“Caríssimo Janer,
Confesso que não o
entendo às vezes. Quando o cardeal carioca Dom Eugenio Sales morreu vc o
criticou (justamente) por ter escondido subversivos comunistas na época do
regime militar.Agora vc critica o novo papa por ter feito exatamente o
contrário, ou seja, ter delatado religiosos comunistas na época do regime
militar de lá. Qual o sinal de x na equação ? Abraços e mais melhoras a
vc,
Nagib”
Longe de mim, meu caro Nagib, defender comunistas. Quem
abriga guerrilheiros e comunistas é cúmplice de assassinos, e este foi o caso de
Dom Eugenio Salles. Daí a delatar vai uma distância muito grande. Pior ainda,
delatar colegas de batina. Desde jovem, tenho me manifestado contra o comunismo.
Estudei Filosofia cercado de comunistas. Nunca me ocorreu delatar nenhum. Um
deles, guerrilheiro urbano, que pegou quatro anos de prisão militar, foi um de
meus melhores amigos.
Mais ainda: ser marxista, na época, era até
confortável. Em um debate, ninguém poderia contestar alguém afirmando: “discordo
de tua concepção marxista de mundo”. Dizer isso seria denunciá-lo, e ninguém
denunciaria um colega.
Delação é legado do comunismo. Alguém ainda lembra
de José Anselmo dos Santos, personagem dos anos 70, mais conhecido como cabo
Anselmo? Marinheiro de primeira classe, proferiu violento discurso em 1964, no
dia 25 de março, data do aniversário da Associação dos Marinheiros, que superou
de longe em radicalismo o famoso discurso de João Goulart, doze dias antes, na
Central do Brasil. Com a tomada do poder pelos militares, foi preso, fugiu da
prisão, viveu em Cuba, esteve no Chile e neste percurso manteve estreito contato
com a guerrilha brasileira no exílio. De 1971 a 73 atuou como agente duplo,
infiltrado na guerrilha rural e urbana e passou a delatar os guerrilheiros. Suas
informações, vitais para o desmantelamento da luta armada no Brasil, teriam tido
como conseqüência a morte de oito deles no Recife. Há quem fale em cem
mortes.
Cabo Anselmo entrou para a história com a pecha de traidor.
Executada a missão a que se propôs, trocou de rosto e identidade e desapareceu
do mundo dos vivos, para reaparecer recentemente, pedindo inclusive
bolsa-ditadura. No prefácio ao livro Eu, cabo Anselmo, fruto de uma longa
entrevista com os repórteres Octávio Ribeiro e Percival de Souza, é definido
como assassino de sonhos. Isso porque delatou a guerrilha de esquerda. Delatasse
os opositores a ditaduras de esquerda, seria herói.
Foi o que aconteceu
com Néstor Baguer Sánchez Galarraga, jornalista cubano de 82 anos, conforme nos
conta o jornal italiano Corriere della Sera. Amigo de praticamente todos
os opositores internos ao governo cubano - diz o jornal - ao longo das quatro
décadas em que atuou como agente infiltrado, escreveu ácidos artigos contra
Fidel. Suas denúncias levaram 75 de seus colegas a sentenças de até 30 anos de
prisão. Interrogado sobre como se sentia ao ver os amigos, com quem convivera
por décadas, condenados a tais penas por obra sua, Baguer disse "estar convicto"
de que a segurança de Cuba é mais importante.
O poeta e jornalista Raúl
Rivero, sentenciado a 20 anos de prisão, era um de seus amigos mais próximos.
"Não posso dizer que me senti feliz. Era muito amigo de Raúl e é claro que
fiquei particularmente triste em me converter no seu principal acusador. É uma
pessoa simples, que perdeu a cabeça por causa de todos os dólares que deram a
ele. Isso me deixou muito triste", disse, acrescentando que telefonou para a
mulher de Rivero depois do julgamento. Generosidade é a marca de Baguer. Manda
um amigo para os porões da ditadura e telefona para reconfortar a
mulher.
Tratado como herói pelo governo cubano, em entrevista ao
Granma orgulha-se de sua delação: "Entre as coisas de que me sinto
orgulhoso é de ter aportado algo à preservação da cultura de minha Pátria,
porque o que se tratou com estas ações subversivas foi suplantar nossa cultura,
culminar o velho projeto anexionista de absorção de Cuba por parte dos Estados
Unidos".
