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O sr. Júlio Lemos, que não perde a oportunidade de puxar uma discussão, chama Sócrates de “chato-mor” por ter praticado o mesmo costume dois mil e quatrocentos anos atrás.[1] Mas aí cessa toda a semelhança. Entre outras inumeráveis diferenças, é notório que Sócrates chamava seus adversários pelos nomes, enquanto o sr. Lemos, ao criticar os vícios da filosofia circundante, deixa sempre ao leitor a incumbência de descobrir quem seriam os viciados, se é que eles existem fora da cabeça do articulista. Tão avesso é ele à menção de pessoas de carne e osso, que seus artigos de crítica deveriam vir precedidos do disclaimer: “Qualquer semelhança com a realidade é mera coincidência.” Os diálogos socráticos, ao contrário, sempre se travam com personagens reais da vida ateniense e tratam de problemas cuja presença na sociedade é patente aos olhos de todos. Sócrates combateu bravamente a corrupção da polis, ao passo que o sr. Lemos se mantém a uma prudente distância deste baixo mundo, consagrando seus talentos a especulações lógico-matemáticas – ou a discussões com filósofos hipotéticos -- que não ofendem as autoridades constituídas. Talvez ele se envergonhe um pouco disso no íntimo, mas em suas declarações públicas o que transparece é, ao contrário, aquela ostentação de superioridade distante, quase blasée, do profissional tarimbado que consente, por mera caridade, em dirigir umas palavrinhas ao amador intrometido.
Todos sabemos em que consiste essa superioridade: o sr. Lemos desempenha, no teatro imaginário que ele desejaria lotar de uma platéia real, o papel do argumentador rigoroso, científico, universitário, em contraste com os palpiteiros que “fazem filosofia de modo tosco, deixando de lado a especulação para inculcar nos ouvintes e leitores critérios morais, condenar comportamentos ou provocar a indignação”. Entre os culpados de semelhante descalabro, ele inclui Sócrates, Platão e Aristóteles, sempre ocupados em indicar aos incautos o caminho do bem, da sabedoria e da felicidade – tarefa que, segundo ele, cabe à “ética prática” ou às técnicas de “auto-ajuda”, pouco ou nada tendo a ver com a autêntica e séria filosofia, representada eminentemente, ao que tudo indica, pelo próprio sr. Júlio Lemos.
Em apoio das suas singelas pretensões, ele apela à autoridade do Bem-Aventurado Cardeal John Henry Newman, o qual, proclamando no Capítulo 5 de Idea of a University[2] que “o conhecimento é uma coisa, a virtude é outra” e que “a filosofia, por mais iluminada, não fornece nenhum comando sobre as paixões, nem motivações influentes, nem princípios vivificantes”, cita o exemplo de um personagem do romance Rasselas, Prince of Abissinia, de Samuel Johnson – um filósofo que, diante da filha morta, confessava não receber nenhum consolo da ética de autocontrole que havia ensinado a seus discípulos (o sr. Lemos, com o rigor que lhe é peculiar, conjetura que o homem é um pitagórico, quando com toda a evidência se trata de um estóico). O episódio antecipa o protesto lancinante de Franz Rosenzweig, que, espremido numa trincheira da I Guerra, entre pilhas de cadáveres, notava a perfeita impotência da filosofia acadêmica ante a carnificina mundializada.
Seria ótimo se o sr. Lemos, antes de usar um texto clássico como porrete, aprendesse a lê-lo. O trecho citado não contrasta a filosofia moralizante com a “filosofia científica” que o sr. Lemos tanto aprecia, mas com a fé cristã. Quando Newman sugere que o ensino da filosofia, em vez de fazer falsas promessas de salvação, deveria tratar mais modestamente de desenvolver no estudante as virtudes intelectuais, o sr. Lemos, tentando fazer do cardeal um apologista da escola analítica avant-la-lettre, insinua que essas virtudes consistem tão-somente em “precisão conceitual, clareza e rigor lógico”, isto é, as qualidades padronizadas da comunicação científica no sentido atual. Qualquer tentativa de ir um pouco acima disso é, segundo ele, pura superstição. Newman, no entanto deixa claro que não é nada disso. O que o ensino da filosofia pode e deve desenvolver, segundo ele, é “um intelecto cultivado, um gosto delicado, uma mente cândida, equitativa e desapaixonada, uma conduta nobre e cortês” (a cultivated intellect, a delicate taste, a candid, equitable, dispassionate mind, a noble and courteous bearing in the conduct of life). Quem, lendo essas palavras, pode falhar em compreender que as virtudes intelectuais a que o cardeal alude são, também e intrinsecamente, virtudes morais, precisamente aquelas que, segundo o sr. Lemos, a filosofia não pode ensinar de maneira alguma? Pois Newman, explicitamente, faz delas o objetivo mesmo do ensino da filosofia numa universidade (they are the objects of a University).
