Usar o rolo compressor da maioria para utilizar a CPI para uma tentativa de aniquilamento político da oposição, colocando até mesmo o procurador-geral da República como suspeito no banco dos réus metafórico, como vingança pelas denúncias do mensalão, pode parecer a curto prazo vantajoso para o governo, mas será pernicioso para a atividade política a longo prazo.
Estaremos trilhando um caminho autoritário muito perigoso para a democracia brasileira.
A CPI começou mal ao misturar questões de diversos níveis. A convocação do procurador-geral da República foi um erro crasso do ponto de vista jurídico, mas é evidente que teve um objetivo político.
O depoimento de Gurgel seria um rascunho da futura acusação, verdadeiro banquete para a defesa, na definição de especialistas.
Os artigos 405, § 2º, inciso II, do Código de Processo Civil, que se aplica analogamente ao processo penal, e 207 do Código de Processo Penal não permitem ao membro do Ministério Público, entre outros profissionais, manifestar-se na qualidade de testemunha sobre os procedimentos de suas atribuições.
Estaremos trilhando um caminho autoritário muito perigoso para a democracia brasileira.
A insistência na sua convocação guarda uma intenção clara de fragilizar a atuação do procurador-geral, que fará a denúncia do mensalão no decorrer dos próximos meses.O ex-ministro do Supremo Paulo Brossard, jurista que foi também importante senador, escreveu esta semana um artigo no qual relembra historicamente as origens das comissões parlamentares como instrumento das minorias parlamentares, que vêm da Constituição de Weimar, de 1919.
O que gerou essa iniciativa foi o entendimento de que seria “desairoso” impedir ou embaraçar a investigação parlamentar, inclusive para impedir que “a truculência da maioria” estrangulasse a minoria sob as mais versadas formas do abuso de poder.
Foi por isso, esclarece Brossard, que a Constituição de Weimar inscreveu como prerrogativa da minoria criar CPI independentemente da anuência ou da malquerença do governo, bastando que um terço da Casa assinasse o requerimento e o apresentasse à Mesa ou ao presidente, independentemente do plenário e de sua maioria.
A cláusula da Carta alemã logo encontrou seguidores, inclusive na Constituição brasileira de 1934, ressalta Brossard em seu artigo.
Restringir as investigações acerca da empreiteira Delta a suas atividade no Centro-Oeste, como inicialmente propôs o relator petista, Odair Cunha, parece mesmo uma afronta à opinião pública.
Da mesma maneira, não foi bem recebida a tentativa de restringir as investigações ao diretor regional da Delta, sem citação do presidente da empreiteira, Fernando Cavendish.
Fingir que os métodos da empreiteira, de aliciamento de políticos para vencer licitações, limitavam-se a uma região do país é o mesmo que querer dizer que a ação do bicheiro Carlinhos Cachoeira era a de um mafioso regional.
Tudo que se sabe até o momento indica, ao contrário, que os tentáculos criminosos de sua organização se espalhavam pelos três Poderes e também pelos diversos níveis de poder da Federação.
O homem tinha interesses em nomear, em demitir, em até comprar siglas partidárias em todo o país. E é esse âmbito nacional de sua atividade que justifica uma investigação ampla, pois esse parece ser o primeiro caso de uma máfia em atividade tão ampla.
Apanhado em sua tentativa de restringir as investigações, o relator Odair Cunha declarou que sua intenção era colocar um ponto inicial para os trabalhos na atuação da Delta na região Centro-Oeste, área original da atividade do bicheiro Cachoeira, sem impedir que eles avancem para outros estados da Federação.
O caso dos governadores, por exemplo, que não foram contemplados especificamente no relatório, será certamente retomado mais adiante se os depoimentos e a abertura dos inquéritos tornarem irreversíveis suas convocações.
O bom indício é que não houve a tentativa de blindar apenas os governadores da base aliada e incriminar o único da oposição, o tucano Marconi Perillo, de Goiás.
Essa “isenção”, no entanto, não pode ser um sinal de que os partidos farão acordos de bastidores para que nenhum dos governadores seja convocado.
Ainda temos bastante caminho pela frente antes de chegar à conclusão de que a CPI, incapaz de promover acordos razoáveis, será um instrumento político dos governistas para constranger a oposição.
Se esse prenúncio se realizar, ficará evidenciada uma tendência autoritária do governo, ou pelo menos da parcela do governo que atua diretamente na CPI sob a coordenação do ex-presidente Lula e do ex-ministro José Dirceu.
A questão a ser decifrada é se a CPI será um organismo de apuração suprapartidário ou se terá como objetivo servir aos interesses de grupos políticos.
Merval Pereira
Fonte: O Globo, 03/05/2012