A tradição é antiga e data das primeiras décadas da finada União
Soviética. Nos passados anos 30, Pavel Trofimovich Morozov, apelidado de Pavlik
pela propaganda soviética, foi cultuado como herói, com direito a estátuas e
nome de escolas, em todo o mundo comunista. Qual foi o grande feito de Pavlik?
Nada menos que delatar como kulak o próprio pai, aos serviços secretos de
Stalin. Kulaks, para quem não lembra, eram os pequenos e médios proprietários de
terra, dos quais dependia a agricultura russa. Ser acusado de kulak, na época,
significava morte ou deportação.
Com o Exército mobilizado para cumprir
o processo de coletivização, milhões de kulaks foram deportados para a Sibéria e
condenados a trabalhos forçados. O que resultou em total desorganização da
agricultura e oito milhões de mortos pela fome. O destino de Trofim, o pai de
Pavlik, nunca foi esclarecido, mas parece ter sido fuzilado pela GPU, polícia
secreta stalinista, sucessora da Cheka. Tatiana, a mãe, recebeu de
Stalin,mandante último da morte do marido, uma pensão e uma casa na Criméia.
Pavlik foi em prosa e verso cantado e serviu como exemplo para milhares
de delatores mirins. "Numa montanha há um kolkoz" - diz a Canção de um Herói
Pioneiro - "Nosso camarada nasceu lá. Chama-se Pavel Morozov, nosso camarada é
um herói. Ele não permitiu que seu pai roubasse a propriedade do povo". O
cineasta stalinista Sergei Eisenstein chegou a esboçar um filme sobre sua vida.
Centenas de estátuas foram erigidas em sua homenagem em toda União Soviética.
Pavlik constou do Livro do Heroísmo e o Palácio da Cultura dos Jovens
Pioneiros, em Moscou, levou seu nome.
"Pioneiro mártir - dizia a
propaganda soviética - sua história foi contada a milhares de crianças e jovens
soviéticos. Pavlik foi um bom garoto comunista, um pioneiro que seguia sempre o
que era dito pelo Partido, destacado por sua firme convicção nos ideais
comunistas e querido dos guardas, colegas, professores e autoridades locais".
Com o que não pareciam concordar seus contemporâneos. Se o Paulinho conquistou a
glória na hagiografia comunista - e até teve uma estátua no parque Morozov, que
foi derrubada em 1991- a mesma sorte não teve em sua vida. Foi morto a pauladas
aos 14 anos, pelo próprio avô Sergei, mais um primo seu e um irmão, como
vingança à delação do pai. Sergei foi torturado, condenado e fuzilado, com mais
outros quatro réus.
O gesto de Pavlik parece ter chocado o próprio
Stalin, que teria dito: "Que pequeno suíno, denunciando seu próprio pai". O que
não o impediu de promovê-lo como o "Herói, que amava o seu Estado acima de tudo
até do próprio pai".
Em meio a isso, outro leitor me envia as declarações
de Adolfo Pérez Esquivel em defesa do novo papa. Em entrevista a BBC
Mundo, disse o ativista argentino e prêmio Nobel:
"Hubo obispos que
fueron cómplices de la dictadura, pero Bergoglio no. A Bergoglio se le cuestiona
porque se dice que no hizo lo necesario para sacar de la prisión a dos
sacerdotes, siendo él el superior de la congregación de los Jesuitas. Pero yo sé
personalmente que muchos obispos pedían a la junta militar la liberación de
prisioneros y sacerdotes y no se les concedía. No hay ningún vínculo que lo
relacione con la dictadura".
Ora, as acusações de Verbitsky não surgiram
ontem, quando Bergoglio foi eleito papa. Datam de 2005, quando o novo papa era
arcebispo em Buenos Aires. Saíram em livro, o que é grave. Mais ainda: atacavam
uma alta autoridade da Igreja, que tinha - mais que interesse - o dever de zelar
por sua reputação. Por que Esquivel não o defendeu na ocasião? Tivesse
defendido, se reportaría a essa defesa na entrevista. Por que Bergoglio não
processou Verbitsky por calúnia? Poderia ter impedido a divulgação do livro,
exigido uma retratação do autor e ainda poderia ganhar alguma grana para suas
obras pias. Não o fez. Agora é tarde.
Não li o livro de Bervitsky. Mas a
inércia do arcebispo ante a denúncia é significativa.
18 de março de 2013
janer cristaldo