo-se ameaçado, se afastou da Corte.

Mesmo assim, contra sua vontade, Sêneca se viu envolvido na Conspiração de Pisão, organizada por Caio Calpúrnio Pisão para assassinar Nero. Com o fracasso do complô, Nero ordenou a condenação de Sêneca à morte. Tiberius Plautius Silvanus Aelianus, que também havia feito parte da conspiração, mas tinha o pudor de não se mostrar em público, mandou um de seus centuriões avisar Sêneca da sentença fatal. Fiel no fim ao estoicismo que havia ensinado durante toda a vida, Sêneca ditou seu testamento e instou os amigos que choravam a se manterem fortes. Sua esposa, Pompéia Paulina, disse-lhe que estava disposta a morrer com ele.
Temendo que ela fosse ultrajada depois de sua morte, Sêneca não se opôs. A mesma lâmina cortou as veias de seus braços e dos dela. Sêneca mandou que lhe abrissem também as veias das pernas e da parte posterior dos joelhos, porque seu sangue escorria demasiado lentamente.Nero, que não tinha nada contra Paulina e temia ver sua impopularidade aumentar se a deixasse morrer, ordenou que ela fosse salva.
Paulina se deixou seduzir pelos encantos da vida. Por que morrer, se Nero não tinha nada contra ela? Quanto a Sêneca, que não conseguia morrer, pediu a um amigo médico que lhe trouxesse o veneno que já tinha providenciado havia tempos. Ele o tomou, mas em vão, pois seus membros já estavam frios.

Entrou então em uma banheira com água quente e molhou os escravos que o cercavam, dizendo que oferecia aquela libação a Júpiter Libertador. Não sabia que, instados por Nero, seus serviçais acorriam à volta de Paulina, reanimando-a, amarrando seus braços para estancar o sangue. Pelo contrário, tomado pela dor, Sêneca achava que Paulina suportava os piores tormentos.
Sentiu-se tentado a correr ao seu quarto, para lhe pedir que não consumasse tal sacrifício. Mas se lembrou da firmeza dela, e ordenou que o levassem a uma estufa, onde o vapor o sufocasse.
Depois de morto, seu corpo foi incinerado sem qualquer pompa, como havia ordenado.
Após levar uma vida luxuosa e dissimulada na Corte, durante 13 anos, e ser um cortesão disposto às piores concessões políticas; depois de se envolver em duvidosas transações financeiras; depois de praticar a usura sem qualquer escrúpulo e ser um oportunista até mesmo no ensino da moral estóica, Sêneca era dono de uma imensa fortuna, ao mesmo tempo em que pregava a filosofia da medida, da sabedoria e da moderação.
Sua vida, assim como sua arte, oscilou entre um desregramento que por vezes beirou a luxúria, e um ideal de firmeza exagerado. Sêneca só foi sincero em suas convicções no início da carreira e no fim da vida.

CRONOLOGIA

4-1 a.C.
Período estimado para o nascimento de Sêneca, em Córdoba.

5
O jovem Sêneca reside em Roma.

37
Entra em conflito com o imperador Calígula, que o poupa de uma sentença de morte.

41
É enviado para o exílio pelo imperador Cláudio por influência de Messalina.

49
Agripina, a nova esposa de Cláudio, convence-o a trazer Sêneca de volta para Roma.

54-62
Período em que atua como conselheiro do imperador Nero, até a morte de Burrus.

65
Sêneca, sentenciado à morte por Nero, se suicida.

16 de março de 2013
O fascinante unierso da história

MILÍCIAS DO PENSAMENTO


O filósofo italiano Antonio Gramsci ensinava que o teatro de operações da revolução comunista não era o campo de batalha, mas o ambiente cultural, a trincheira do pensamento.
 
Enquanto Lênin pregava o ataque direto ao Estado, Gramsci sustentava que o novo homem, anunciado por Marx, emergiria não do terror revolucionário, mas da transformação das mentes.
 
Para tanto, impunha-se a infiltração e o domínio pelo partido dos meios de comunicação --jornais, cinema, teatro, editoras etc.-- e a quebra gradual dos valores cristãos (que ele preferia chamar de burgueses), por meio do que chamava de guerra psicológica.
 
Segundo ele, é preciso uma reforma intelectual e moral, que leve à superação do senso comum, para a construção de outro consenso monitorado pelo partido.
 
