Para quem já deu
mais de sessenta voltas em torno ao Sol, os acontecimentos de infância e
adolescência pertencem a um passado já distante, do qual as atuais gerações já
nem têm idéia. Nasci na época da linotipia, tecnologia que há muito foi para os
museus. Fiz curso de datilografia. Suponho que hoje muito jovem jamais tenha
visto uma máquina de escrever. Sou da época pré-televisiva, em que as pessoas –
no interior, pelo menos – saíam de suas casas para conversar e fazer o footing
em torno à praça. Isto, hoje, é da alçada da História. O homem de mais idade
sempre tem um pouco de historiador.
Com a passagem do tempo, observamos o
tempo. Há as mudanças bruscas: o automóvel, a televisão, o computador. Esta
última, a meu ver, foi a mais rápida e transformadora. Em meados de minha vida,
isso de falar com alguém vendo seu rosto e movimentos em uma tela era tecnologia
de Guerra nas Estrelas. Hoje faz parte da
vida de cada um, como algo que sempre tivesse existido.
E há também as
mudanças mais sutis, só ao alcance do observador mais atento. Se contemplo o
mundo contemporâneo a partir de uma ótica de minha juventude, tenho de convir
que, nas últimas décadas, não foi só a nuvem de poluição que aumentou sobre as
cidades. Uma outra nuvem bem mais nefasta se instalou hoje sobre todas as urbes,
a espessa nuvem da mediocridade e da conseqüente valorização do
fútil.
Houve época em que admirávamos o homem de boas leituras, o cultor
da boa música e da grande arte. Cada cidadezinha do interior sempre tinha um
latinista, que podia ser o pároco, o juiz de direito ou algum advogado. Eram
pessoas respeitadas, que gozavam de uma aura de sapiência. Hoje, nem os padres
conhecem latim, a lingua franca da
Igreja.
Na Dom Pedrito de meus dias de adolescente, então com 13 mil
habitantes, tínhamos o Dr. Márcio Bazan. Cada um de seus artigos, publicados no
Ponche Verde, o vibrante matutino local,
como dizíamos ironicamente, tinha mais latim que português. Nós fingíamos que
entendíamos e tínhamos pelo latinista um respeito sagrado.
Por osmose,
arranhávamos um grego básico. As mulheres não tinham traseiro, mas lordo. Quando
eram lindas, medíamos suas belezas em mili-helênios, isto é, a capacidade que
tem uma mulher de fazer naufragar mil navios. E gostávamos de lascar uns
quousques tandems de vez em quando. Ouvía-se rádio, mas a cultura era
transmitida basicamente pelos livros. Não havia, naqueles dias, a indústria da
literatura infanto-juvenil. No máximo, Monteiro Lobato. Não nos era estranho, lá
pelos quinze anos, começar a ler os clássicos.
A época era da vitrola,
mas se cultivava a boa música, tanto popular como erudita. Na época dos CDs e
iPods, curte-se mais bate-estaca que outra coisa. A indústria do best-seller e
do show business invadiu o mundo contemporâneo e hoje soa à heresia não gostar
dos Beatles ou Rolling Stones. Multidões que nada ou quase nada entendem de
inglês se aglomeram aos milhares, erguendo as mãos aos novos ídolos como os
jovens alemães erguiam as suas para Hitler ou aplaudem o papa. Sou visto, por
alguns de meus interlocutores, como elitista, por gostar de autores clássicos ou
música erudita.
Pior ainda, a palavra elite passou a ter um conceito
pejorativo. Se um dia elite significou o que é o mais desejável, hoje virou
palavra sinônima de discriminação e preconceito. Ou você gosta do que a maioria
gosta, ou está se pretendendo superior aos demais. Esta palavrinha também foi
amaldiçoada. Se um dia falávamos em culturas superiores e culturas inferiores,
hoje esta distinção virou crime. Como dizia Discépolo em Siglo XX Cambalache, nada es mejor, todo es
igual.
Passei minha adolescência discutindo Platão e Aristóteles, Tomás
de Aquino e Agostinho, Montaigne e Montesquieu. Não vivia em nenhuma metrópole,
mas naquela cidadezinha de 13 mil habitantes. E se eu discutia, é porque tinha
com quem discutir. Devorávamos os livros que nos chegavam às mãos e buscávamos
em Rivera ou Montevidéu o que não havia em Dom Pedrito. Tive, na ocasião, um
grave atrito com uma irmã do Colégio do Horto. Havia lido El Hombre Medíocre, de José Ingenieros, e me
fascinei por um outro título, Hacia una Moral
sin Dogmas. Encomendei-o de Montevidéu, pela irmã Helena. Mal ela voltou
de viagem, fui voando ao Horto.
- Sim, eu trouxe o livro. Mas não posso
te dar.
- Como disse, irmã?
- Não posso te dar. Esse livro é perverso, me
queima nas mãos.
