José Dirceu de Oliveira e Silva escolheu uma mesa no fundo do restaurante de
um hotel caro e discreto, localizado entre os bairros do Ibirapuera e da Vila
Mariana, onde se hospeda quando está em São Paulo. Era o começo da tarde de um
sábado de novembro e ele vestia uma calça escura, camisa pólo com o decote
forrado por um estampado Burberry e mocassins sem as meias.
Chegou atrasado, se
desculpou e disse que desembarcou de viagem na madrugada, acordou quase em cima
da hora e, quando ia sair do quarto, recebeu telefonemas urgentes. Atravessou o
salão vazio encarando o visor do celular por cima dos óculos. As sobrancelhas
arqueadas lhe davam um ar de espanto.
Deu uma rápida olhada no bufê de saladas
antes de se acomodar em uma cadeira estofada com tecido florido, de costas para
a entrada. Explicou que um problema na coluna - produto das horas seguidas que
passa na frente do computador - o obriga a optar pelas de espaldar alto.
O
garçom, que o tratou pelo nome, lhe ofereceu uma garrafa de vinho. "Nem pensar",
respondeu. "Não bebo mais no almoço. Tomo vinho no máximo duas vezes por semana.
Tenho que perder essa barriga."
Ele havia ido a um casamento na véspera,
encontrado amigos e tomado espumante. Depois de descrever a festa, falou de seus
negócios. Contou que tem uma carteira de quinze bons clientes, a maioria deles
estrangeiros, aos quais presta consultoria. Os brasileiros lhe pagam entre 20 e
30 mil reais. Deu como exemplo de cliente de peso o banco Azteca, do empresário
mexicano Ricardo Salinas, que quer se estabelecer no Brasil e, como faz em
outros países, cobrar tarifa zero dos correntistas. Outro cliente é o também
mexicano Carlos Slim, o homem mais rico do mundo, que planeja implantar no
Brasil a televisão a cabo com mensalidade de 40 reais. "Mas não sou consultor
dele no Brasil", disse. "Como defendo coisas contrárias ao interesse dele aqui,
temos um acerto informal de buscar negócios em outros países da América Latina.
Eu disse a ele: 'Don Carlos, aqui não'. Podemos até trabalhar juntos, mas fora
do Brasil", afirmou. "Ele me chamou para ir à casa de praia dele, eu nem fui
para não haver mal-entendido."
Em março passado, uma reportagem de Veja
lhe atribuiu rendimentos mensais na casa dos 150 mil reais. Dirceu negou: "Eu
disse a eles que faturamento não é lucro, mas botaram assim mesmo. Quem fatura
isso embolsa menos do que a metade. Mas, na verdade, o Roberto Civita [dono da
revista] me fez foi um grande favor publicando isso: aumentou o meu
passe".
Perguntado sobre os serviços que presta ao empresário Nelson
Tanure, respondeu que foi contratado para ajudar na reestruturação da Gazeta
Mercantil e para escrever uma coluna no Jornal do Brasil. Não haveria, no
entanto, a expectativa de que, com os seus contatos em Brasília, ele conseguisse
propaganda de estatais e do governo para a TV JB e os jornais de Tanure? Dirceu
replicou com outra pergunta: "Você acha que se eu ligar para um ministro,
pedindo alguma coisa, isso não vaza em dois minutos? Eu não sou qualquer um.
Outra coisa, bem diferente, é que eu acho que se deveria ter posto propaganda na
televisão do Tanure". (A TV JB fracassou e saiu do ar poucas semanas depois de
estrear.)
Quando chegaram os pãezinhos, passou a discorrer sobre o que
acredita ser o motivo da cassação de seu mandato de deputado federal. "Tudo tem
uma explicação", disse, usando uma frase que, ao longo dos dias, repetiria em
ocasiões distintas. "Um amigo me disse e eu percebi: se eu não tivesse sido
cassado pela Câmara, voltaria aclamado, aplaudido, ovacionado. Seria facilmente
eleito presidente do PT", falou. "Estando fora do governo, o Lula teria que me
oferecer alguma coisa, uma embaixada, a presidência de uma estatal... Se eu
ainda tivesse a petulância de me candidatar à presidência da República, era
capaz até de ser eleito." E concluiu: "Como a minha absolvição, além de ser ruim
para a oposição e a imprensa, traria dificuldades para o governo, não havia
outro resultado possível".
O ex-ministro chefe da Casa Civil, que junto
com o ministro Antonio Palocci, da Fazenda, era o pilar do governo Lula, foi
cassado em dezembro de 2005, pelo voto de 293 deputados. Meses depois, foi
apontado como o "chefe da quadrilha" do mensalão pelo procurador-geral da
República, Antonio Fernando de Souza. Está inelegível até 2015, quando terá 69
anos. José Dirceu responderá pelos crimes de corrupção ativa e formação de
quadrilha. Acredita que seu julgamento no Supremo Tribunal Federal deva ocorrer
em 2009 ou 2011. "Em 2010, seria politizar ainda mais um processo que não é
jurídico, é político", disse. "Não sinto falta do governo, sinto falta das
amizades que fiz. Foi um jogo que joguei. A conta caiu no meu colo, eu sei. Eu
era o mais conhecido, o mais visado."
Na semana seguinte, em uma
manhã de calor abafado, José Dirceu foi votar na eleição dos novos dirigentes do
Partido dos Trabalhadores. Chegou ao diretório da Vila Mariana numa caminhonete
Chrysler preta dirigida por um amigo, Bob Marques, assessor do PT na Assembléia
Legislativa de São Paulo. Repórteres o aguardavam para saber sua opinião sobre a
possibilidade de um terceiro mandato para o presidente Lula. Sua namorada,
Evanise Santos, uma brasiliense simpática e extrovertida, mas discreta, se
protegeu do sol embaixo de uma marquise por quase vinte minutos, enquanto ele
falava aos jornalistas. Ao entrar, Dirceu foi cercado por petistas. Alguns
pediram para tirar fotos ao seu lado, e ele sempre se postou entre dois fãs, de
modo a poder abraçar a ambos.
Evanise se sentou sozinha numa sala,
enquanto o ex-ministro continua-va a maratona de fotos e conversas com
militantes. "Tá com botox é, Zé Dirceu?", perguntou uma mulher de cabelos curtos
grisalhos. "Não, não", ele respondeu. "É um creme que compro em Cuba, de um
tratamento da Alicia Alonso. É feito de placenta, uma beleza. Um tubinho dura
mais de mês." Ouviu todo tipo de pergunta: de como arrumar verbas para trocar o
teto de zinco do diretório até quais seriam seus planos para janeiro. "Vou ver
se fico um mês nos Estados Unidos fazendo imersão de inglês. E depois vamos para
Cuba!", exclamou.
Mesmo ganhando a vida como consultor, a política ainda
é o dínamo de José Dirceu. Nas semanas anteriores, ele havia, conforme disse,
"trabalhado bem" na campanha do prefeito de Araraquara, Edinho Silva, para a
presidência do diretório paulista. Reuniu-se com líderes locais e telefonou para
caciques do partido. Quando não está viajando, se encontra semanalmente com
Antonio Palocci, a quem considera o "melhor deputado do Congresso". Semanas
antes, os dois haviam jantado na casa do deputado João Paulo Cunha, em companhia
do ex-tesoureiro petista Delúbio Soa-res, igualmente envolvidos no caso do
mensalão. No ano passado, esteve três ou quatro vezes com o presidente Lula.
Para o vereador José Américo Dias, que teve o apoio dele na disputa do comando
petista paulistano, "não há ninguém com tanto diálogo com a militância do PT
quanto o Zé Dirceu". Tanto Dias como Edinho Silva foram eleitos.
Nos
domingos, a churrascaria Prazeres da Carne, perto do Ibirapuera, está sempre
lotada. A clientela é de famílias de classe média, com crianças barulhentas,
avós, primos e cunhados. Depois da votação no diretório, José Dirceu, que
freqüenta o restaurante há dez anos, foi almoçar lá com a filha mais nova,
Camila, de 17 anos, Evanise, o motorista e o prefeito de Manágua, Dionisio
Marenco. Foi recebido com abraços pelo proprietário, que o guiou até uma mesa
bem longe da entrada principal. Dali, ele via todo o salão. Pediram caipirinha.