Só o que Newman acentua é que essas virtudes são inferiores às da santidade cristã. É o caso de exclamar, como o cidadão lisboeta a quem um turista perguntava se sabia a localização do Mosteiro dos Jerônimos: “Ó raios, e quem é que não sabe?” O cardeal esclarece, com toda a razão, que a educação filosófica “produz não o cristão, não o católico, mas o gentil-homem”. Ele está longe de desprezar as virtudes do gentil-homem; ao contrário, professa advogá-las e insistir na sua importância. Adverte, apenas, que elas não são garantia de santidade, nem mesmo de conscienciosidade; que podem mesmo estimular o pedantismo, a arrogância e o espírito de controvérsia. Tudo isso é de uma obviedade exemplar, mas só o sr. Lemos pode enxergar aí um apelo a que a filosofia se abstenha de todo ideal moral e se concentre na pura busca da exatidão lógica, tomada como um fim em si. Quando Newman fala de “estudo desinteressado”, ele está se referindo, ostensivamente, apenas à clássica distinção entre artes liberais e servis. Estas últimas visam a finalidades utilitárias, aquelas ao aperfeiçoamento da mente humana. Ao descrever esse aperfeiçamento como uma síntese de valores cognitivos, éticos, estéticos e sociais, condensando-a no símbolo do “gentil-homem”, ele exclui antecipadamente, e da maneira mais categórica possível, a interpretação que o sr. Lemos quer impingir às suas palavras. O “estudo desinteressado” desinteressa-se de suas aplicações técnicas, industriais e econômicas, não de seus efeitos psicológicos e morais na mente do estudante, que são, segundo Newman, sua própria razão de ser.
Também não escapará ao leitor atento o detalhe altamente significativo de que, como exemplos de falsos salvadores, Newman cita somente filósofos de segundo time, como Sêneca, Cícero e Catão, e também, por ironia, Lorde Francis Bacon, um dos precursores da “filosofia científica” do sr. Lemos (a menção passageira a Sócrates tem outro sentido, como veremos adiante). Nem uma palavra sobre (muito menos contra) a filosofia cristã de Sto. Tomás, de S. Boaventura, de Duns Scot, de Raimundo Lúlio, cujas finalidades edificantes e até catequéticas rebrilham a cada página desses autores. Quanto à filosofia antiga, da qual a cristã medieval deriva em linha direta, o cardeal, em vez de fazer troça de seus ideais morais ou de reduzir sua contribuição, como o desejaria o sr. Lemos, ao desenvolvimento da lógica, das matemáticas e das ciências físicas, faz dela um dos pilares da própria condição humana:
“Enquanto formos homens, não podemos escapar de ser, em grande medida, aristotélicos, pois... em muitos assuntos, pensar corretamente é pensar como Aristóteles; e somos seus discípulos querendo ou não, embora possamos não sabê-lo”. Um desses assuntos foi, decerto, a lógica, e o que Aristóteles pensou a respeito é que ela não é nem mesmo uma parte integrante da filosofia, e sim apenas um treinamento preliminar que, uma vez absorvido, pode ser esquecido no fundo e deixar espaço a modalidades menos formalizadas de investigação, mais compatíveis com a natureza esquiva de certas questões. Embora ensinando que a lógica é a forma por excelência da prova científica, Aristóteles adverte que em todas as investigações o problema fundamental não é a exata demonstração lógica, mas a descoberta das premissas, na qual a lógica é absolutamente impotente, devendo ceder lugar à dialética, à retórica e até à imaginação poética. Uma filosofia que pretendesse reduzir-se à lógica, ou mais ainda à lógica das ciências, seria no entender de Aristóteles-Newman a aberração das aberrações.