A relativização desses valores resultaria, numa primeira etapa, numa sociedade mais fraca, destituída de parâmetros morais, mais propícia a absorver os valores do socialismo.
 
Desnecessário dizer que essa revolução está em pleno curso no Brasil --e não é de hoje.
Entre os consensos construídos, está o de que o produtor rural é um usurpador social, que deve ser permanentemente molestado.

Disso resultou o MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra), organização sem personalidade jurídica (insuscetível de ser processada por seus atos criminosos), mas com existência concreta, munida de verbas do Estado por meio de ONGs e transgressora recorrente do direito de propriedade, cláusula pétrea constitucional.
 
Dentro da estratégia gramsciana, as milícias do pensamento valem-se de escaramuças, que consistem em lançar ao debate teses que sabem serão rejeitadas num primeiro momento.

Importa, porém, romper a aura de tabu e acostumar a sociedade a gradualmente absorver o que sempre rejeitou.
Exemplo disso foi o Plano Nacional de Direitos Humanos 3 (PNDH), de 2009.

Trata-se de um conjunto de transgressões democráticas, propondo censura à imprensa, legalização das invasões de propriedades (tirando do Judiciário o poder de arbitragem e incluindo o invasor como instância de mediação), proibição do uso de símbolos religiosos em locais públicos, revisão do currículo das academias militares etc.
 
Agora, o PNDH-3 que a sociedade rejeitou volta como um fantasma na redação dada por alguns deputados ao artigo 159 do novo Código de Processo Civil.
 
Constam no texto, entre outras pérolas, que, "nos casos de litígio coletivo pela posse ou propriedade de imóvel urbano ou rural, antes do exame do requerimento de concessão da medida liminar, o juiz deverá designar audiência de justificação prévia de conciliação entre as partes e seus representantes legais".
 
Isso significa que, em vez da defesa natural da propriedade rural ou urbana, em caso de invasão, os invasores -- com seus facões e foices, fazendo uso de cárcere privado de trabalhadores -- deveriam ser previamente ouvidos e defendidos. Os criminosos, preliminarmente, colocariam suas exigências. Imagine se a moda pega e a proposta é estendida a roubo e homicídio.
 
A aberração não para aí. Diz o parágrafo 2º que, "sempre que necessário à efetivação da tutela jurisdicional, o juiz deverá fazer-se presente na área do conflito".
 
Não basta, por exemplo, a polícia, que passaria, então, a ter um papel meramente secundário. O próprio juiz, nesses casos, deveria ser obrigado a deixar suas funções para comparecer pessoalmente para ouvir os invasores, os criminosos.
 
Mais adiante, no parágrafo 4º, outro absurdo: "O juiz requisitará aos órgãos da administração direta ou indireta da União, do Estado ou do Distrito Federal e do município informações fiscais, previdenciárias, ambientais, fundiárias e trabalhistas referentes ao imóvel".
 
Parece evidente, salvo para crédulos e radicais, que tal forma de mediação visa nada menos do que inviabilizar, tornar nulo o instituto da reintegração de posse. E, junto com a anulação, desapareceria o direito de propriedade, ferido de morte.
 
Gramsci, no inferno, deve estar elebrando.

16 de março de 2013
Katia Abreu

DIREITO A PROPRIEDADE PRIVADA NO BRASIL, JÁ CORRE SÉRIA AMEAÇA. PAÍS CAMINHA PARA UM REGIME COMUNISTA


 
Em artigo intitulado "Milícias do Pensamento", a Senadora Kátia Abreu (PSD-TO) faz uma revelação aterradora, ou seja, que o PT e seus sequazes introduziram no texto do projeto do novo Código de Processo Civil, dispositivo que, a rigor, acabará com a propriedade privada no Brasil. A Senadora Kátia Abreu, no entanto, não revela quais são os parlamentares que defendem o fim da propriedade privada, fato que transformará o Brasil, a médio prazo, numa República Comunista.