"A minha é de moça, bem fraquinha", orientou Dirceu. Evanise foi fazer o prato
do namorado. Do bufê, trouxe uma farta porção de salada. Ofereceu-lhe polenta,
brincando de fazer aviãozinho com o garfo, mas ele não quis.
José Dirceu
comia o segundo pedaço de cupim quando, sem que percebesse, um homem loiro e
jovem se Aproximou e pôs a mão no seu ombro. Talvez porque imaginasse se tratar
de um conhecido, o ex-ministro sorriu quando o homem se inclinou, como que para
cochichar no seu ouvido. Com o rosto quase colado ao de Dirceu, no entanto, o
desconhecido gritou: "Seu safado, safado, SA-FA-DO!" O sorriso do ex-ministro se
desmanchou e sua expressão facial se esvaziou. Ele não demonstrou surpresa,
raiva, medo, constrangimento ou qualquer outra emoção. Ficou olhando fixo para a
frente, impassível, enquanto os berros continuavam e eram ouvidos nas mesas
vizinhas. Com a mão ainda no ombro de Dirceu, o intruso vociferou: "Sou eu que
pago minha comida! Não é o PT ou o governo, seu safado!" Pelo inesperado e pela
virulência da agressão, os que estavam à mesa ficaram paralisados e silenciosos.
A filha do ex-deputado desviou o rosto para o lado oposto ao da cena. O
motorista não tirou os olhos do próprio prato. O prefeito nicaragüense ficou
atônito.
O homem finalmente tirou a mão de Dirceu e se afastou com
lentidão. Gesticulando, de dedo em riste, continuou a berrar, mesmo de longe:
"Safado, safado, safado!" A cena durou menos de vinte segundos. A namorada e o
prefeito ainda mantinham a cabeça virada, para acompanhar o sujeito sumir no
salão, quando José Dirceu sacou o celular (um BlackBerry, no qual recebe e
responde a e-mails, se conecta à internet e, às vezes, até escreve no seu blog)
e, sem qualquer comentário, começou a manuseá-lo.
Pouco depois, Evanise
se levantou. Sem que ninguém da mesa se desse conta disso, foi atrás do rapaz,
que estava acompanhado de duas mulheres. "O que você ganha com isso, hein? Quer
brigar com ele? Chama ele num canto e fala. Agora, na frente da filha, da
família?", foi o que ela lhe perguntou, conforme me contou. "E você também é uma
safada por estar com um safado desses", disse-lhe o homem. "Estou com ele com
muito orgulho porque ele é muito mais educado do que você", respondeu
Evanise.
Passaram quinze minutos e José Dirceu pediu a nota. Os
convidados haviam largado suas sobremesas pela metade e tomado o café às
pressas. Ele pagou a conta e botou os óculos escuros. Ao atravessar a
churrascaria, com a cabeça alta e firme, foi escanea-do por todas as mesas.
"Cara-de-pau", disse uma senhora de cabelos pintados de acaju. Ao seu lado, um
homem concordava com a cabeça. Na calçada do restaurante, quando o grupo entrou
no Chrysler, um senhor de traços orientais comentou com a família: "Olha aí o
carro do PT".
Dirceu embarcou naquela noite para uma viagem a Lisboa
e Santo Domingo, na República Dominicana. Apesar de estar prevista uma escala de
apenas duas horas em Madri, ele incluía a cidade em seu roteiro quando era
perguntado aonde iria. Assim que fez o check in, na classe executiva da TAP, foi
direto para a sala VIP. Vestido com um sobretudo azul, carregando uma pasta de
uma marca francesa com seu computador e o livro
A Era da Turbulência, de Alan
Greenspan, o ex-presidente do Banco Central americano, Dirceu só reapareceu
quando faltavam poucos minutos para o avião fechar a porta. Percorreu o saguão
de embarque com os olhos vidrados no BlackBerry, sem olhar para os lados. Alguns
passageiros se cutucaram. "Sabe quem está passando aqui agora? O Zé Dirceu. Vade
retro, Satanás", disse um homem à mulher que falava ao celular. Foi o penúltimo
a entrar no avião.
Ao desembarcar em Lisboa, na manhã seguinte, entrou
numa fila confusa, na qual umas 300 pessoas aguardavam a vez com o passaporte na
mão. Com os olhos grudados no celular, tirava os óculos de grau, mordia as
hastes e empurrava a pasta com pequenos chutes, à medida que a fila avançava.
Não demorou para se ouvir: "Pilantra!" Um homem passou a fazer, em voz alta, um
discurso sobre moralidade. "É absurdo deixar esse bandido viajar." Um outro
gritou: "Tem ladrão na fila!" Um senhor vestido com um sobretudo marrom se
aproximou de Dirceu, que estava com a cabeça baixa, lendo algo no visor do
telefone, e disse: "Corrupto!" O ex-deputado não reagiu. "E tem gente que ainda
se mete com um tipo desses", falou um homem de jaqueta de couro, me encarando
com desprezo. Durante uma hora e dez minutos, Dirceu não desviou a vista do
celular.
Passado o controle, encontrou o advogado português com o qual
tem negócios, João Serra, que o aguardava com o jornal debaixo do braço e um
sorriso acolhedor. "Bem-vindo, doutor José!", saudou. "O senhor está muito
cansado? Precisa descansar! Deixe-me carregar sua mala." Dirceu concordou e
fomos para o estacionamento onde estava a caminhonete preta do advogado. Sob o
sol e a amena temperatura de 13 graus, José Dirceu cantarolou trechos de uma
melodia de jazz que tocava no rádio e comemorou: "Ah, cá estamos em Portugal!
Esse é o melhor país para relaxar. Vir para um hotel, descansar, comer bem e
namorar. Não há nada melhor". Contou ao sócio que sai do Brasil a cada 45 dias e
que fechou o ano tendo visitado a Espanha, o Marrocos, os Emirados Árabes, e os
Estados Unidos, além de ter circulado por vários países latino-americanos. João
Serra disse-lhe que o ex-presidente Mário Soares, com quem Dirceu deveria se
encontrar, havia viajado para Cabo Verde. Com a folga da agenda aberta naquela
tarde, Dirceu comemorou. "Vou aproveitar para fazer ginástica, vou fazer
ginástica aqui todos os dias", afirmou.
Como sempre faz em Lisboa, José
Dirceu se hospedou no hotel Pestana Palace, no bairro do Alto de Santo Amaro. É
uma construção majestosa, do final do século XIX, com afrescos nos tetos e
paredes cobertas com veludo. Numa das paredes da recepção, há uma galeria de
fotos de hóspedes famosos: Madonna, Sandy & Junior, Diana Krall e Al
Gore.
Seu primeiro compromisso foi um almoço num restaurante em Cascais
com seus sócios do escritório Lima, Serra, Fernandes & Associados,
especializado em direito financeiro e empresarial. Às quatro da tarde, José
Dirceu chegou ao escritório deles, no centro de Lisboa, contando sobre os frutos
do mar degustados de frente para a praia. Um empresário brasileiro o esperava.
Por vinte minutos, conversaram a portas fechadas. Em seguida, falou com um dos
diretores da Universidade de Lisboa, que estava interessado em montar um curso
Master in Business Administration, MBA, com uma instituição de ensino
brasileira. "Vou falar com a Celita Procópio, da Fundação Armando Álvares
Penteado", disse o ex-deputado. "Eles lá são muito amigos meus, fizeram um
jantar para mim outro dia. Acho que o Trevisan [o consultor Antonio Marmo
Trevisan] e o Belluzzo [o economista Luiz Gonzaga Belluzzo, presidente do
Conselho Curador da TV Brasil] também podem ajudar. Mas vocês têm que falar com
os ministros da Educação dos dois países." Durante 45 minutos, eles discutiram
estratégias para deslanchar o negócio. Mais tarde, referindo-se à reunião,
Dirceu me disse: "Não ganho nada com esse tipo de coisa, mas é interessante
porque estou ajudando a levar coisas boas para o Brasil".