Newman, seguindo nisto a tradição das universidades medievais, divide os estudos em três níveis: as artes utilitárias, as artes liberais (que ele chama indiferentemente de “filosofia” ou “ciência”) e a religião cristã. Se o segundo nível não deve usurpar as prerrogativas do terceiro, também não deve rebaixar-se ao primeiro – o que, observo eu, aconteceria necessariamente se a filosofia se reduzisse à lógica e o aperfeiçoamento da mente à conquista da “precisão conceitual, clareza e rigor lógico”, fazendo abstração das qualidades éticas, estéticas e sociais que segundo Newman compõem a inteligência bem formada. Se a filosofia não assegura a salvação da alma, isso não significa que seja moralmente inócua ou que a única qualidade requerida na sua prática seja, como pretende o sr. Lemos – deformando nisto monstruosamente o pensamento de Newman --, o “amor aos estudos”. O amor aos estudos, sem o correspondente amor à verdade, é um convite àquele pedantismo, àquela presunção acadêmica que Newman condena com tanta veemência, e da qual as lições do sr. Lemos fornecem uma amostra indisfarçável. Pior ainda seria reduzir o amor à verdade a um simples conjunto de precauções lógico-técnicas, omitindo que sua conquista é uma luta constante de toda a alma, envolvendo sentimentos, hábitos, valores e, acima de tudo, o esforço de autoconhecimento sem o qual a “verdade” se torna uma fórmula oca, pronta para ser repetida no palco universitário ou numa tela de computador sem nenhum ato de consciência correspondente. Se, neste como em outros assuntos, “pensar corretamente é pensar como Aristóteles”, cabe lembrar que, segundo o Estagirita, a verdade não está nas proposições e sim no juízo, no ato interior da inteligência humana que as aprova ou desaprova. Esse ato só pode ser efetivado por um ser humano real: tudo o que a técnica lógica pode fazer é simbolizá-lo, no papel ou num HD, por um signo negativo ou positivo.
Se é indiscutível que a filosofia não fornece nem deve prometer a salvação da alma, menos convincente é a argumentação do cardeal contra os poderes consoladores da meditação filosófica nos instantes de perigo e sofrimento. Em primeiro lugar, ela faz caso omisso do precedente histórico de Boécio, que, condenado à morte, encontra na prisão a consolatione philosophiae. Em segundo lugar, passa, sem a menor justificativa, ao largo da conduta heróica de Sócrates diante do tribunal que o condenou (já veremos o que o sublime sr. Lemos tem a dizer a respeito). Em terceiro, omite que a síntese escolástica de fé e razão implica, quase que por necessidade intrínseca, o apelo auxiliar à razão como reforço da fé nos momentos difíceis da vida.
O exemplo a que Newman recorre – o filósofo de Rasselas – é ainda mais desastroso, em primeiro lugar por ser fictício, em segundo lugar por presumir que o pranto diante de uma filha morta seja um vício redibitório, um argumento fulminante contra as crenças de um pai sofredor. Se assim fosse, as lágrimas da Virgem Santíssima ante o cadáver de Nosso Senhor Jesus Cristo teriam dado cabo do cristianismo de uma vez para sempre. E, caso não chegassem a fazê-lo de maneira convincente, a debandada dos apóstolos, o grito de desespero do Filho abandonado no alto da Cruz e as três defecções de Pedro antes de o galo cantar completariam o serviço para Voltaire nenhum botar defeito.
Nenhum exemplo de fraqueza humana depõe jamais contra a dignidade de uma crença, religiosa ou filosófica, nem atenua o valor da mensagem que aparenta desmentir. Reconhece-o o próprio sr. Lemos, ao afirmar que, se um filósofo “entende mais de ética tomista que São Felipe Néri e privadamente age como um irresponsável, a culpa não será da ética filosófica, mas dele”. Infelizmente, o nosso professor de rigor lógico, após admitir essa obviedade, ainda imagina dizer algo de substantivo contra a filosofia como modo de vida ao alegar que “é muito comum que o moralismo filosófico ande de mãos dadas com a perversão privada”. À luz daquilo mesmo que ele disse na frase anterior, a resposta cabal a essa observação é: “E daí?”