Sinal que o havia lido. Mais tarde irmã Helena largou o
hábito, e creio ter dado uma modesta mãozinha à sua libertação. Aleguei que de
nada adiantava sua recusa. Agora mesmo é que queria ler Ingenieros. A irmã cedeu
a meus argumentos. O livro nada tinha de satânico. Mas para quem vive no
claustro, tudo que o cerca cheira à perversão.
Não vejo mais esta busca
desesperada por um livro, como se dele dependesse a vida. E a verdade é que
depende. Há alguns anos, em Madri, recebi a visita de sobrinha muito querida,
pessoa inteligente e capaz de grandes vôos. Mostrando a cidade para ela, levei-a
à Plaza España, onde está aquela estátua clássica do Quijote e Sancho Panza.
Aqueles dois, disse, não preciso te apresentar.
Precisava. Ela não tinha
idéia de quem fossem. Isso não é culpa de uma pessoa inteligente. É culpa da
escola, que subtraiu do ensino os clássicos universais e passou a fornecer
medíocres autores nacionais. Fiquei pasmo. Não conseguia conceber como uma
universitária, de seus vinte e tantos anos, jamais houvesse ouvido falar do
Quixote. Em meus dias de ginásio, eu lia De
Bello Gallico. No original. Não que eu julgue que todo jovem deve ter
lido Cervantes. É leitura difícil e exige sofisticação. Mas a ninguém é
permissível ignorar estes dois personagens.
Em compensação, ela
acrescentou algo à minha erudição. Certa vez, veio de Santa Maria a São Paulo
para assistir ao U2. O que é isso? – perguntei. Foi a vez dela ficar pasma.
Posso ser obsoleto. Mas considero que se entende melhor o homem e o mundo lendo
Cervantes ou Júlio César do que curtindo roqueiros.
Houve um livro que
dividiu minha vida em dois, o Ecce Homo,
do Nietzsche. Para um jovem sufocado pela propaganda de Roma, sorver Nietzsche
era como beber água límpida, não poluída pelos construtores de mitos. Passei
inclusive a estudar alemão, para degustar no original seus ditirambos. Mas a
vida tem outros projetos para os que nela entram, e acabei aprendendo sueco. De
qualquer forma, Nietzsche foi decisivo para minha libertação. É autor que deve
ser lido quando se é jovem. Depois de maduros, de pouco ou nada
adianta.
Quantos jovens, hoje, terão ouvido falar de Cervantes ou
Nietzsche? Em compensação, demonstram extraordinária erudição quando discorrem
sobre bandas de rock. Outros livros me ensinaram mais ainda sobre o homem, o
mundo e sobre mim mesmo. Mas se hoje sou como sou, isto eu o devo ao pensador
alemão. Em meus dias de magistério, me perguntava uma aluna:
- Professor,
verdade que a leitura transforma?
Ou seja, já se perdera a idéia de que a
leitura transforma. Uma doença ou uma viagem também transformam, mas a
transformação mais vital sempre é dada pela leitura. Ninguém conhece o mundo sem
ler. Mesmo quem viaja não o conhece bem, se não se fizer acompanhar de um bom
autor. Minhas aluninhas gostavam de ler Clarice Lispector ou Graciliano Ramos.
Não porque apreciassem seus livros. É que eram fininhos.
Em meus dias de
guri, se encontrasse pessoa mais velha que me falasse de história, viagens,
geografia ou literatura, eu calava a boca e era todo ouvidos. Hoje, velho e com
conhecimento de mundo, raramente encontro jovens que queiram me ouvir. Meus
interlocutores, salvo uma honrosa exceção, são quase todos de minha idade. A
honrosa exceção está estudando alemão e quer ler Nietzsche no original. Um dia
chega lá.
Estes dias de Internet são propícios à leitura. Qualquer um tem
acesso aos clássicos mesmo em cidades onde não mais existem bibliotecas. Mas
desconfio que a moçada, de modo geral, prefere baixar filmes ou música. Ou
publicar abobrinhas no Facebook. Não digo que vá se discutir a enteléquia
aristotélica nas redes sociais. Mas não precisavam publicar tanta
bobagem.
Ainda há pouco, comentei reportagem de Veja sobre a leitura, na qual o repórter se
congratulava com o fato de o brasileiro estar lendo mais. Mas está lendo o quê?
Paulo Coelho ou padre Marcelo, Zíbia Gasparetto ou Lauro Trevisan, Thalita
Rodrigues ou Gabriel Chalita. Melhor fossem os brasileiros analfabetos. Na
época, leitores me contestaram, acusando-me de elitista por desprezar a leitura
destes senhores. Ou seja, chegamos a um ponto em que denunciar a mediocridade é
condenável.
Verdade que, neste blog, sempre pesco almas jovens que querem
entender o mundo. Nem tudo está perdido. É minha paga, melhor que qualquer
salário.
18 de abril de 2012
janer cristaldo