No final do
dia, um Jaguar preto, de bancos de couro claros, dirigido por um jovem motorista
de gravata, esperava o ex-ministro. "Esse carro está ao seu gosto, doutor
José?", perguntou-lhe o advogado João Serra, com uma formalidade de sócio pouco
íntimo. Dirceu achou que era uma brincadeira e apenas riu. No caminho até o
hotel, ele disse que pretende se dedicar a Angola. "Meu interesse é
infra-estrutura: rodovias, telefones, telecomunicações. Temos a vantagem do
idioma, o know-how", afirmou. "Também vou abrir um escritório no Panamá. A
América Latina está cheia de bons negócios." Outro de seus sócios, o advogado
António Lamego, é amigo do general João de Matos, ex-chefe de Estado Maior do
Exército angolano. Os três haviam marcado de se encontrar, em breve, na Costa do
Sauípe para tratar de negócios.
Às nove da noite, Dirceu e dois dos
advogados chegaram ao restaurante Vela Latina, às margens do Rio Tejo.
Integraram-se à mesa o diretor da Universidade de Lisboa, um professor
socialista, dono de um instituto de pesquisas políticas, e o editor-chefe do
canal público de televisão RTP. Pediram vinho branco. "O senhor gosta de
Pera-Manca, doutor José?", perguntou-lhe um deles. Dirceu se prontificou a
acertar um encontro do jornalista com a presidente da televisão pública
brasileira, Teresa Cruvinel. "Eu ligo para ela, vocês se encontram, vai ser
muito bom trocar essa experiência", disse.
Também conversaram sobre Cuba.
O ex-ministro está convencido de que os dias do castrismo estão contados.
"Aquilo vai mudar, já está mudando", disse. "Mas os cubanos não vão aceitar o
capitalismo de uma vez. Eles viram a experiência da Europa Oriental. O que eles
querem é pouco. É poder ter três bicicletas e alugá-las. É ter o direito de ir e
vir, poder abrir um bar, alugar um quarto na casa deles. Não é muito,
não."
Os portugueses conheciam bem a política brasileira. Ao falar de
Paulo Maluf, um deles usou a expressão "rouba, mas faz". Perguntaram sobre as
eleições internas do PT e se referiram, mais de uma vez, à "inexpressividade
política" do DEM e do PSDB. O que mais os interessava era a sucessão
presidencial. Dirceu lhes disse que o PT não tem um candidato forte. Dilma
Rousseff e Marta Suplicy têm poucas chances eleitorais, ele acha. Ciro Gomes,
sim, seria um candidato de peso. No almoço em São Paulo, Dirceu elogiou o
deputado eleito pelo Ceará. "Ele foi um excelente ministro: preparado, com
iniciativa, boa cabeça política, leal ao governo e disciplinado; sempre converso
com ele", disse. "Mas o Ciro tem um problema: dá a impressão de, contrariado por
uma pergunta, ser capaz de levantar e dar um soco no jornalista."
Ali,
ele também revelou ter uma excelente relação com o governador Aécio Neves.
Jantam juntos e conversam pelo telefone amiúde. Comentou que o tucano fez um
excelente governo: "Ele botou tudo em ordem, tem uma aprovação imensa do
eleitorado". Instado a escolher entre Aécio e José Serra, não hesitou: "Posso
discordar do que o Serra pensa e faz, mas reconheço que é um ótimo
administrador. Ele é obsessivo, trabalha dezesseis horas por dia, sabe mandar e
governar. Aécio é bom, mas o Serra é melhor para o Brasil", disse. Quando foi
perguntado o que faria quanto à sucessão se ainda estivesse no governo, a
resposta também foi rápida. "Eu teria aproximado ainda mais o PT do PMDB, já
estaria tudo costurado, era só definirmos o nome do candidato em função da
popularidade", afirmou. E quem seria o candidato de Lula? "Ainda é uma
incógnita", ele respondeu. "O Lula é especial, ele pertence à família de
Getúlio, Juscelino, Tancredo: é um político que pensa muito à frente."
"E
a eleição americana, doutor José?", quis saber um dos portugueses. Enquanto
comia peixe com legumes, ele disse que "a Hillary Clinton é pior para nós. Os
democratas gostam de se meter na política interna dos países e são ligados
historicamente ao tucanato". Acenderam-se charutos. José Dirceu recusou. O sócio
Fernando Fernandes pagou a conta.
Às onze da manhã, José Dirceu saiu do
quarto com um abrigo oficial da Confederação Brasileira de Futebol, CBF, de cor
cinza, e foi à academia do hotel. Pôs uma toalha em volta da nuca e, sem tirar
os óculos escuros, fez alongamentos durante três minutos e usou aparelhos para
fortalecer os braços em séries de quinze movimentos. Quando subiu na esteira,
sintonizou um canal de notícias. Andou a passos largos e ensaiou pequenos
trotes. Cinqüenta minutos depois, já na porta, lembrou que faltaram as
abdominais. "Só sessenta, mas vou chegar a 200", disse.
Com o rosto ainda
avermelhado, gotas de suor na testa e cheio de endorfina, José Dirceu foi tomar
café-da-manhã na sala em estilo Luis XVI, onde executivos com laptops, à espera
do almoço, bebiam vinho branco sentados em sofás de veludo bordô. Evanise
telefonou. "Oi, lindinha... Tá, tá certo... Mandou o e-mail para ele? Tá bom, tá
bom... Beijinho, beijinho." Eles namoram há um ano e meio. Evanise vive em
Brasília; ele, em São Paulo. Quando se conheceram, ela era funcionária do
ministério dos Transportes. A aproximação se deu durante uma viagem oficial a
Cuba. "Eu olhando para ela e ela só ficava 'doutor para cá, doutor para lá'",
contou ele. "Linha dura, não me deu bola, não." Agora, ela trabalha na
coordenação de Relações Públicas do palácio da presidência da República, e entre
as suas funções está a de agendar visitas de escolas e turistas ao Planalto e ao
Alvorada.
José Dirceu se casou três vezes. A primeira com Clara Becker,
uma pequena empresária com quem viveu quatro anos em Cruzeiro do Oeste, no
interior do Paraná. Lá, ele morou clandestinamente nos anos 70. Usava o nome de
Carlos Henrique Gouveia de Melo, um paulista de origem judia, sujeito pacato e
torcedor fanático do Corinthians. Tiveram um filho, Zeca, hoje prefeito da
cidade, pai de sua única neta. Na década de 80, conheceu a psicóloga Maria
Ângela da Silva Saragoça. Levou-a a Cuba para que fizesse um tratamento de
fertilização. Daí, nasceu sua filha Joana, hoje com 20 anos. Nos anos 90,
casou-se com Maria Rita Garcia Andrade, ex-colega de militância política. Juntos
construíram uma casa em um condomínio no interior de São Paulo, onde Dirceu mora
com Joana. De um namoro efêmero, nasceu Camila.
O relacionamento com as
ex-mulheres é excelente. Clara Becker sempre o defende. Recentemente, ela
divulgou uma carta que mandou a Aguinaldo Silva, autor da novela Duas Caras, na
qual o vilão faz uma plástica, muda de nome e esconde tudo da mulher. O
dramaturgo havia dito que o personagem era baseado na vida de José Dirceu, e ela
lhe diz na carta: "Afirmo que nunca conheci um homem tão íntegro e honesto como
José Dirceu e considero que a omissão de sua real identidade foi uma necessidade
naquelas circunstâncias. Reafirmo que o José Dirceu foi um companheiro
ideal".
Há pouco tempo, Dirceu trocou o carro de Ângela Saragoça. No
escândalo do mensalão, soube-se que, com a intermediação do publicitário Marcos
Valério, ela conseguiu um empréstimo bancário e uma transação imobiliária
vantajosa junto ao Banco Rural, e o Banco BMG a contratou como funcionária. José
Dirceu ajuda financeiramente a mãe de Camila, que tem outras duas filhas e é
solteira. Com Maria Rita, fala constantemente ao telefone. "Eu ficaria casado
com ela a vida toda, mas uma hora o casamento acaba, o casamento tem que estar
vivo, sabe como é?", disse.