Já expliquei mil vezes – pensando, nisto, como Aristóteles – que o argumentum ad hominem só tem validade cognitiva quando é também, e inseparavalmente, um exemplum in contrarium, o desmentido factual de uma generalização anterior, como por exemplo quando Hobbes, após proclamar que os seres humanos só agem por desejo de poder, professa escrever o Leviatã para o puro bem da humanidade sofredora, sem nenhuma ambição pessoal; ou quando Maquiavel, ensinando que o Príncipe deve matar seus colaboradores tão logo chegue ao poder, se omite de incluir nisso o principal dos colaboradores: o autor do plano, isto é, ele próprio; ou ainda quando o burguês Karl Marx, afirmando que só os proletários podem ter uma visão objetiva da história, passa a nos oferecer algo que ele jura ser a primeira visão objetiva da história. Fora desses casos, o argumentum ad hominem só vale como truque sujo ou, no melhor dos casos, como vaga sugestão de uma possibilidade a ser investigada.
Mesmo que todos os moralistas do mundo fossem imoralistas na prática, isso em nada deporia contra a dignidade ou a necessidade da moral, sem mesmo levar em conta a possibilidade de que as denúncias de imoralismo sejam obras de intrigantes mal intencionados. Nesse sentido, a observação de Newman, de que muitos filósofos foram ridicularizados como hipócritas, entre os quais Sócrates (nas Nuvens de Aristófanes), é o protótipo mesmo do argumento suicida, que se rebela contra o próprio argumentador, já que a literatura satírica voltada à denúncia da hipocrisia religiosa, desde os Carmina burana a Rabelais, de Bocaccio a Molière, de Diderot e Stendhal a Alessandro Manzoni e de Cervantes a James Joyce (sem contar os papas atirados ao Inferno de Dante), transcende infinitamente, em volume, qualidade e importância histórica, tudo o que os gozadores de todos os tempos escreveram contra os filósofos. E será preciso lembrar que ninguém no mundo foi (e é ainda) mais alvo de chacotas do que o próprio Cristo?
Um ponto que Newman não consegue esclarecer é o da relação exata que há entre a formação do gentil-homem e a educação para a fé cristã. Dizer que a primeira não basta para produzir a segunda é mais próprio do Conselheiro Acácio que de alguém que deseja elucidar o problema. Que, no entanto, toda educação liberal seja inútil na catequese da gente simples, do povão – coisa que o próprio Newman não afirma -- já é algo de bastante duvidoso, como se vê pelo fato de que os primeiros esforços de alfabetização universal partiram da Igreja mesma, no tempo de Carlos Magno, e de que as artes mecânicas, praticadas com afinco, terminarão por despertar na inteligência alguma curiosidade de ordem científica ou filosófica que elas mesmas não podem, por si, satisfazer. Mas e a formação religiosa do erudito, do professor, do sacerdote, do monge? Será a educação preliminar da alma nas virtudes mundanas do gentil-homem uma etapa dispensável ou então nada mais que um adestramento técnico sem nenhum peso moral em si mesmo?
A História responde, decididamente, que não. Newman inspira-se no exemplo da universidade medieval do século XIII, mas hoje sabemos, e ele na época não poderia saber, pois só a historiografia posterior o revelou, que aquela instituição, longe de representar o cume da educação na Idade Média, não constituiu senão a cristalização tardia, institucionalizada, mais formalizada e menos vigorosa, daquilo que se ensinava nas chamadas “escolas catedrais” dos séculos X a XII.[3] E o que nestas se ensinava eram precisamente as qualidades do gentil-homem – “um intelecto cultivado, um gosto delicado, uma mente cândida, equitativa e desapaixonada, uma conduta nobre e cortês” – como preparatórias à aquisição das virtudes cristãs, no mesmo sentido em que Clemente de Alexandria proclamara ser a filosofia “o pedagogo que conduz ao Cristo”. O ensino aí alcançou tais alturas, e tão visíveis eram os seus frutos de bondade e sabedoria, que se afirmava, na época, que os anjos mesmos o invejavam. Malgrado o seu fulgurante e breve prestígio intelectual, as universidades que vieram depois, com toda sua história de greves, arruaças e até morticínios e a sua queda posterior numa esterilidade deprimente, jamais mereceram nem mereceriam louvor semelhante. Não é injusto dizer que os Estatutos da Universidade de Paris em 1215, transformando a filosofia em profissão regulamentada e meio de ascensão social, muito contribuiram para a perda da inspiração recebida das escolas catedrais e para o afluxo de toda sorte de carreiristas ávidos de poder e prestígio, inflados de habilidade técnica e alheios aos ditames da moral religiosa e até mesmo secular. Não espanta que já em 1229 eclodissem ali motins estudantis que duraram dois anos e deixaram um rastro de cadáveres por toda parte.
