"A verdade será sempre um escândalo". (In Adriano, M. Yourcenar)

"Quero imaginar sob que novos traços o despotismo poderia produzir-se no mundo... Depois de ter colhido em suas mãos poderosas cada indivíduo e de moldá-los a seu gosto, o soberno estende seus braços sobre toda a sociedade... Não quebra as vontades, mas as amolece, submete e dirige... Raramente força a agir, mas opõe-se sem cessar a que se aja; não destrói, impede que se nasça; não tiraniza, incomoda, oprime, extingue, abestalha e reduz enfim cada nação a não ser mais que um rebanho de animais tímidos, do qual o governo é o pastor. (...)
A imprensa é, por excelência, o instrumento democrático da liberdade."
Alexis de Tocqueville (1805-1859)



quinta-feira, 18 de agosto de 2011

OS BONECOS DE VENTRILOQUO DO IBAS




Dilma, Patriota assina em teu nome!

O ditador Bashar Assad encontrou nos enviados do Ibas (Índia, Brasil e África do Sul) os bonecos de ventríloquo ideais para transmitir ao mundo a sua versão dos eventos sangrentos em curso na Síria.

O comunicado final da delegação, um dos documentos mais abjetos jamais firmados pelo Brasil, pinta o cenário de um regime engajado na sua reinvenção democrática, mas assediado pela violência de grupos armados opositores.

A assinatura brasileira converte Antônio Patriota em cúmplice de um Estado policial que se dedica à matança de sua população. Patriota, contudo, é funcionário de Dilma Rousseff. A assinatura dele é a dela.

O Itamaraty difunde a narrativa oficial síria, segundo a qual o derramamento de sangue se deve à violência de setores da oposição. Há nisso uma nota sinistra, só audível por quem conhece o passado recente da Síria. Refiro-me a Hama e a fevereiro de 1982.

Nessa cidade sunita operavam guerrilheiros islâmicos que combatiam o regime de Hafez Assad, pai de Bashar. Após uma emboscada dos rebeldes contra forças militares, o ditador ordenou o bombardeio de toda a cidade, por terra e ar. Num tempo anterior à internet e aos celulares, há escassas, mas pungentes, imagens do resultado.

No fim, Hama parecia as cidades alemãs extensivamente bombardeadas na guerra mundial. Um dos filhos do ditador supervisionou o ataque e se gabou de matar quase 40 mil pessoas, uma cifra confirmada pelas estimativas independentes.

Quando os escombros ainda ardiam, o governo vazou para a imprensa libanesa a notícia das dimensões da carnificina, enviando uma mensagem ao povo sírio. A mensagem foi decodificada, em muitos sentidos.

Até há pouco, aos murmúrios, os sírios se referiam ao massacre por meio de um sombrio eufemismo: "os incidentes de Hama". Agora, enfrentando munição real, os manifestantes voltam às ruas num ânimo quase suicida, pois sabem que só têm a alternativa de derrubar o regime.

Patriota deveria ter a decência de pensar duas vezes antes de colar o selo do Itamaraty sobre a versão de Damasco:
na linguagem dos Assad, a expressão "gangues terroristas" é a senha para aplicar a "lei de Hama". Além de tudo, a versão é falsa.

Em 17 de julho, uma conferência nacional de 450 líderes opositores, laicos e religiosos, conclamou à desobediência civil pacífica. O regime respondeu armando 30 mil milicianos da minoria alauita, a fim de reconfigurar o cenário como um conflito sectário.

Artilharia, tanques e navios alvejam Hama, Homs, Deir ez-Zor e Latakia. O saldo provisório já atinge 2 mil mortos. Líderes da tribo baqqara, de Deir ez-Zor, autorizaram o uso de armas contra incursões assassinas do Exército, de casa em casa, que não poupam crianças.

Vergonha:
o gesto desesperado de pessoas acuadas serve como o pretexto para Patriota reverberar a senha de uma ditadura inclemente. Pretexto é a palavra certa. O Itamaraty não se importa com os fatos: segue uma agenda ideológica.

A Constituição prescreve, no artigo 4.º, que o Brasil "rege-se, nas suas relações internacionais" pelo princípio da "prevalência dos direitos humanos". Dilma prometeu respeitar o artigo constitucional. O compromisso, expresso num voto contra o Irã, não resistiu a um outono.

Em março, a abstenção na resolução da ONU de intervenção na Líbia evidenciou uma oscilação. Em junho, a recusa da presidente em receber a dissidente iraniana Shirin Ebadi, Nobel da Paz, sinalizou o recuo.

Em 3 de agosto, a rejeição a uma condenação da Síria no Conselho de Segurança da ONU concluiu a restauração da política de Lula, Celso Amorim e Marco Aurélio Garcia.

No seu desprezo inigualável pelo mandamento constitucional, o comunicado do Ibas equivale a uma celebração orgiástica da velha ordem. Num Roda Viva, da TV Cultura, indaguei a Celso Amorim sobre os motivos do governo para ignorar sistematicamente o artigo 4.º da Constituição.

O então ministro do Exterior retrucou invocando o princípio da autodeterminação dos povos e da não intervenção, contemplados no mesmo artigo, mas em posição inferior. A resposta vale tanto quanto as promessas reformistas de Assad.

Na verdade, como fica explícito num livro do ex-secretário-geral do Itamaraty Samuel Pinheiro Guimarães, a linha do governo deriva de uma curiosa tradução do objetivo de promover a "multipolaridade" nas relações internacionais.

"Multipolaridade", no idioma de nossa atual cúpula diplomática, exige a redução da influência global dos EUA - o que solicitaria o apoio brasileiro aos regimes antiamericanos, sejam eles quais forem.

A Turquia perdeu a paciência com a Síria e exigiu uma imediata retirada militar das cidades assediadas. Sob pressão popular, governos árabes condenam, sem meias palavras, a selvagem repressão.

O Egito alertou Damasco sobre a ultrapassagem de um "ponto de não retorno". Nas ruas do Cairo e de Beirute, manifestações pedem o isolamento de Assad.

Longe da região, irresponsável, alheio às obrigações assumidas pela comunidade internacional, o governo brasileiro converte-se num dos últimos bastiões de um Estado policial sanguinário.

Desse modo, numa única tacada, viola um elevado princípio constitucional da nossa democracia e agride o interesse nacional, afastando-nos da meta legítima de uma cadeira permanente no Conselho de Segurança da ONU. Não há muito a fazer.

A Comissão de Relações Exteriores do Senado é presidida por um neolulista chamado Fernando Collor. A oposição renunciou ao confronto político de ideias, limitando-se à pescaria de ocasião na lagoa pútrida da corrupção nos ministérios.

Os intelectuais de esquerda, sempre prontos a fulminar com os raios de sua fúria santa os desvios retóricos do editorial de um grande jornal, não produzem manifestos de contestação aos atos do lulopetismo - ainda mais se justificados pela doutrina do antiamericanismo.

Resta escrever:
atenção, Dilma, Patriota assina em teu nome!

Demétrio Magnoli O Estado de S. Paulo

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