O garçom trouxe suco de laranja, croissants,
geléia e café com leite. À mesa, Dirceu atacou facções políticas à sua esquerda.
Começou pelo ex-prefeito de Porto Alegre e secretário-geral nacional do PT, Raul
Pont. "Ele fica falando que o partido não precisa de coligação... Tenha
paciência", afirmou. "O que fizemos por esse pessoal não é brincadeira. E eles
não ajudam em nada, só nos dão pau." Disse que a construção da sede do PT, em
Porto Alegre, "foi feita só com dinheiro de caixa dois. Era com mala de
dinheiro". Lembrou que quando foi feita a denúncia, que atingia em cheio o
governo de Olívio Dutra, "a gente estava com eles, não os abandonamos em nenhum
minuto".
E continuou: "Vê o que a gente fez pela Heloísa Helena. Ela
votou contra a cassação do Luiz Estevão. Votou mesmo, e por motivos
impublicáveis. Mas nunca a deixamos sozinha, defendemos ela o tempo todo, mesmo
sabendo que a história era diferente. E, depois, olha o que fazem". Bebeu um
pouco de suco de laranja e prosseguiu: "Esse pessoal é assim. Chegava para o
Delúbio e falava: 'Delúbio, preciso de 1 milhão'. Como é que alguém vai arrumar
esse dinheiro assim, de uma hora para outra?", disse, referindo-se ao
ex-tesoureiro do PT, expulso do partido sob a acusação de ter montado o esquema
irregular de financiamento de campanha. "Aí, quando não recebiam o dinheiro,
diziam que estavam sendo preteridos porque eram de uma outra corrente, de uma
outra ala, que a direção era autoritária. O pobre do Delúbio tinha que ir aos
empresários conseguir doa-ções. Aí, estoura o mensalão e esse pessoal vem dizer
que o Delúbio era o homem da mala. O que não dizem é que a mala era para
eles."
José Dirceu costuma encomendar pesquisas qualitativas de avaliação
da sua imagem. Faz isso depois de dar uma entrevista longa, para ter a
temperatura exata da repercussão. Ou quando é muito exposto na imprensa, para
saber como a população o vê. Segundo ele, um dos levantamentos recentes revela
que a maioria dos brasileiros o considera honesto. Em outro, feito com o
eleitorado do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, os entrevistados disseram
que José Dirceu não deveria cometer os mesmos erros de FHC. "Eles falaram que eu
não deveria me meter nas brigas internas do partido, deveria ter uma agenda
própria e tratar só de temas nacionais", detalhou ele. "Como o Fernando Henrique
não defende uma causa, o eleitorado acha estranho. Ele devia fazer como o Al
Gore."
Uma hora depois, talvez devido ao excesso de endorfina provocado
pelos exercícios, José Dirceu continuava animado, emendando um assunto no outro.
As notícias de que o senador Garibaldi Alves Filho tinha boas chances de ser
presidente do Senado o irritaram. "Esse Garibaldi é um gaiato", disse. "Já
trocou o guarda-roupa, deve estar arrumando os dentes, isso vai dar um trabalho
danado. Ninguém segura esses senadores, não. Eles fazem tudo por uma rádio.
Todos têm rádio. Têm sócios ocultos, laranjas. Não se dão nem ao trabalho de
colocar um pequeno empresário na frente do negócio, nada. Esse Garibaldi tem
duas rádios. Registradas na Anatel e no TSE [Tribunal Superior Eleitoral]. E
fica por isso mesmo!", lamentou. O assunto o lembrou de outro senador. "Olha o
Jefferson Péres: fica aí posando de arauto da moralidade e a mulher trabalhava
no gabinete dele, é nepotismo, mas ninguém fala nada, é tudo normal."
De
banho tomado, José Dirceu desceu para almoçar. Pediu codorna com trufas e foie
gras. A pedido, relembrou algo da sua história. Ele nasceu em Passa Quatro, uma
cidade encravada na serra mineira, que ainda tem Maria Fumaça. Saiu de lá aos 15
anos para morar em São Paulo, onde, por recomendação de um tio, trabalhou como
contínuo no escritório do então deputado Havolene Júnior. Ao contrário de seus
irmãos, que ficaram em Passa Quatro por mais tempo, ele se considera mais
paulista do que mineiro. O inconfundível sotaque caipira corrobora sua
percepção. Em 1965, entrou para o curso de direito na Pontifícia Universidade
Católica. Militou no movimento estudantil e chegou à presidência da União
Estadual dos Estudantes, a UEE*.
Em fotos da época, ele aparece com os
cabelos pretos lisos e compridos, o nariz reto aristocrático e uma postura
impávida, mundana e desafiadora. Em resumo: Dirceu era lindo. Não chega a ser
carismático, mas sempre soube como criar e manter uma rede de lealdades,
sobretudo feminina. No movimento estudantil, amigos o chamavam de "Alain Delon
dos pobres".
Em 1968, foi preso junto com outros 800 estudantes no 30º
Congresso da UNE, em Ibiúna. Quarenta anos depois, acha que foi um erro terem
esperado a chegada dos policiais. "Achamos que era melhor resistir, mas aquilo
só serviu para a ditadura fichar todo mundo e, um ano mais tarde, saber
exatamente quem deveria ser morto, torturado ou desaparecer", comentou. Disse
não ter sido influenciado pelo movimento francês de maio de 68. "Vivíamos
isolados", contou. Já em relação à Primavera de Praga, a invasão da extinta
Tchecoslováquia pela finada União Soviética, com o apoio de Fidel Castro,
levou-o a tomar uma posição: "Fui radicalmente contra. Não existe isso de um
país invadir outro. Nunca fui stalinista, nunca".
Em onze meses, passou
por quatro prisões diferentes. Foi um dos libertados na troca do embaixador
americano Charles Elbrick, seqüestrado por esquerdistas. Banido, exilou-se em
Cuba, onde, fez treinamento de guerrilha e aprendeu a atirar. "Era igual a esse
filme Tropa de Elite: o treinamento era para virar máquina de matar", lembrou.
"Mas nunca fiz os exercícios com gosto, não era minha praia."
No exílio,
fez uma cirurgia plástica que lhe salientou as maçãs do rosto e mudou o formato
dos olhos. Implantou uma prótese para tornar o nariz adunco. Voltou
clandestinamente ao país por duas vezes. Na primeira, embarcou armado com uma
pistola Brown 9 milímetros. Foi de Havana para Moscou, de lá para Praga, depois
para Frankfurt, Bogotá e Manaus. Usou um documento com o sobrenome Hoffmann -
ele esqueceu o primeiro nome. Era um passaporte verdadeiro de um judeu argentino
que havia morado no Brasil. "Era ouro na clandestinidade, tanto que renovei o
passaporte várias vezes na fronteira", contou.
Voltou para Cuba um ano
depois e fez outro treinamento: o de como viver na clandestinidade. "Aprendi a
andar diferente, a usar outras palavras, a sentar de outro jeito", contou.
"Quando eu voltei para o Brasil, se alguém gritasse 'Zé' ou 'Dirceu' na rua, eu
nem olhava. Realmente me convenci de que era outra pessoa", afirmou. Com a
anistia, voltou à legalidade. Foi a Cuba desfazer a plástica e retornou a São
Paulo. Foi funcionário da Assembléia Legislativa, retomou o curso de direito e
voltou à política. Envolveu-se na criação do PT e no movimento Diretas Já. Em
1986, foi eleito e depois reeleito deputado federal até que, em 2003, foi ser
ministro de Lula.
João Serra escutava o relato maravilhado. "Eu nunca
tive um sonho sobre o período do exílio", disse Dirceu. "Sonho com várias
coisas, mas com esse período, nada." O sócio se surpreendeu. "O doutor José
então não teve traumas?", indagou. "Eu não costumo me lembrar das coisas", foi a
resposta. "Elas acontecem e eu viro a página. Não fico no passado. Passou,
passou. Nos últimos quarenta anos, minha vida teve ciclos de dez anos. Acaba um
e começa outro. O que fica para trás, eu esqueço. Daqui a dois dias, vão me
perguntar como foi esse almoço e eu não vou me lembrar."