Relevante, para a compreensão desse processo, é a seguinte diferença. Enquanto as universidades privilegiavam o ensino formalizado, baseado em textos e documentado em novos textos, criando os monumentos de exposição escrita que hoje representam para nós a figura visível do escolasticismo, as escolas catedrais faziam exatamente o oposto: de um lado, não visavam à produção de “obras filosóficas”, mas de personalidades humanas que se destacassem pela beleza, força, equilíbrio e pureza de intenções, sem a menor preocupação de deixar documentos que atestassem a sua passagem sobre a Terra; de outro lado, davam menos importância, na prática pedagógica, ao estudo dos textos ou à aquisição de técnicas do que à influência direta do mestre como exemplo vivo das virtudes intelectuais e morais a ser infundidas no discípulo.
Aproximavam-se notavelmente, sob esse aspecto, do círculo socrático e da Academia platônica originária. Os melhores intérpretes do platonismo – Paul Friedländer. A. E. Taylor, Paul Shorey, Julius Stenzel, Eric Voegelin e Giovanni Reale, entre outros – ensinam que jamais esteve nos propósitos de Platão criar uma doutrina formalizada, condensada num sistema de proposições que pudesse ser repassado, impessoalmente, a destinatários genéricos, como num tratado de química ou de lógica. Escreve Stenzel: “Ele não concebeu jamais o aprendizado como coisa de puro intelecto, mas sempre como uma influência total de homem a homem, como um ser formado e modelado pela íntima relação e sociedade com outro ser humano”[4] Mesmo no concernente aos aspectos mais aparentemente “impessoais” e “ científicos” do seu ensinamento o mestre não prescindia do exemplo pedagógico pessoal. Taylor: “Uma das convicções mais firmes de Platão era que nada que valesse a pena aprender podia ser aprendido por mera ‘instrução’: o único método de ‘aprender’ a ciência era engajar-se efetivamente, em companhia de uma mente mais avançada, na busca da verdade.”[5]
O que tornou ainda mais imprescindível essa influência direta de alma para alma foi a circunstância social mesma em que se originou o círculo socrático. Sócrates não entra em cena puxando discussão contra idéias quaisquer, nem muito menos, como o sr. Lemos, desafiando uma corrente minoritária (a filosofia como “norma de vida”) que ele mesmo declara ser alheia à filosofia “séria”. Ao contrário: Sócrates se volta contra tudo aquilo que, no meio ateniense, é opinião dominante, tida como respeitável e séria no mais alto grau. Graças ao próprio empenho de Sócrates e de Platão, a doxa ateniense nos aparece hoje coberta de ridículo, mas na época ela era tão respeitada que desafiá-la podia ser punido com a morte, como de fato o foi. É apenas um estereótipo escolar dizer que, contra essa constelação de crenças estabelecidas, Sócrates opunha o apelo à “razão”. Da razão faziam uso tanto ele quanto seus contendores, argumentando, silogizando e concluindo. Se Sócrates o fazia com mais destreza do que eles, a superioridade qualitativa não implica uma diferença de substância. A diferença específica de Sócrates reside num estrato mais profundo da experiência da discussão. Enquanto seus adversários repetem idéias correntes, apegando-se à segurança dos papéis sociais que lhes infundem a ilusão de estar certos por pensar de acordo com a maioria, ou com a classe dominante, Sócrates fala apenas como indivíduo humano, sem respaldo em qualquer autoridade externa. E não apenas faz isso, mas apela ao próprio testemunho íntimo de seus contendores, o que equivale a despi-los de suas identidades sociais e induzi-los à confissão direta, sincera, humana, de seus verdadeiros sentimentos. Um dos recursos de que ele se serve para isso é convidar cada um a imaginar sua própria morte e a vida no além-túmulo. A realidade da morte e a perspectiva do julgamento dissolvem as defesas sociais – as “racionalizações”, diria um psicanalista – e equalizam os seres humanos na consciência de seu destino concreto. O mero confronto de opiniões transfigura-se em diálogo entre as almas, culminando na periagoge, a virada de 180 graus na direção da consciência que abandona a miragem coletiva e, voltando-se para dentro, aí descobre as bases permanentes da sua existência.