É de estranhar que a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) silencie sobre mais esse atentado à democracia e à liberdade. Sem falar que caso isso seja aprovado terá impacto profundo no setor produtivo brasileiro, pois afugentará investidores determinando no futuro crises de escassez de alimentos, como vem ocorrendo na Venezuela corroída pelo regime comuno-chavista.
Também a grande imprensa brasileira que cobre o Congresso silencia sobre esse absurdo. E o que é mais grave é o silêncio dos parlamentares dos partidos de oposição como o PSDB e o DEM, já que o PSD de Kátia Abreu não chove e não molha. Essa senadora tem sido das poucas vozes a se levantar contra o ataque do PT à democracia, embora seu partido continue mantendo uma posição ondulante em termos políticos e ideológicos.
Transcrevo na íntegra abaixo o artigo da senadora Kátia Abreu. Leiam pois é sumamente importante que todos saibam o que se passa nas sombras do Congresso dominado pelo PT e seus áulicos da base aliada onde se cava a cova para enterrar o cadáver da democracia brasileira.
Do ponto de vista jurídico esse projeto é inconstitucional. Digo e afirmo isso como advogado, pois além de jornalista sou advogado inscrito na OAB-SC.
O direito de propriedade é consagrado na Constituição Brasileira e o artifício encontrado pelos comunistas do PT para incluir esse dispositivo no CPC constitui um flagrante atentado à ordem constitucional. Me admira muito é a profunda ignorância, a má fé ou a bajulação pura e simples, ou tudo isso junto, dos assessores jurídicos do Congresso Nacional. Leiam:
MILÍCIAS DO PENSAMENTO

O filósofo italiano Antonio Gramsci ensinava que o teatro de operações da revolução comunista não era o campo de batalha, mas o ambiente cultural, a trincheira do pensamento.
Enquanto Lênin pregava o ataque direto ao Estado, Gramsci sustentava que o novo homem, anunciado por Marx, emergiria não do terror revolucionário, mas da transformação das mentes.
 
Para tanto, impunha-se a infiltração e o domínio pelo partido dos meios de comunicação --jornais, cinema, teatro, editoras etc.-- e a quebra gradual dos valores cristãos (que ele preferia chamar de burgueses), por meio do que chamava de guerra psicológica.
 
Segundo ele, é preciso uma reforma intelectual e moral, que leve à superação do senso comum, para a construção de outro consenso monitorado pelo partido.
A relativização desses valores resultaria, numa primeira etapa, numa sociedade mais fraca, destituída de parâmetros morais, mais propícia a absorver os valores do socialismo.
Desnecessário dizer que essa revolução está em pleno curso no Brasil --e não é de hoje.
 
Entre os consensos construídos, está o de que o produtor rural é um usurpador social, que deve ser permanentemente molestado.
 
Disso resultou o MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra), organização sem personalidade jurídica (insuscetível de ser processada por seus atos criminosos), mas com existência concreta, munida de verbas do Estado por meio de ONGs e transgressora recorrente do direito de propriedade, cláusula pétrea constitucional.
 
Dentro da estratégia gramsciana, as milícias do pensamento valem-se de escaramuças, que consistem em lançar ao debate teses que sabem serão rejeitadas num primeiro momento.

Importa, porém, romper a aura de tabu e acostumar a sociedade a gradualmente absorver o que sempre rejeitou.
 
Exemplo disso foi o Plano Nacional de Direitos Humanos 3 (PNDH), de 2009.
Trata-se de um conjunto de transgressões democráticas, propondo censura à imprensa, legalização das invasões de propriedades (tirando do Judiciário o poder de arbitragem e incluindo o invasor como instância de mediação), proibição do uso de símbolos religiosos em locais públicos, revisão do currículo das academias militares etc.
 
Agora, o PNDH-3 que a sociedade rejeitou volta como um fantasma na redação dada por alguns deputados ao artigo 159 do novo Código de Processo Civil.
 
Constam no texto, entre outras pérolas, que, "nos casos de litígio coletivo pela posse ou propriedade de imóvel urbano ou rural, antes do exame do requerimento de concessão da medida liminar, o juiz deverá designar audiência de justificação prévia de conciliação entre as partes e seus representantes legais".
 
Isso significa que, em vez da defesa natural da propriedade rural ou urbana, em caso de invasão, os invasores --com seus facões e foices, fazendo uso de cárcere privado de trabalhadores-- deveriam ser previamente ouvidos e defendidos. Os criminosos, preliminarmente, colocariam suas exigências.
 
Imagine se a moda pega e a proposta é estendida a roubo e homicídio.
A aberração não para aí. Diz o parágrafo 2º que, "sempre que necessário à efetivação da tutela jurisdicional, o juiz deverá fazer-se presente na área do conflito".
 
