"A verdade será sempre um escândalo". (In Adriano, M. Yourcenar)

"Quero imaginar sob que novos traços o despotismo poderia produzir-se no mundo... Depois de ter colhido em suas mãos poderosas cada indivíduo e de moldá-los a seu gosto, o soberno estende seus braços sobre toda a sociedade... Não quebra as vontades, mas as amolece, submete e dirige... Raramente força a agir, mas opõe-se sem cessar a que se aja; não destrói, impede que se nasça; não tiraniza, incomoda, oprime, extingue, abestalha e reduz enfim cada nação a não ser mais que um rebanho de animais tímidos, do qual o governo é o pastor. (...)
A imprensa é, por excelência, o instrumento democrático da liberdade."
Alexis de Tocqueville (1805-1859)



quarta-feira, 20 de junho de 2012

PSICANALISTA É QUALQUER UM

A respeito de crônica recente sobre psicanalistas, me escreve Laís Legg: “Primeiro, vamos definir o que é um "psicanalista". Qual seu curso de graduação? Geralmente, qualquer um”.

De fato, Laís, psicanalista pode ser qualquer um. A profissão de psicanalista não está regulamentada. Nem os psicanalistas querem que seja regulamentada, pois aí alguma "escola" pode ficar fora. Assim sendo, não se exige nem mesmo curso superior para o exercício do ofício. Assim sendo, não se exige nem mesmo curso superior para o exercício do ofício. Na França, para efeitos de imposto de renda, psicanalistas são equiparados a prostitutas, videntes e cartomantes.

Há uns bons quarenta anos, venho afirmando esta evidência. Me sinto clamando no deserto. Ainda hoje há quem pense que o exercício da psicanálise exige curso superior. É claro que se você colocar sua plaquinha, as guildas vão chiar. Que chiem. A profissão não está regulamentada.

Muitos embates tive com esta raça de vigaristas. Ainda jovem, fiz um concurso para secretário de escola. Na hora do exame biométrico, entrei na fila errada, caí na dos concursados para delegados de polícia. Fui examinado por um psicanalista. Sentado em uma cadeira solene, do outro lado da mesa me analisava com olhar percuciente. Eu, numa cadeirinha de réu. Comecei a rir.

- Por que o senhor está rindo?
- Estou rindo porque o senhor, do alto dessa curul, está me observando nesta humilde cadeirinha.

Não sei se ele entendeu a curul, mas senti que não gostou.

- O senhor está rindo de nervoso.
- Vai ver que é, Dr! O senhor é psicanalista. Eu, provavelmente um neurótico qualquer.
- O senhor tem algo contra a psicanálise? – perguntou-me.

Tinha e muito. Havia lido bastante na época sobre o assunto e fui debulhando meus argumentos. Ele não disse nada e dispensou-me. Algumas semanas depois recebi uma comunicação. Devia submeter-me a uma junta psiquiátrica. Se não aceitava a psicanálise, certamente era um perigoso meliante.

Compareci ao exame. Não consigo esquecer da cena. Três doutores, sentados sempre em cadeiras solenes, me olhavam do alto. Eu, numa cadeirinha de réu. Precisava do emprego, respondi como eles gostavam. Fiquei sem saber se fui condenado ou não pelos Torquemadas. Antes da sentença, consegui emprego em jornal e nem me preocupei com o laudo.

Mais adiante, novo confronto. No final dos 70, na Folha da Manhã, Porto Alegre, escrevi que ser psicanalista dispensava curso universitário. Mais ainda, dispensava qualquer curso. Qualquer analfabeto, se quisesse, podia colocar placa de psicanalista em uma sala e sair clinicando. Na época, em São Paulo, após o curso de cinco anos, ao preço de dez ou quinze mil cruzeiros por mês, pessoas sem o pré-requisito do curso de medicina podiam exercer a profissão de psicanalista. Enquanto 38 alunos faziam o curso, outros cem esperavam na fila.

A guilda reagiu com fúria. Um psiquiatra, lembro que chamado Ronaldo Moreira Brum, me acusou nos jornais de nada entender de medicina – como se psicanálise fosse medicina. Ok! Doutor. De medicina nada entendo. Mas entendo de Direito. E psicanalista não é profissão regulamentada. Portanto, qualquer um pode exercê-la. A propósito, tem muito engenheiro e economista desempregado no Brasil, que puseram plaquinha de psicanalista em seus escritórios para ganhar seu pão.

Uma psicóloga e jornalista, Ivete Brandalise, resolveu enfiar sua colher na sopa. Escreveu que devia existir uma lei que regulamentasse a profissão de psicanalista. Que ela, psicóloga, tinha uma lei que regulamentava a sua. Ora, a dita lei era um trenzinho da alegria, no qual embarcaram todos os licenciados em Filosofia. De filósofos, vaga e suspeita ocupação, viraram psicólogos. Ora, lei tem número e data. Desafiei a Brandalise, e também o Dr. Ronaldo, a me citar o número e a data da lei que regulamentava a profissão. Nunca tive resposta.

A cada semana, começava minha crônica: “Enquanto o Dr. Ronaldo não nos fornece o número e a data da famosa lei que regulamenta a profissão de psicanalista...” Nunca forneceu. Soube mais tarde que propôs, em uma reunião da Amrigs (Associação dos Médicos do Rio Grande do Sul), que a entidade me processasse por calúnia. Ou talvez difamação, já não lembro. Prudentemente, a Amrigs decidiu que não iria dar atenção a “um jornalista em busca de sensacionalismo”.

Se bem que, devo confessar, tive notícias de um psicanalista sensato. Em minhas andanças noturnas, conheci uma mulher esplendorosa. Algumas semanas depois, sem mais nem menos, ela bateu à porta de meu humilde tugúrio. Recém-acordado, perplexo e sem acreditar no que via, perguntei ao que vinha.

- Meu psicanalista me liberou para te visitar.

Entra. E passa meu endereço ao doutor. Que mande mais clientes. Profissional dos bons tava ali. Ou seja, mesmo no universo da psicanálise parece existir alguma lucidez. É a chispa da ferradura quando bate na calçada.


20 de junho de 2012
janer cristaldo

Nenhum comentário:

Postar um comentário