Quando se trata
de assuntos impessoais, no entanto, a memória de José Dirceu é excelente. Ele é
capaz de citar números, estatísticas, dezenas de nomes e situações, em cascata.
Ao pisar em Lisboa, por exemplo, falou-me sobre a quantidade de desempregados no
país, os investimentos brasileiros, o comércio bilateral com os Estados Unidos,
os negócios portugueses com outras três nações. Tudo ilustrado com cifras e mais
cifras. Ao longo dos dias, deu o mesmo quadro de outros sete países pelo menos,
sem falar nas recorrentes exposições sobre a economia brasileira, quando repete
de cor as dezenas de metas do plano plurianual do governo.
José Dirceu
foi entrevistado, naquela tarde, no escritório dos advogados, por dois
repórteres do Diário de Notícias, um dos maiores de Portugal. Eles perguntaram
antes se havia algum assunto de que não deveriam tratar. "Não, podemos falar de
tudo", respondeu. Dois dias depois, o jornal publicou a entrevista em duas
páginas, com o título "Terceiro mandato de Lula seria 'erro gravíssimo'". Depois
da conversa com os jornalistas, ele tentou marcar, pelo celular, uma audiência
entre o ex-presidente do governo** espanhol Felipe González e um candidato à
presidência de El Salvador. O telefone não funcionou direito e ele se queixou:
"Odeio essa TIM".
No caminho de volta ao hotel, Dirceu contou a João
Serra que só comprava carros usados. Depois, lembrou-se do automóvel que havia
sido colocado a sua disposição na visita anterior que fizera a Lisboa: um
Porsche Cayenne verde, com bancos de couro claros. "Era muito elegante, mas para
mim não dá", disse. "Quer dizer que o doutor José não pode ter um Porsche?",
perguntou o advogado. "Não, se eu tiver, viro notícia", respondeu o político.
Quando Dirceu entrou no hotel, João Serra me disse: "Eu tinha vinte e poucos
anos e já ouvia falar dele; é uma figura mítica para nós, ligados à
esquerda".
O vôo de Lisboa a Madri duraria menos de duas horas, mas
estava atrasado. Às sete e meia da manhã, José Dirceu desceu correndo do Jaguar,
rumo à área do check in da classe executiva da Iberia. Empurrando sua mala pelos
corredores, confundiu-se com a má sinalização dos portões. Lamentava ter comido
muito e tomado duas garrafas de vinho na noite anterior, em companhia do
deputado português Miguel Relvas, seu amigo há décadas.
Por coincidência,
a fila de embarque para Salvador e São Paulo, da TAM, ficava ao lado da que
seguia para Madri, da Iberia. Mais uma vez, foi hostilizado. "Olha quem está
ali, o Zé Dirceu! Olha que beleza, viajando no exterior", comentou um rapaz de
mochila. O ex-ministro nem olhou para ele. Chegou ao balcão, pediu uma
informação e saiu contrariado. "Olha, quanta falta de educação desse povo da
Iberia", disse. "Fui perguntar sobre a conexão em Madri e eles falaram que eu
que me virasse, que eles não sabem de nada. Depois falam que no Brasil que é
tudo esculhambado. Vou aproveitar e escrever em meu blog", falou antes de partir
para a sala VIP.
Ele ignora todas as agressões. Sua capacidade de se
abstrair em situações tão embaraçosas é impressionante. Quando falamos sobre a
hostilidade, dias depois, ele disse: "Em qualquer lugar que eu vá sempre vai
aparecer um para me xingar, mas eu já nem escuto. Converso sobre o assunto com
as minhas filhas e com o meu filho Zeca, que é o que mais sofre. É muito
sensível. Mas como eles sabem quem sou e como vivo, tenho minha consciência
absolutamente tranqüila". Para ele, há uma lógica matemática na probabilidade
dos insultos. Sua impressão é de que 40% das pessoas acham que é inocente e 20%
não têm opinião formada a seu respeito. Outros 30% não gostam dele, mas não o
hostilizam. Dez por cento vão sempre "fazer aquilo", disse, referindo-se às
agressões verbais na churrascaria e nos aeroportos.
O avião estava parado
na pista do aeroporto de Lisboa. Há pelo menos vinte minutos todos os
passageiros haviam embarcado. Esperava-se apenas um, não localizado, para que a
decolagem fosse autorizada. O piloto já cogitava a possibilidade de, por
segurança, retirar do avião a bagagem do passageiro sumido: ela poderia ser uma
bomba. Foi quando o ônibus estacionou ao lado do jato. Dele, desceu sozinho José
Dirceu com um ar preocupado. Assim que entrou, apressou-se em explicar o atraso
à aeromoça: estava na sala VIP e havia pedido que lhe avisassem quando deveria
ir para o portão de embarque, o que não ocorreu.
O vôo chegou a Madri
três horas depois do previsto, o que fez com que Dirceu perdesse a conexão para
Santo Domingo. Ao desembarcar, ele foi informado de que só haveria vôo no dia
seguinte e que, se quisesse retirar sua mala, teria que esperar quatro horas no
aeroporto. "Não, não, não posso ficar aqui, tenho muita coisa para resolver na
República Dominicana", disse. "Vou alugar um avião para o Panamá e de lá me
levam para Santo Domingo. Não dá para ficar aqui, não dá."
Foi
encaminhado com outros sessenta passageiros para um balcão onde os vôos eram
remarcados. Pelo BlackBerry, ligou para a secretária em São Paulo e disse que
arrumasse uma passagem urgente para voltar ao Brasil. Em cinco minutos veio a
resposta por e-mail: teria que gastar mais 3 600 euros. "Aí não dá", comentou. A
idéia de alugar o avião também passou a parecer estapafúrdia. A companhia aérea
ofereceu um hotel quatro estrelas ao lado do aeroporto de Barajas, a 12
quilômetros do centro de Madri, com direito a três refeições e dois telefonemas.
A mala ficaria presa no aeroporto. Seria preciso comprar uma muda de roupa e
artigos de toalete. "Para mim, o principal é comprar um hidratante", ele falou.
"Eu morro louco sem hidratante."
Aos 61 anos, Dirceu tem os cabelos
grisalhos e finos, que ajeita para trás com um pentinho verde que leva no bolso
da calça. Sua pele é lisa e brilhante, graças aos cremes, e ele nega que seja
por causa de plásticas ou aplicações de botox. Sua aguda percepção sobre a
aparência se manifesta no uso aplicado de produtos de beleza, no empenho com os
exercícios físicos, no guarda-roupa de grifes e na preocupação constante com a
perda de peso. Ele quer emagrecer, urgente, 7 quilos. Quando passa em frente a
um espelho, ou diante de um vidro com bom reflexo, José Dirceu sempre confere o
penteado e a posição do colarinho.
Na sua agenda telefônica, os nomes
viram siglas. MTB é Márcio Thomaz Bastos; LEG, Luiz Eduardo Greenhalgh; MAG é
Marco Aurélio Garcia. Ainda no aeroporto, ele telefonou para o embaixador
brasileiro na Espanha, José Viegas, ex-ministro da Defesa, para saber se estava
livre para jantar. Com a resposta positiva, a perspectiva de passar a noite em
Madri se tornou menos sombria. "Como a Marta já falou, a gente não pode repetir
porque fica feio, mas o negócio agora é relaxar...", comentou, enquanto andava
até a van que o levaria ao hotel. "O vôo foi muito barulhento, mas eu não
consegui nem brigar com aeromoça: nossa, que mulher linda."
Um carro da
embaixada brasileira foi colocado à disposição de Dirceu. Enquanto o esperava,
pediu no bar do hotel uma cerveja, batatas fritas e um sanduíche de jamón con
queso. Comentou que o melhor quadro do governo é Luciano Coutinho, presidente do
Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social, o BNDES. "Que não é
petista", ressaltou. O economista, como Dirceu, é um "desenvolvimentista":
alguém que privilegia o investimento na produção e na indústria, em vez de zelar
a ferro e fogo pela renda do sistema financeiro. Até sair do ministério, ele
travou uma luta surda com o ministro Antonio Palocci, o ponta-de-lança do
rentismo. Não tem nenhuma dúvida de que, em função da disputa, se Lula tivesse
de escolher entre ele e Palocci, o presidente o demitiria. Os dois acabaram
saindo do governo e, como eram vistos como sucessores potenciais de Lula, o PT
ficou sem candidatos de peso à presidência.