Não basta, por exemplo, a polícia, que passaria, então, a ter um papel meramente secundário. O próprio juiz, nesses casos, deveria ser obrigado a deixar suas funções para comparecer pessoalmente para ouvir os invasores, os criminosos.
 
Mais adiante, no parágrafo 4º, outro absurdo: "O juiz requisitará aos órgãos da administração direta ou indireta da União, do Estado ou do Distrito Federal e do município informações fiscais, previdenciárias, ambientais, fundiárias e trabalhistas referentes ao imóvel".
 
Parece evidente, salvo para crédulos e radicais, que tal forma de mediação visa nada menos do que inviabilizar, tornar nulo o instituto da reintegração de posse. E, junto com a anulação, desapareceria o direito de propriedade, ferido de morte.
 
Gramsci, no inferno, deve estar celebrando. Do jornal Folha de S. Paulo deste sábado.
 
16 de março de 2013
in aluizio amorim

"PASSADO IMAGINÁRIO"

 



Uma das últimas modas no PT, no governo e na procissão de devotos que acompanha o ex-presidente Lula é lembrar a figura de outro ex-presidente, Getúlio Vargas, para defender-se do desabamento moral em que todos estão metidos hoje.

A intenção desse novo plano mestre, mencionado em documentos do partido e tema dos discursos a serem feitos nas “caravanas” que o ex-presidente planejou para este ano, é vender ao público a seguinte história: Lula e seu “projeto para o Brasil” estão sendo agredidos, em 2013, pelo mesmo tipo de ofensiva que causou a liquidação do governo de Getúlio em 1954. A primeira reação é fazer uma sequência de perguntas: “O quê? Quem? Do que é mesmo que estão falando?”.

A segunda reação é constatar que, sim, o estado-maior do PT está dizendo isso mesmo: um personagem de outro mundo, de uma época morta e de um Brasil que não existe mais está de volta entre nós. Ele foi tirado do túmulo numa tentativa de convencer o público de que episódios de corrupção, sejam lá quais forem os fatos que comprovam a sua existência, são apenas uma invenção das forças antipovo para armar “golpes de estado” contra governos democráticos e dedicados à causa popular, como teria sido o de Getúlio ─ e como seriam hoje os de Lula e sua sucessora, Dilma Rousseff.

A última causa popular que empolgou o PT foi a campanha em favor da eleição do deputado Henrique Alves para a presidência da Câmara e do senador Renan Calheiros para a presidência do Senado. Naturalmente, como acontece em quase tudo o que o partido faz hoje em dia, é uma clara opção para enterrar-se mais ainda na vala comum da baixa política brasileira; Alves e Renan, sozinhos, valem por um samba-enredo completo sobre praticamente todos os vícios que fazem a vida pública nacional ser a miséria que ela é.
Mas, para o PT de 2013, ambos são aliados preciosos das massas trabalhadoras, junto com Fernando Collor, Paulo Maluf, empreiteiros de obras, fugitivos do Código Penal, bilionários experientes em lidar com os guichês de pagamento do Tesouro Nacional, e por aí afora.

Para o governo é tudo gente finíssima, empenhada em ajudar Lula no seu projeto de salvar o Brasil. O erro, na visão petista, é apontar o que está errado ─ aí já se trata de uma campanha que a direita reacionária, golpista e totalitária estaria fazendo contra Lula, como fez no passado contra Getúlio, com o apoio da “grande imprensa” e de “setores do Judiciário”.
Sua arma de hoje, igual à de ontem, é o “moralismo” ─ delito atribuído automaticamente a quem aponta qualquer ato de imoralidade na vida pública.
Getúlio, de acordo com esse sermão, foi um “mártir do moralismo”. Lula, os condenados do mensalão e toda a companheirada que frequenta o noticiário policial são as vítimas da direita moralista no momento.

Vítimas da direita? É curioso, porque aquilo que se vê parece ser justamente o contrário. Para ficarmos apenas no caso mais recente da série: que tipo de vítima poderia ser, por exemplo, a senhora Rosemary Noronha, a ex-chefe do escritório da Presidência da República em São Paulo e amiga pessoal de Lula, denunciada há três meses pelo Ministério Público por crimes de corrupção passiva, formação de quadrilha, falsidade ideológica e tráfico de influência, junto com 23 outros suspeitos?

