Que fazer? — perguntava-se outro dia
José Hildebrando Dacanal, evocando, talvez conscientemente, a célebre pergunta
de Lênin. — Vomitar ou apoiar a fúria demente de Janer Cristaldo? Referia-se, é
claro, à perplexidade das esquerdas ante as transformações na União Soviética e
no Leste europeu. Por enquanto, deixo entre parênteses minha “fúria demente”.
Mas a alternativa é falsa. Vomitar é preciso e apoiar minhas denúncias também.
Desde os dias em que me conheci por gente e optei por escrever, venho
denunciando o totalitarismo, não importa sob qual forma se apresente. Naquela
idade em que alguém se desvencilha do deus cristão e tende a suprir o vazio de
fé com o marxismo, eu estudava Filosofia e História da Filosofia, disciplinas
que me afastaram a tempo do novo dogma. Como sempre foi anátema para um escritor
deste século não ser marxista, pelo menos nos países de influência católica, ao
longo dos últimos vinte anos perdi amigos, empregos, editores e tribunas. Sempre
por escrever e dizer o que penso, sem preocupar-me com ideologias em
moda.
Em 1968, no falecido Correio do Povo, escrevi uma sátira aos
comunistas de café, intitulada “Marxismo Gaúcho Contemporâneo”. Fui excluído do
mundo dos vivos na universidade e acabei sofrendo prisão e interrogatório, por
ordens de um delegado analfabeto que julgou, pelo título, que eu fazia a
apologia do marxismo. De lá para cá, fui fichado e interrogado no DOPS, enquanto
as ditas esquerdas me estigmatizavam como agente do SNI. Quando comecei a
viajar, não houve mais dúvidas: “ele é da CIA”. Enfim, pelo menos uma
promoção.
Meus livros foram sistematicamente ignorados pela crítica
tupiniquim e minhas traduções sabotadas. Em certas universidades ou redações de
jornal, há autores que não são estudados ou mencionados por terem sido por mim
traduzidos. Tudo isto porque cometi este pecado mortal: jamais fui marxista.
Pior ainda, ousei criticar a nova religião. Meu consolo foi saber que sempre
estive em boa companhia: Panaïti Istrati, Eugéni Zamiatine, André Gide, Arthur
Koestler, George Orwell, Albert Camus, Raymond Aron e muitos outros que sofreram
a conspiração do silêncio conduzida pelos cultores da peste do século. Mas os
ventos estão mudando. E se, forçados pelos fatos, determinados intelectuais
tiveram de reformular suas convicções, entre eles não estou.
Eles, por
sua vez, aí estão, usufruindo de altas mordomias nas estatais criadas pela
ditadura militar, ocupando postos-chaves na administração federal, estadual e
municipal, arrotando teorias assassinas nas universidades e igrejas, censurando
na imprensa, nas editoras e em toda e qualquer tribuna qualquer autor que
conteste seus dogmas. José Ribamar, em sua cabeça-chatice, entendeu-os muito
bem. Foi semeando stalinistas pela Funarte e fundações outras, TVs ditas
educativas, Boeings presidenciais e mordomias diversas e deu no que deu: os
aguerridos comunossauros do PT não disseram sequer uma palavrinha, na última
campanha eleitoral, contra os desmandos do governo Sarney. E ainda há quem diga
que nordestino é burro!
Eles mentiram, ocultaram e deturparam fatos,
assassinaram e censuraram durante décadas. A censura das esquerdas no Brasil foi
mil vezes mais eficaz que a censura dos militares. Estes proibiam livros que
continuavam circulando clandestinamente, e a proibição fazia vender mais do que
qualquer campanha publicitária. As esquerdas proibiam autores e desta vez a
censura era pra valer. Quem a ignorasse, virava leproso da noite para o dia.
Nelson Rodrigues, talvez o estilista maior de nossas letras, foi vítima
paradoxal desta censura. Seu teatro, enquanto crítica feroz dos modelos
comportamentais da classe média, foi louvado e difundido no País todo. Suas
crônicas, onde encontramos o melhor de Nelson, jamais foram reeditadas. Pois
cometia o sacrilégio de neleas ridicularizar os sagrados dogmas do stalinismo
tupiniquim.