Suas relações com Lula são
camaradas, e não íntimas. Eles se conhecem há quase trinta anos, se aproximaram
mais na década de 80, mas a amizade jamais extravasou os limites partidários e
políticos. Dirceu teve um papel decisivo na transformação do PT numa máquina
para eleger Lula presidente. Foi ele quem disciplinou as diversas correntes do
partido e anestesiou as alas à esquerda, forjando a política de coligações e a
estratégia da campanha nos moldes tradicionais - com financiamento junto ao
grande empresariado e a contratação de marqueteiros custosos. Também cultivou
políticos de todos os partidos, além de industriais e banqueiros. Ainda assim,
ele e Lula tiveram uma divergência política significativa. José Dirceu defendia
que a aliança se desse a partir do PMDB, enquanto Lula privilegiou a coligação
com os pequenos partidos de aluguel. Nomeado ministro, ele fez um acordo com o
então presidente do PMDB, Michel Temer, para que o partido participasse
efetivamente do governo, com ministérios importantes. Lula desautorizou
publicamente José Dirceu, que se calou.
O toma-lá-dá-cá com a miríade de
legendas esteve na raiz do mensalão, que provocou a queda do chefe da Casa
Civil. É uma ironia da história: Dirceu perdeu o poder por articular uma
política que não era sua, era do presidente. E, com o seu homem forte fora do
governo, Lula deu meia-volta e aproximou-se mais e mais do
PMDB.
Aparentemente, ele não guarda ressentimentos de Lula, a quem sempre
defende e elogia. Contou que fazia seis meses que não via o presidente e que, no
governo, jamais ia ao Palácio da Alvorada sem pedir autorização. Também se
lembrou de situações em que sentiu "pouca interlocução" com o presidente. Uma
delas foi quando chegou à imprensa a notícia de que a Telemar injetara 5,2
milhões de reais na Gamecorp - empresa de joguinhos de computador, cujo dono é
Fábio Luiz da Silva, filho de Lula. Ele recordou uma reportagem na qual Lulinha
inventara frases suas e contava que estivera em reuniões das quais nunca
participou. Dirceu se queixou e a resposta foi surpreendente: "Ele se virou para
mim e falou: 'Ah, mas isso não tem problema, não, é só detalhe'. Eu falei: 'O
que é isso, Lulinha, você está ficando bobo? Isso é seriíssimo'".
Ele
pediu outra cerveja. O lobby do hotel era impessoal e sem graça. Uma televisão
estava ligada num canal de notícias que Dirceu olhava de quando em quando. "Para
o Lulinha, não importa a verdade", prosseguiu. "É assim: estamos aqui tomando
cerveja, neste hotel simples, à tarde. Quando o Lulinha conta essa história, ele
conta assim: 'Estavam os dois, à noite, tomando champanhe Cristal no Hotel Ritz,
em Paris'. Ele quer melhorar a história, ele fabula. O Lulinha pegava pesado."
Na ocasião, Dirceu disse ter procurado o presidente, que respondeu: "Você vai
ficar enchendo meu saco por causa do Lulinha, Zé Dirceu?" Ele tomou mais um gole
de cerveja. O motorista da embaixada havia chegado.
A filial da loja de
departamentos El Corte Inglés ficava a menos de cinco minutos do hotel. José
Dirceu disse que estava com preguiça de escolher uma roupa. Durante cinqüenta
minutos, examinou as araras da seção masculina, experimentou calças e camisas.
Levou uma Ermenegildo Zegna com um colarinho menor do que o seu, que é número
43, roupa de baixo e um par de meias. E o hidratante, é claro. No carro,
confessou que queria ter comprado uma calça comprida, mas era preciso fazer a
bainha. Comentou que havia visto um terno magnífico, por um preço equivalente ao
de um feito por alfaiate no Brasil. Dois dias depois, lamentou outra vez não ter
podido comprá-lo. Dali rumou para a casa do embaixador Viegas, no centro de
Madri.
"Não preciso nem dizer que tudo o que estou falando aqui é off",
disse-me o embaixador Viegas, enquanto bebericava uma dose de uísque. O jantar
foi alegre. Conversou-se sobre o ministério da Defesa, a crise aérea, o governo
Lula e a busca frustrada de Dirceu por um creme de cabelos da marca Keune. Foi
servido espaguete à carbonara e bebeu-se vinho tinto. José Dirceu se contorceu
em gargalhadas quando a embaixatriz Erika Stockholm, peruana de nascimento,
contou as desventuras do casal em uma praia espanhola. Jovem e esfuziante, ela
só anda de Vespa pelas ruas de Madri. Está terminando um curso de decoração de
interiores e fará a cenografia de um desfile de moda. Se fosse uma sinfonia,
Erika seria o allegro vivace. Na volta, Dirceu ainda ria sozinho das histórias
contadas pela embaixatriz. "Sabia que ela era a Xuxa do Peru?"
José
Dirceu chegou ao aeroporto carregando a sacolinha dourada do El Corte Inglés com
as mudas sujas. Era a primeira vez que repetia uma roupa. Em quatro dias e meio,
usara dois ternos, quatro camisas sociais, três gravatas, um sobretudo, uma
jaqueta de couro, uma calça de veludo, outra de brim, um mocassim, um sapato
preto, um tênis, uma camisa jeans, o abrigo de ginástica da CBF, uma bermuda e
duas camisetas. Sua mala era bem maior do que a minha.
A ensolarada Santo
Domingo, onde a temperatura média anual é de 30 graus, lembra uma cidade de
praia do interior da Bahia. As largas avenidas cortam paisagens de coqueiros,
onde barraquinhas de madeira vendem frutas. O mar azul celeste fica à uma hora
do centro da cidade, e é lá que se concentram os resorts, lotados de americanos
aposentados. Na área urbana, não há praia e a água do mar é escura como chá. Um
muro baixo separa o mar das ruas onde circulam os veículos. Na classe alta, a
maioria dos dominicanos usa bigode, pinta as unhas com esmalte transparente e
ostenta anéis e relógios dourados. As mulheres estão sempre de salto alto,
cabelos presos em coques, ou armados com laquê, e muita maquiagem.
"Eu
chego aqui e já me dá vontade de tomar rum", disse José Dirceu ao desembarcar,
depois de oito horas e meia de vôo, no acanhado aeroporto de Santo Domingo. O
ministro Miguel Mejía, um homem de 2 metros de altura que tem o rosto de uma
pintura de Botero, o esperava na porta do avião. Foram direto para uma sala
reservada, onde Dirceu entregou seu passaporte e o tíquete da mala, o que o
poupou da fila e o aliviou do peso de carregar a própria bagagem. "Isso aqui é
igual a Cuba: é o sociolismo. Tudo acontece se você conhece alguém socialmente",
disse.
O carro estava ligado e à espera do convidado. O ministro assumiu
a direção e Dirceu, que o conhece há quarenta anos, sentou-se ao seu lado. No
banco de trás havia dois seguranças e uma moça elegante, que acompanhou Mejía o
tempo todo. Conversaram sobre o presidente da Venezuela, Hugo Chávez. "El tipo
esta loco", disse Dirceu. "Eu não te falei que ele ia perder?" O ministro
concordou. Dois dias antes, Chávez havia sido derrotado no plebiscito que previa
a sua reeleição ilimitada.
Na opinião de Dirceu, o presidente venezuelano
havia feito tudo errado: ausentou-se do país no mês anterior à votação, não
tinha vantagem expressiva nas pesquisas, e acabou por dividir sua base de apoio
até perder o general mais moderado do governo, além de ter fortalecido a
oposição. Fora o fato de ter inventado o referendo em meio a uma séria crise de
desabastecimento e rumores de corrupção. "É prepotência, é ambição, é um erro
atrás do outro", disse. "Vamos combinar uma reunião de dez amigos do Chávez em
Caracas. Temos muito que conversar. É preciso valorizar a situação no Brasil.