Da trinca de irmãos Paulo, Rubens e Marcelo Vieira, os sócios mais visíveis de “Rose”, o primeiro era tratado pelo interessante apelido de “Paulo Grana”, conforme se constatou com a gravação de mais de 25 000 telefonemas trocados entre os membros da quadrilha. Fizeram de tudo.
Conseguiram até mesmo ressuscitar o ex-senador Gilberto Miranda, dono de um espetacular prontuário aberto ainda nos tempos do governo José Sarney; imaginava-se que estivesse aposentado, mas constatou-se agora que continua na vida de sempre, metido com a privatização de ilhas e áreas públicas em volta do Porto de Santos.

Ao longo desses três meses, Lula não foi capaz de dizer uma única palavra sobre o caso; não se sabe, na verdade, o que poderia ter dito. Mas toda a conversa ao seu redor apresenta as Roses, os Paulos e os Gilbertos como réplicas atuais dos alvos utilizados há sessenta anos pela campanha contra Getúlio. Moral da história: sem nenhuma explicação que possa justificar o que fazem no presente, Lula e seus aliados tentam pescar desculpas em histórias do passado. Como praticamente ninguém sabe nada sobre elas, podem contá-las do jeito que quiserem.

O normal é imaginar o futuro. O PT de hoje imagina o passado. Tudo bem, mas há dificuldades claras com esse conto ─ os fatos, teimosamente, não combinam com a lição que Lula e o PT querem tirar dele.
A primeira dessas dificuldades está na simples passagem do tempo. Getúlio Vargas morreu quase sessenta anos atrás, em agosto de 1954.
Só os brasileiros que hoje têm mais de 59 anos estavam vivos quando isso aconteceu; e quem, a esta altura, pode estar interessado no assunto? A imensa maioria da população não tem a menor ideia de quem foi Getúlio, e boa parte dos que sabem alguma coisa a respeito é indiferente ao personagem e à sua obra; despertam tanto interesse, hoje em dia, quanto a batalha de Tuiuti ou as realizações do regente Feijó.
Mais difícil ainda, nessa tentativa de redecorar Getúlio Vargas como um santo para as massas brasileiras de 2013, é vender o homem como um político “democrático” ou “de esquerda”. É o contrário, justamente, do que mostram a razão e os fatos.

Getúlio chegou ao poder em 1930 por meio de um golpe apoiado pelos militares; derrubou o presidente Washington Luís e impediu a posse de seu sucessor legal, Júlio Prestes, de quem havia acabado de perder as eleições presidenciais. Dos dezenove anos que passou no governo, quinze foram como ditador.
Seu Estado Novo criou uma censura oficial, legislava por decreto e permitia prisões sem processo.
Perseguiu o movimento comunista brasileiro, que tentara derrubá-lo num levante armado em 1935, com uma selvageria que nada fica a dever aos piores momentos da repressão no Brasil.

Aprovou a utilização maciça e sistemática da tortura contra presos políticos; permanece célebre, até hoje, o pedido do advogado Sobral Pinto para que fosse aplicado o artigo 14 da Lei de Proteção aos Animais em favor de seu cliente Harry Berger, militante comunista que, na condição de ser humano, foi torturado até entrar em colapso mental.

A filosofia de Getúlio sobre esse tipo de problema, obedecida pela Justiça que o seu governo controlava, era bem curta. “O Estado Novo não reconhece direitos de indivíduos contra a coletividade”, resumiu ele em 1938. “Os indivíduos não têm direitos. Têm deveres.”
Foi, enquanto pôde, um aliado virtual da Itália de Mussolini, de quem copiou as leis trabalhistas, e da Alemanha de Hitler, a quem apoiava negando vistos a judeus que tentavam refugiar-se no Brasil.
Seu chefe de polícia e homem de confiança Filinto Müller era um aberto simpatizante do nazismo.

Em 1936, ambos entregaram à Gestapo, que a mandou para a morte no campo de extermínio de Bernburg, a alemã Olga Benario, esposa do dirigente comunista Luís Carlos Prestes e presa como ele no Brasil; Olga estava grávida no momento em que foi deportada.

Nenhum presidente na história do Brasil esteve tão diretamente ligado a um crime de morte, de forma tão comprovada, como Getúlio Vargas no caso de Olga Benario. E este é o homem que Lula apresenta hoje como seu herói.

