Enquanto nossas autoridades seguem mergulhadas na momentosa discussão para saber se a transformação do tiro na cabeça à queima roupa numa espécie de esporte nacional é mesmo função da pobreza e se há alguma coisa que se possa fazer a respeito mais que manter seus praticantes soltos pelas ruas do Brasil enquanto se distribui dinheiro por aí, o mundo rico nos dá provas cada vez mais veementes de que a civilização não é mais que medo da polícia, bastando tirar de cena a perspectiva da cadeia para que regressemos ao estado selvagem.
Não é que o dinheiro não é capaz de curar-nos do que somos. Nem mesmo a educação é capaz disso por si só.
Ao contrário, os fatos são de molde a demonstrar que dinheiro e conhecimento sem polícia fazem dos mais refinados e ricos entre os exemplares da espécie apenas predadores mais eficientes.
Os produtos da Apple, por exemplo, revolucionaram todos os processos humanos, dos atos mais prosaicos do cotidiano ao modo de se abordar a mais alta ciência. E Steve Jobs, seu criador, tem sido saudado, com toda a propriedade, como o maior gênio da raça depois de Leonardo da Vinci.
Mas bastou que as ferramentas que ele próprio ajudou a inventar universalizassem as leis da economia – que ritualizam os nossos instintos básicos – antes que pudessem universalizar as leis da política – que ritualizam os diferentes graus de superação desses instintos básicos que as sociedades humanas foram capazes de atingir – para que ele próprio indicasse aos seus concorrentes a oportunidade que isso abria de voltar impunemente ao mesmo grau de exploração do homem pelo homem dos primórdios da Revolução Industrial.
E lá migrou a empresa símbolo do auge da sofisticação científica atingida pela humanidade para os mais remotos grotões da China para explorar a miséria – ironicamente criada pela utopia socialista – do trabalho quase escravo de crianças para cima, em esquemas marcados por tais extremos de vilania que chegaram a produzir ondas de suicídios em massa.
O seu espetacular “sucesso” como “empreendedor” – tinto de sangue pouco importa – arrastou para os antros de miséria do mundo os empregos dos seus próprios conterrâneos que, não obstante, babavam de admiração por esse grande feito “empresarial” enquanto compravam baratinho os produtos desse esquema vil com seus salários reduzidos pela competição dos pobres do mundo.
Graças a essa mesma oportunidade de fazer sem medo da polícia o que os levaria para a cadeia em seus próprios países, os mais “sensíveis” e “criativos” designers de moda exportaram a produção das roupas e acessórios destinados a tornar a vida mais confortável e glamurosa para “fábricas” sórdidas nas Bangladeshs da vida onde trabalhadores famintos que imploram por um salário de US$ 38 por mês se amontoam em tugúrios onde mourejam de sol a sol sob o risco de morrerem envenenados ou esmagados por desabamentos.
Benetton, Mango, Primark, H&M, Tommy Hilfigher, Calvin Klein, Tchibo, The Children’s Place, Monsoon, DressBarn ou a nossa C&A, foram algumas das marcas que, por tras de seus desfiles e editoriais de moda recheados de beleza e abundância, tiveram de se desculpar pelo último desastre do gênero. Nada que outros que ainda não tiveram tanto destaque não façam também.
Mas suas lojas espalhadas pelo mundo continuam abarrotadas de gente ansiosa por desfilar por aí um look cool a preço conveniente.
Bangladesh que se lixe!
O mesmo caso da nossa Vale do Rio Doce, que faz com os seus carvoeiros de Moçambique o que nem no Brasil é permitido fazer…
A civilização, repito, não é mais que medo da polícia. Está na hora, portanto, de nossas autoridades meterem mãos a obra em vez de seguirem esperando, com as nossas e as cabeças de nossos filhos como alvo, que alguma espécie de milagre convença os assassinos que andam a solta por aí a nos entregar de livre e espontânea vontade aquilo que nem os mais ricos, sensíveis e educados representantes da espécie entregam senão contra uma muito concreta certeza de acabarem seus dias numa jaula se resistirem a faze-lo.