Forçar os espectadores a despir-se de sua identidade civil e política para levá-los contemplar sem defesas a fragilidade da condição humana era já o objetivo da tragédia grega, que por isso mesmo escolhia como herói, com freqüência, o estrangeiro, o desconhecido, o rejeitado e marginalizado, de modo que todo senso de identificação nacional ou social cedesse lugar à humanidade nua e crua das experiências fundamentais. Daí que Nicole Loraux, num ensaio memorável, definisse a tragédia como “o gênero antipolítico” por excelência.[6]
Foi só quando a tragédia já ia perdendo eficácia como forma simbólica que uma nova modalidade mais diferenciada e explícita de apelo à humanidade profunda se tornou necessária e possível. Mais que pela sua técnica argumentativa, deficiente sob tantos pontos de vista, Sócrates é notável pela sua argúcia psicológica, ou psicopedagógica, da qual não encontramos similar antes de Montaigne (século XVI), de Pascal (século XVII) e do advento da novelística moderna no século XVIII. Ao longo de todos os diálogos socráticos, não se trata nunca de desmantelar argumentos simplesmente, mas de despertar o senso moral por meio de um aprofundamento cognitivo das experiências fundamentais. É impossível, aí, separar o que é “investigação filosófica” do que é “educação moral”, já que esta orienta aquela e recebe dela o seu fundamento experimental.
Acontece que nem sempre a operação é bem sucedida. Às vezes o ouvinte é tão apegado à sua identidade social que não pode imaginar-se desprovido dela, nu e indefeso, nem por um minuto. No afã de esquivar-se da experiência íntima, de furtar-se à periagoge, ele apela a todos os subterfúgios, que vão do raciocínio fantasioso[7] à chacota e às palavras ameaçadoras, ou então retira-se do diálogo. Aí a conclusão que se impõe é que estamos diante da inversão formal e paradigmática da figura do filósofo: o filodoxo, “amante da opinião”.
Essa oposição não é casual, nem mero artifício de retórica. A estrutura inteira da República e de outros diálogos está montada em cima de pares de opostos aos quais Platão dá um sentido estável e que se incorporam na sua linguagem técnica. Nem todos esses pares, no entanto, sobreviveram na história da filosofia: alguns conceitos separaram-se de seus opostos e adquiriram uma vida ficcional autônoma sob a forma de fetiches verbais consagrados. Explica Eric Voegelin:
“Platão criou seus pares de conceitos no curso da sua resistência à sociedade corrupta que o rodeava. Da luta concreta contra a corrupção circundante, no entanto, Platão emergiu vencedor com efetividade histórica mundial. Em conseqüência, o lado positivo dos seus pares tornou-se a ‘linguagem filosófica’ da civilização ocidental, enquanto o lado negativo perdeu seu status de vocabulário técnico... A perda da metade negativa destituiu a positiva do seu sabor de resistência e oposição, e deixou-a com uma qualidade de abstratismo que é profundamente alheia à concretude do pensamento platônico... A perda mostrou-se maximamente embaraçosa no par philosophos e philodoxos. Em inglês temos philosophers, mas não philodoxers. A perda é, neste caso, peculiarmente embaraçosa, porque, na realidade, temos uma abundância de filodoxos; e, como o termo platônico que os designava se perdeu, referimo-nos a eles como ‘filósofos’. No uso moderno, portanto, chamamos de filósofos precisamente as pessoas contra as quais, como filósofo, Platão se opunha. E uma compreensão da metade positiva do par se tornou hoje praticamente impossível, exceto para uns poucos eruditos, porque, quando falamos em ‘filósofos’, pensamos em filodoxos.”[8]
Newman, falando em “filósofos”, pensa precisamente em filodoxos, sem saber que o faz. Daí a ambigüidade um tanto constrangedora com que ele deprecia as ambições moralizantes dos filósofos ao mesmo tempo que se declara adepto e seguidor de uma filosofia tão obviamente moralizante como o é a de Aristóteles. Daí também a gafe monumental de acompanhar Samuel Johnson quando este faz troça das lágrimas de um pai diante do cadáver da filha.