Em suas Memórias — livro que recomendo a todo leitor
que queira entender um pouco deste século — Raymond Aron evoca uma pergunta do
norueguês Jon Elster, seu “réu” em uma defesa de tese na Sorbonne: em que
condições se pode ser simultaneamente marxista-leninista, inteligente e honesto?
Para Elster, pode-se ser marxista-leninista e inteligente, porém neste caso não
se é intelectualmente honesto. Como também há marxistas-leninistas sinceros, mas
estes carecem de inteligência. Trocando em miúdos a proposição de Elster, temos
que todo marxista-leninista ou é burro ou é mau-caráter. A Revolução do Nove de
Novembro passado foi, para os últimos românticos, como uma dessas injeções que
dão melhor transparência a um órgão radiografado: tudo se tornou mais claro. Os
pretensos heróis não passavam de grotescos celerados e o tal de paraíso
socialista, em prosa e verso cantado, não passava de um inferno
mal-administrado.
Se não, vejamos. Segundo Algert Likhanov, presidente do
Fundo Soviético para a Infância, anualmente 900 mil menores são detidos pela
polícia por vadiagem nas grandes cidades soviéticas, logo lá naquele mundo onde
Jorge Amado e Neruda nos juravam que as crianças eram felizes e sem problemas.
Calcula-se que na União Soviética existam uns três milhões de desabrigados,
entre eles 20% de mulheres e 2% de profissionais com formação universitária.
Segundo o Konsomolskaya Pravda, o jornal da Juventude Comunista, “a
pobreza é uma realidade, a nossa tragédia nacional”.
O Notícias de
Moscou vai mais longe. Calcula-se que 15% da população soviética, estimada
em 287 milhões de habitantes, tem renda mensal de 75 rublos, insuficiente para
viver. Ou seja, temos 43 milhões de soviéticos na miséria. Como é de supor-se
que tal catástrofe não exista apenas de Gorbachov para cá, espanta-nos que
viajantes deslumbrados, tipo freis Bettos e Boffs, não tenham visto tais
“pecados sociais”, conforme o jargão dos sedizentes teólogos da
libertação.
“Minha viagem até transcorreu bem, mas que decepção em minha
chegada” — escreveu-me um dia uma amiga francesa muito querida -. “O que mais me
chocou foi, em torno às cidades, a pobreza das pessoas, os pobres são amontoados
em barracos de madeira e as crianças se arrastam na imundície. Neste momento, o
país está paralisado pela greve dos comerciantes, não se encontra mais manteiga
e a carne é escassa. Os preços dobraram em um mês e todo mundo deseja a queda do
governo”.
Pelo teor da carta, o leitor já terá intuído que não estamos em
Moscou, pois há comerciantes e greves, sem falar no desejo da queda do governo.
Esta carta, que agora pinço de meus arquivos, está datada de Concepción, Chile,
1972, um ano antes da queda de Allende. Dezesseis anos depois, ao descobrir o
Chile, encontrei um país rico e sem problemas sociais, com plena liberdade de
imprensa, expressão de pensamento e eleições livres. Escrevi sobre o que vi e
quase perdi meus últimos amigos. “Pode até que seja assim” — disse-me um deles,
que jamais esteve lá -. “Mas não podes escrever isso”.