Nós corremos o risco de perder as eleições em 2010."
José Dirceu já havia
comentado que, diante de um fracasso de Chávez, Cuba seria fortemente
prejudicada, já que, em troca de produtos bolivarianos, envia mão-de-obra
qualificada - médicos, dentistas e professores - para a Venezuela. Mejía contou
ter ouvido de alguém próximo ao presidente cubano, Raúl Castro, que o país
apoiaria a Venezuela numa reforma democrática, mas não numa ação revolucionária.
"É verdade, não acredito que Fidel concordasse com isso", disse Dirceu. Ele
recordou que, dois dias antes do resultado, Fidel Castro publicara um artigo
insinuando uma derrota. "Cuba sabe dessas coisas, o governo tem serviço secreto,
não é bobo", completou.
O carro avançava devagar pelas avenidas
engarrafadas de Santo Domingo. Boa parte da frota está caindo aos pedaços. Num
dos carros que ultrapassou o do ministro havia oito adultos espremidos e nenhum
vidro lateral. Uma toalha de banho cor-de-rosa era usada para controlar o vento.
José Dirceu mudou de assunto e disse a Mejía: "Há uma empresa brasileira, uma
das maiores, muito interessada em vir para cá. É o grupo do vice-presidente da
República, a Coteminas. Eu já conversei com o Josué, o filho do José de Alencar
que cuida dos negócios, e eles estão dispostos até a construir a
fábrica".
Dirceu chegou ao Hotel Hilton às sete da noite. Por ter o seu
nome no cadastro de hóspedes freqüentes, fez rapidamente o check in. Foi para o
quarto, no piso executivo, atualizar seu blog. Nele, Dirceu comenta notícias de
jornais ou temas que considera relevantes. Muitas vezes, publica dez longos
comentários num único dia. Seu estilo de escrita é direto, com poucas metáforas
ou firulas de linguagem. Suas análises comportam adjetivos como "lamentável",
"uma vergonha", "absurdo" e terminam com uma frase em tom de lição de moral. Em
dezembro, lá estavam suas impressões sobre a Bolívia, a Venezuela, a greve de
fome do bispo Luiz Cappio contra a transposição do rio São Francisco, a política
americana sobre o álcool, o aniversário de Oscar Niemeyer, a sucessão
presidencial, a taxa Selic, o fim da CPMF, a política de segurança pública, além
de críticas a reportagens e repórteres. Pelo seu controle, o blog tem um acesso
diário de 3 mil pessoas. Antes de publicar, ele envia os posts ao seu advogado,
José Luis Oliveira Lima, em quem confia muito, e a um amigo, o jornalista Breno
Altman. Quando acham que Dirceu exagerou nas críticas, eles o aconselham a
baixar o tom.
Às 21h40, Dirceu, de terno, parecia estar sendo engolido
pelo sofá da recepção. "Acho que esqueceram de mim", disse, cansado. Há quarenta
minutos esperava Mejía para jantar. Foi quando chegou o empresário dominicano
Johnny Cabrera, dono da Petroconsa, empresa de petróleo e construções, com quem
deveria se encontrar no dia seguinte. Ambos têm um interesse comum: etanol.
Segundo Dirceu, Cabrera tem estrutura para fazer o blend do combustível no
Caribe e, de lá, mandá-lo para os Estados Unidos, que impõem duras barreiras
tarifárias para a importação do produto brasileiro. Vinte minutos depois, chegou
Mejía, de quem Cabrera é amigo.
Após o jantar num restaurante italiano,
"com gente jovem e bonita", segundo Dirceu, ele e Mejía foram conhecer uma casa
fechada onde seria possível instalar um restaurante. "Vou trazer a churrascaria
Bassi para cá", explicou o ex-deputado. "Vai ser uma churrascaria rodízio e
butique de carnes. O lugar é perfeito, fica em um ponto turístico ótimo." Dirceu
também foi procurado por empresários paulistas para entrar como sócio numa
franquia do restaurante Floridita, de Havana, que era freqüentado por Ernest
Hemingway. O investimento seria de 4 milhões de reais. A parte de José Dirceu,
400 mil reais. "Mas estou achando muito caro", comentou.
O dia seguinte
começou com José Dirceu se exercitando na esteira. Dessa vez, em frente à janela
da academia do hotel, que dá para uma vista espetacular do mar de Santo Domingo.
Outros dois empresários remarcaram o encontro que teriam com Dirceu, já que ele
havia atrasado em um dia sua chegada à cidade. O presidente da República, Leonel
Fernández, também estava em um compromisso inadiável, o que o deixou com a tarde
livre. Ele disse que aproveitaria para escrever seu blog e atender ligações
urgentes, como a de um alto executivo da Parmalat, que o chamou pelo
celular.
Às dez e meia da manhã, recebeu o amigo Daniel Herrera, a quem
chama de Olaf, seu nome de guerra. Herrera é um cubano com um enorme bigode
branco que disfarça a falta de dentes. Ele vestia uma guayabera com seu nome
bordado no bolso e fumava feito uma chaminé. Olaf é consultor do presidente da
Nicarágua, Daniel Ortega. Nos anos 60, foi encarregado pelo governo cubano do
contato com os brasileiros exilados na ilha. Foi ele quem sugeriu que Dirceu
usasse na clandestinidade o codinome "Daniel". Com um sorriso, em seu espanhol
impecável e forte sotaque brasileiro, José Dirceu me apresentou como "una
periodista de la prensa burguesa". Foi a única vez que ele usou uma expressão
marxista. Olaf fez graça: "Pelo menos é a imprensa que paga mais, não
é?"
O cubano pediu notícias dos companheiros do passado, como Marco
Aurélio Garcia. Dirceu deu informações sobre uns e emendou: "O franco-argentino
está se metendo demais, vou dar um pau nele no meu blog". "Quem?", quis saber
Olaf. "O Luiz Favre, o Felipe", respondeu Dirceu, referindo-se ao nome de
batismo - Felipe Belisario Wermus - do marido da ministra Marta Suplicy.
Conversou-se sobre Cuba, Venezuela, Nicarágua e sobre a beleza das mulheres
brasileiras. Olaf usou a seguinte imagem para descrever a atual realidade
política em Cuba: "O Raúl contrata uma orquestra para convocar a população e
ninguém aparece. O Fidel toca um apito e o lugar enche".
Ao se
despedirem, Dirceu fez o amigo prometer que iria ao Brasil cuidar dos dentes.
Seu dentista é o paulistano Fábio Bibancos, que é conhecido como o "dentista das
estrelas", tal a quantidade de celebridades que atende, como os atores Fábio
Assunção e Ana Paula Arósio. "É um cara sensacional, alguém que eu não conhecia
e de quem virei amigo. Ele me defende muito", afirmou. "Tenho certeza de que ele
vai ter o maior prazer em fazer isso", disse. Olaf mostrou-se preocupado com os
custos e a hospedagem no Brasil. "Você é meu convidado, não precisa se preocupar
com nada", disse ao amigo.
José Oviedo, a quem o presidente Lula chama de
"Gordito Oviedo", foi conselheiro político da República Dominicana no Brasil.
Vestido com uma guayabera amarela de mangas compridas e andando com certa
dificuldade devido ao sobrepeso, ele foi encontrar José Dirceu no lobby do
hotel. Seu português é perfeito. "O Dirceu era um mito. Era o sedutor da América
Latina", contou-me. O elogiado olhava para o lado e ria. "A vovó do rock'n'roll,
a Rita Lee, não falou que ele era o dirigente de esquerda mais gostoso do país?
Então, era assim que ouvíamos falar dele em todos os lugares." Dirceu atalhou:
"O que é isso, Gordo, imagine..."
Juntou-se à turma o ministro Mejía.
Entraram em dois carros e partiram para o centro da cidade. Foram almoçar em uma
churrascaria lotada, cuja decoração natalina incluía cabeças de alces enfeitadas
com gorros de Papai Noel. Houve uma pequena espera e o grupo encostou-se ao
balcão de madeira escura. José Dirceu ria, brincava com os garçons e insistiu
para que eu experimentasse de seu copo o rum Imperial, que bebia com uma pedra
de gelo e limão. "Você nunca provou uma coisa dessas na sua vida", disse-me. De
fato, o rum era ótimo.