Mas o filodoxo não se define só por sua oposição à pessoa do filósofo, e sim, ainda que sem percebê-lo, ao próprio fundamento último da filosofia platônica (e, por extensão, de toda a filosofia cristã): “Platão, explica Voegelin, fala do filodoxo como o homem que não pode suportar a idéia de que ‘o belo, ou o justo, ou o que quer que seja, sejam um e o mesmo.’”[9] Voegelin lembra a sentença de Xenófanes: “O Um é o Deus”. Podemos também evocar os “transcendentais” de Duns Scot, Unum, Verum, Bonum, que se convertem uns nos outros. Tanto em Platão quanto em Aristóteles ou em toda a filosofia escolástica, o Supremo Bem não é um “valor”, muito menos uma “criação cultural”, mas a realidade suprema, o ens realissimum, fundamento primeiro e objeto último de todo conhecimento.
A repulsa que isso causa à sensibilidade moderna é notória. Desde Kant, a separação abissal e intransponível entre “realidade” e “valor” consagrou-se como um dogma incontestável da mitologia universitária, sem que ninguém perceba que ela se auto-anula no momento em que, professando expressar um dado incontornável da realidade, se consagra como um valor cultural.
Max Weber, hipnotizado pela visão do abismo intransponível, mas ansiando por encontrar um fundamento moral que justificasse sua busca da verdade científica, chegou a cair numa crise de paralisia nervosa, ficando cinco anos inutilizado num sofá, por não conseguir escapar do engano trágico que fazia de uma situação histórica passageira um princípio fundante de todo conhecimento científico. A “independência entre as esferas de valores”, como ele a chamava, é o dogma central da filodoxia. Ela não resulta da natureza das coisas, mas do fato de que, apegados a suas identidades sociais de professores, de cientistas, de artistas ou de pregadores, muitos indivíduos, em certas épocas, se vêem incapacitados de descer à profundidade interior em que se revela a unidade da experiência humana: confundindo a incompatibilidade entre suas linguagens profissionais respectivas com uma separação ontológica objetiva entre os domínios da realidade, não têm sequer a hombridade weberiana de reconhecer que estão doentes. Realizam, assim, a profecia de Heráclito, segundo a qual os homens despertos vivem num mesmo mundo, ao passo que os adormecidos refluem para seus respectivos mundos mutuamente incomunicáveis. Vários sintomas assinalam essa patologia. Um deles é o que denomino “moral arbitrária”: o sujeito proclama que os valores morais não têm nenhuma base científica nem defesa racional possível, mas continua agindo exteriormente como se acreditasse no bem e na virtude, ou naquilo que ele assim denomina. Sugere, assim, que sua conduta ética, ou aparentemente ética, não deriva do Supremo Bem, mas da sua própria, misteriosa, arbitrária e inexplicável bondade pessoal. É a forma de autobeatificação mais querida dos intelectuais céticos e materialistas.
Outros, como o próprio sr. Lemos, preferem consagrar a separação abissal entre fatos e valores como se fosse ela mesma o valor supremo, daí proclamando que a “ética prática” não tem nada a ver com a sua “filosofia séria”. O sr. Lemos, com toda a evidência, confunde filósofos com filodoxos porque ele mesmo é um destes últimos.