Escrevi. Não
participo daquela tese sartriana de que os amigos devem concordar em tudo ou
então não há amizade. Estávamos em 88, um ano antes do Nove de Novembro, quando
condenar Allende, Castro ou o Muro de Berlim constituía crime de
lesa-humanidade. De 88 para cá, se não me engano nas contas, transcorreram dois
anos. Vejamos então esta pérola, publicada a 23 de março passado, não no New
York Times, mas no Notícias de Moscou:
Segundo Yuri Korolev,
técnico que trabalhou na equipe econômica do presidente Salvador Allende (quer
dizer então que havia apparatchiks russos na espontânea revolução chilena?), o
modelo econômico tentado por Allende fracassou, e o que foi implantado pelo
general Pinochet “é perfeitamente exemplar”. Para Korolev, o modelo chileno de
Pinochet, que deixou o país praticamente à margem da crise latino-americana,
poderia ser uma das alternativas estudadas pelos dirigentes soviéticos para a
difícil transição do centralismo à economia de mercado. Como detesto
estatísticas, deixo por conta do economista russo seu entusiasmo pelos
indicadores — segundo suas palavras — do grande sucesso chileno:
“Nos
últimos cinco anos, o Chile teve um crescimento de 5 a 6% e no ano passado
chegou a 10%. A agricultura responde por menos de 20% do PNB chileno e a
produtividade industrial supera dez mil dólares anuais, o que é mais de quatro
vezes a taxa da URSS”. Tais afirmações, é bom lembrar, não são do Cristaldo, mas
do Korolev. As pedras, por favor, enderecem-nas ao tovaritch
moscovita.
Em A Insustentável Leveza do Ser, falando dos regimes
comunistas da Europa Central, Milan Kundera considera que tais regimes não foram
moldados por criminosos, mas por entusiastas convencidos de terem descoberto a
única via para o paraíso. “E eles defendiam corajosamente esta via, executando
para isso muita gente. Mais tarde, tornou-se claro como dia que o paraíso não
existia e que os entusiastas eram assassinos”.
Surgem então as desculpas:
nós não sabíamos! Fomos enganados! Nós acreditávamos! No fundo do coração, somos
inocentes! Outra variante, não registrada pelo escritor tcheco, mas muito
repetida nestes dias no Brasil, nos lembra o corvo de Poe: não lembro mais, não
lembro mais. Como se fosse possível esquecer ou ignorar, nesta era das
comunicações, as purgas de Stalin, o pacto germano-soviético, os gulags, o caso
Kravchenko, o XX congresso do PCUS, as invasões da Hungria e Tchecoeslováquia,
isso sem falar na falta crônica de comida e liberdade que sempre caracterizou os
regimes socialistas.
Mas Kundera, através da perplexidade de seu
personagem Tomas, vai adiante. Para este médico caído em desgraça, a questão
fundamental não é: eles sabiam ou não sabiam? E sim: somos inocentes por não
sabermos? Um imbecil sentado sobre o trono é isento de toda responsabilidade,
apenas por ser imbecil? “Édipo também não sabia que dormia com a própria mãe e,
no entanto, quando compreendeu o que havia acontecido, não se sentiu inocente.
Não pode suportar o espetáculo da desgraça que havia causado por sua ignorância,
furou seus próprios olhos e, cego para sempre, abandonou Tebas”.
As
esquerdas têm uma invulgar sensibilidade para detectar ditaduras, desde que
delas não participem, é claro. Na aldeia global, bastam não mais que dez dias,
quando não dez horas, para que um regime seja condenado, urbi et orbi, como
ditatorial.
Curiosamente, necessitaram de mais de meio século para intuir
que, de 1917 para cá, os regimes socialistas sempre constituíram férreas
ditaduras e produziram mais prisioneiros e cadáveres do que Hitler ousaria
sonhar.
Minha fúria demente? “O anticomunismo sistemático que alguns me
atribuem” — escreve Aron — “professo-o sem consciência pesada. O comunismo não é
menos odioso do que o era o nazismo”. Minha fúria nada tem de demente. É a justa
indignação de um observador atento que vê seus companheiros de geração
defendendo, com a convicção de um santo, as piores tiranias que dominaram o
século. E se algum dia deixar de indignar-me — como dizia Gide — será sinal de
que estou envelhecendo.
Que fazer? Às esquerdas, não se pede que furem os
olhos, como Édipo. A medicina contemporânea tem técnicas extraordinárias de
correção de miopia e raspagem de catarata. Mas a história deste século deverá
ser revista sob uma nova ótica. Ou então, por favor, abandonem Tebas.
* Porto Alegre, RS, 09.10.90
07 de junho de 2012
janer cristaldo