Outro problema sério, que sempre aparece quando se tenta demonstrar que Getúlio Vargas foi vítima de um golpe aplicado pela direita brasileira, é encontrar o golpe. Getúlio não perdeu a Presidência da República por ter sido deposto num golpe da oposição extremista e conservadora, e sim porque se suicidou.
Políticos veteranos, acostumados a enfrentar conflitos durante a vida toda, não se matam por causa de discursos da oposição, manchetes agressivas na imprensa e atos de indisciplina militar; vão à luta contra quem os ameaça. Não há dúvida de que Getúlio, em agosto de 1954 e já a caminho do fim de seu mandato, dessa vez obtido pelo voto, estava numa situação extremamente complicada.

Agentes de seu governo eram acusados de crimes graves, incluindo o homicídio. Os adversários exigiam sua renúncia; cartazes com a letra “R” eram colados na fachada das residências. O principal porta-voz da oposição radical, o deputado e jornalista Carlos Lacerda, comandava no Congresso, na imprensa e na rua uma campanha incendiária por sua deposição.

Havia aberta insubordinação militar; oficiais da Aeronáutica interrogavam na base aérea do Galeão, de forma francamente ilegal, funcionários de seu governo, e generais assinavam manifestos contra ele. Getúlio tinha a seu favor a lei, a popularidade e a opção de usar a força do estado para enfrentar a desordem criada por seus inimigos.
Preferiu se suicidar com um tiro no peito no Palácio do Catete — aos 71 anos de idade, foi vencido por uma combinação fatal de amargura, desilusões, cansaço e depressão em estágio avançado.

O desfecho da história é bem conhecido. Getúlio foi substituído por seu vice-presidente, Café Filho, exatamente como previsto na Constituição. Um ano depois, na data marcada pelo calendário eleitoral, houve eleições livres e Juscelino Kubitschek, que não tivera a mínima participação na ofensiva contra Getúlio, foi eleito presidente da República, posto que ocupou até o fim do seu mandato.
Nenhum dos inimigos políticos do presidente morto, a começar por Lacerda, jamais veio a ocupar cargo algum nos governos que se seguiram.
Que raio de golpe teria sido esse, em que o presidente não é derrubado e os golpistas não põem o pé dentro do palácio? Mais difícil ainda é achar semelhanças entre agosto de 1954 e março de 2013. Não existe hoje o mínimo sinal de indisciplina militar.
O governo tem maioria disparada no Congresso Nacional, onde acaba de eleger os presidentes das duas casas.
Ninguém pede, nem de brincadeira, a renúncia de Dilma. A principal figura da oposição, caso se consiga encontrar uma oposição no Brasil, não é um barril de pólvora como Carlos Lacerda ─ ao contrário, é um político que poderia concorrer ao título de oposicionista mais camarada do mundo. Uma parte da imprensa, com certeza, não dá sossego ao governo. Mas não há um único jornalista ou dono de empresa de comunicação brigando para ser presidente da República.

Os lulistas condenados no mensalão tiveram sete anos inteiros para preparar suas defesas, e todos os seus direitos foram respeitados no processo. Ruídos falando em virar a mesa, até agora, só saíram do próprio PT e de gente como o malfadado Paulo Vieira, da trinca de “Rose”; foi pego numa gravação dizendo que os juízes do mensalão “não vão sair de lá ilesos”, que era preciso “parar o Brasil” e que “o negócio agora é tumultuar o processo”.
Manifestações de rua, só em favor do próprio governo, com ônibus fretados, lanches grátis e camisetas que o cofre público, de um jeito ou de outro, acaba pagando. As forças conservadoras, enfim, parecem perfeitamente felizes com o governo, entretidas em comprar helicópteros, touros de raça e peruas Cayenne blindadas. Estão dentro do ministério e da base aliada. Segundo o próprio Lula, nunca ganharam tanto dinheiro como em seus dois mandatos de presidente. Golpe de direita? Getúlio? Lacerda? Não dá para ver nada disso.

Lula, com o PT atrás, fala em salvar a sua biografia, seu projeto nacional e a reputação do partido. Teriam mesmo de fazer essas coisas todas, pois áreas inteiras do governo federal viraram, nos últimos dez anos, uma espécie de cracolândia para viciados no consumo ilegal de verbas, favores e empregos públicos. Para isso, porém, precisam se defender com base nos fatos do presente. Getúlio Vargas não pode ajudá-los.

16 de março de 2013
J. R. GUZZO, Veja