A fé inocente com que ele aceita como absoluto a intransponível o divórcio entre o real e o bem, tomando simples nomes atuais de profissões ou de disciplinas (“ética prática”, “auto-ajuda”, “ciência”, “filosofia” etc.) como se correspondessem a divisões objetivas e eternas na estrutura do cosmos, evidencia que ele não entende, nem muito menos assume como sua, a obrigação número um do filósofo, que é a busca da unidade para além e por cima de todos os abismos e dificuldades que a cultura – a doxa – pode ter espalhado ao longo do caminho. Separando o Verum e o Bonum, ou antes, aceitando acriticamente essa separação tão cara à doxa contemporânea como se fosse um dado inquestionável da realidade mesma e não a simples cristalização histórica de uma notória dificuldade de comunicação entre escolas e estilos de pensamento, ele toma a desordem da cultura como se fosse a ordem cósmica e, portanto, bloqueia – para si mesmo e para quem lhe dê ouvidos -- toda possibilidade de aspiração ao Unum. Se, depois disso, ele continua se apresentando como um porta-voz da “razão”, é evidente que ele jamais se perguntou o que pode haver ainda de “racional” num mundo de onde a unidade foi expulsa de uma vez para sempre e a divisão convencional do trabalho se tornou o único princípio metafísico restante. Ou seja: a “razão” de que ele se gaba é um estereótipo verbal apenas, não algo cuja experiência ele tenha jamais sondado em profundidade ou sequer imaginado que devesse sondar. Raramente se viu a devoção servil à doxa brilhar com tão obsceno esplendor.
Desde a posição existencial frágil e vacilante em que isso o coloca, é inevitável que ele não possa argumentar senão falsificando o sentido dos textos que cita e cometendo, sob a ostentação de “rigor lógico”, os ilogismos mais pueris e desengonçados. Como mesmo isso não baste para camuflar sua insegurança, ele parte para a psicose historiográfica e, como diria uma velha expressão popular francesa, pète plus haut que son cul: sem qualquer explicação, sem nos dar nem a mais mínima idéia do que pode havê-lo conduzido a tão inusitada opinião, ele declara peremptoriamente que o heroísmo de Sócrates antes os juízes foi “uma lenda”, e inclui o filósofo entre os que, como o personagem de Rasselas, “fracassaram na adversidade”. A tranqüilidade fria e como que desinteressada com que ele se dispensa de tentar justificar essa enormidade só pode explicar-se pela confiança absoluta que ele deposita naquilo em que crê, como se o houvesse testemunhado com seus próprios olhos. Não se preocupem, portanto: o sr. Lemos esteve lá, viu tudo, e nem todos os testemunhos do mundo o demoverão da certeza de que no momento decisivo, Sócrates, em vez de dar aos discípulos um exemplo de coragem, como o acreditam Platão e outros ingênuos, fez pipi nas calças.[10]
Escrito por Olavo de Carvalho
10 Abril 2012
Richmond, VA, 7 de abril de 2009
Notas:
[3] V. C. Stephen Jaeger, The Envy of the Angels. Cathedral Schools and Social Ideals In Medieval Europe, 950-1200, Philadelphia, University of Pennsylvania Press, 1994.
[4] Stenzel, Platone Educatore, trad. Francesco Gabrieli, Bari, Laterza, 1966, p. 17.
[5] A. E. Taylor, Plato: The Man and His Work (1926), Mineola, NY, Dover, 2001, p. 6.
[6] V. Nicole Loraux, The Mourning Voice: An Essay on Greek Tragedy, transl. Elizabeth Trapnell Rawlings. Cornell University Press. 2002.
[7] V. as observações argutas de Eric Voegelin sobre a “antropologia de sonho” que está na base das teorias contratualistas, em Plato and Aristotle. Order and History vol. III, Columbia and London, University of Missouri Press, pp. 129-131.
[8] Op. cit., pp. 119-120.
[9] Id., ibid.
[10] Mais tarde, na área de comentários, o sr. Lemos tentou justificar-se alegando que as fontes de Platão na Apologia de Sócrates são duvidosas. Com base nisso ele se acredita autorizado para afirmar categoricamente, sem fonte nenhuma, o contrário do que Platão diz. É esse o homem que quer dar lições de “rigor lógico” a um estupefato mundo. Ainda não aprendeu que entre uma dúvida e a certeza do contrário a distância é infinita.