Enquanto se desviava do entra-e-sai de clientes,
Dirceu conversou com Mejía sobre a vantagem de ter um avião Citation. Depois de
dez anos, argumentou, sai mais barato ser proprietário de um jatinho do que
alugá-lo. Um rapaz com colete e chapéu avisou que a mesa estava pronta. Assim
que se sentou, Dirceu disse: "Gooooordo! Estamos na América Latina e ninguém
está falando nadaaaaa!", exclamou com as duas mãos espalmadas em cima da mesa e
um sorriso escancarado. Numa conversa paralela, perguntei a Oviedo como Dirceu
lidava com os xingamentos públicos. "Para ele, é muito difícil", respondeu com
uma expressão de desalento.
Uma mulher magra, de cabelo à Chanel, passou
ao lado da mesa. José Dirceu a seguiu com os olhos até que ela sumisse de seu
campo de visão. "Gordito, aquela mulher estava me secando com os olhos!",
comentou. "Olha só, ela tem uns 50 anos, mas nem parece. Eu me casava com ela!",
brincou. Em seguida, contou que, numa viagem ao Peru, ao tomar o café-da-manhã
no hotel, foi abordado pelo garçom. Uma hóspede havia perguntado sobre el
hermoso da mesa ao lado e estava interessada em saber se poderia conhecê-lo.
"Quinze minutos depois, chegou o marido", contou às gargalhadas. Ninguém quis
sobremesa. O ministro Mejía pagou a conta.
A conexão na Cidade do Panamá,
de onde sairia o vôo para São Paulo, era de apenas uma hora. Mais uma vez, José
Dirceu escolheu se sentar longe do portão de embarque. Lamentou não ter
conseguido ler uma página sequer do livro de Alan Greenspan.
Perguntei
como conciliava a atividade de consultor de empresas privadas com sua trajetória
socialista. Afinal, ele quer hoje derrubar, reformar ou incrementar o
capitalismo? "Tudo o que eu fizer vai ser ligado ao capitalismo", ele respondeu,
grave. "Fui chamado para participar de vários processos de fusões e aquisições e
não aceitei." Recusou por ideologia? Ele fez silêncio, pensou, e continuou:
"Olha, eu não tenho condição de escolher o que fazer e o que não fazer. Eu faço
o que dá. Depois do que aconteceu comigo, eu não tenho muita escolha. Meu nome,
o que vai ficar de nós para a História, tudo isso é muito complicado. Eu estou
muito pessimista, muito pessimista quanto ao meu futuro". Um grupo de chilenos
sentou-se ao nosso lado, mas ele prosseguiu: "Por isso, quero ficar longe, quero
trabalhar fora do Brasil. Eu não roubei, não tenho dinheiro guardado, não tenho
nada. Tenho que trabalhar para sobreviver. A Receita devassou minha vida por
dezessete meses e não achou nada. Essa coisa do Bassi, o que eu ganho com isso?
Nada. Mas eu sinto que estou melhorando o Brasil, ajudando as empresas
brasileiras". Fez outra pausa e finalizou: "Eu tenho que trabalhar". Foi a única
vez na viagem que ele pareceu emocionado e triste.
Eram sete da manhã
quando o avião pousou no aeroporto de Guarulhos. Os passageiros, ainda
sonolentos, olhavam José Dirceu com indiferença. Ele ignorou o free shop e foi o
primeiro a cruzar o portão da alfândega.
A casa de José Dirceu, em um
condomínio de classe média alta em Vinhedo, a 30 quilômetros de Campinas, fica
no alto de uma colina, de onde se vê um bosque de pinheiros. Fazia apenas sete
horas que havia chegado do exterior, mas já comandava um almoço para amigos,
assessores e familiares. Um churrasqueiro contratado cortava apetitosos pedaços
de picanha, frango e lingüiça. Bebia-se prosecco e ouvia-se jazz em alto
volume.
A casa de dois andares, pintada de amarelo, não tem grandes
luxos. A decoração é no estilo rústico, com armários, cristaleiras e um aparador
em madeira pesada. As paredes internas também são amarelas. Na sala de jantar,
em frente à mesa de doze lugares, há um único quadro: um espantoso peixe
cabeludo, verde, de meio metro de comprimento, com moldura barroca. A obra é
assinada pelo senador José Sarney.
Na área da churrasqueira, a mais
usada, há duas mesas de madeira, uma geladeira industrial com a propaganda de
uma marca de cerveja na porta, e um forno de pizza. A área fica em frente a uma
piscina em forma de grão de feijão. José Dirceu apareceu sem camisa, de bermuda
cáqui e chinelos azuis. Estava furioso com um ar condicionado que fora instalado
em sua ausência. "Quem foi o retardado que pôs isso desse jeito?", perguntou à
namorada Evanise, que havia chegado de Brasília na véspera e não sabia do que
ele falava.
As duas filhas de Dirceu e a de Evanise, que tem 14 anos,
tiravam fotografias de si mesmas, dos convidados e do casal de namorados, que se
abraçava e trocava confidências. Quando o almoço foi servido, José Dirceu passou
a circular entre as duas mesas, contando episódios da viagem por três países em
seis dias. Ao detalhar os vinhos que tomou e os restaurantes onde jantou, disse
que todas as despesas foram rateadas com os sócios lusitanos. "Lá é tudo
contabilizado, tudo certinho, não é igual aqui", afirmou. Na Europa, seus ganhos
estão condicionados aos resultados dos negócios que consegue fechar. No caso, 1%
da negociação que deu certo. "No Brasil, os contratos são de 30 mil reais por
mês, mas só ganho 0,5% de success fee", disse.
Quando finalmente se
sentou, foi na cadeira da elétrica Rosemary Noronha, assessora especial do
gabinete pessoal da Presidência, em São Paulo. Amiga do presidente Lula (a quem,
como Dirceu, só chama de "Luiz Inácio"), ela estava com um iPhone novinho que
atraiu a curiosidade de todos.
Ao retomar o xingatório na churrascaria,
ocorrido uma semana antes, Evanise me disse: "Não entendo como ele agüenta,
sabe? Como não dá um soco na cara de um sujeito desses. Eu não consigo entender.
Uma vez, a gente estava no aeroporto da Venezuela e um homem começou a gritar
que ele era chefe de quadrilha, essas besteiras. Ele não faz nada, eu fico
louca". "Não pode, Eva", disse o jornalista Hélio Doyle, que foi secretário de
governo de Cristovam Buarque, no Distrito Federal. "Se ele faz isso, perde
totalmente a razão."
Um dos pretextos do churrasco era discutir os
próximos passos de um documentário sobre a atuação de José Dirceu como líder
estudantil. Há dois anos, o produtor e diretor de televisão Abelardo Blanco tem
gravado cenas, inclusive de uma viagem do ex-deputado a Cuba. O grupo falou
sobre uma nova ida a Havana. Dirceu deu uma olhada numa lista de militantes do
Movimento*** de Libertação Popular, o Molipo, no qual militou, e deu palpites
sobre quem deveria ser entrevistado. "Como alguém já disse, aqui só tem
presunto", falou com expressão séria. Dos 32 da lista, havia apenas cinco
sobreviventes. Combinaram de ir a Cuba em fevereiro.
O anfitrião abriu um
vinho de sobremesa para acompanhar as musses de limão e maracujá. O café foi
servido. José Dirceu estava sonolento e com olheiras. A filha Joana veio avisar
que ia sair e ele aproveitou a deixa: "Gente, vamos acabar logo porque estou
muito cansado, preciso dormir".
No final de janeiro, está marcado seu
primeiro depoimento oficial sobre o mensalão. Ele será ouvido na Segunda Vara da
Justiça Federal, em São Paulo.
11 de agosto de 2012
* Correção em relação à versão
impressa, na qual se lia "UNE".
** Correção em relação à versão impressa, na
qual se lia que José Dirceu tentava marcar um encontro entre o ex-presidente
espanhol Felipe Gonzalez e o presidente de El Salvador.
*** Correção em
relação à versão impressa, na qual se lia "Movimentação".