"A verdade será sempre um escândalo". (In Adriano, M. Yourcenar)

"Quero imaginar sob que novos traços o despotismo poderia produzir-se no mundo... Depois de ter colhido em suas mãos poderosas cada indivíduo e de moldá-los a seu gosto, o soberno estende seus braços sobre toda a sociedade... Não quebra as vontades, mas as amolece, submete e dirige... Raramente força a agir, mas opõe-se sem cessar a que se aja; não destrói, impede que se nasça; não tiraniza, incomoda, oprime, extingue, abestalha e reduz enfim cada nação a não ser mais que um rebanho de animais tímidos, do qual o governo é o pastor. (...)
A imprensa é, por excelência, o instrumento democrático da liberdade."
Alexis de Tocqueville (1805-1859)



sexta-feira, 23 de setembro de 2011

THOMAS MANN HOJE

Artigos - Cultura
Thomas Mann foi único que compreendeu o que estava em jogo, desde sua origem, quando o processo todo estava em marcha e as potências do Ocidente ainda falavam em desarmamento voluntário. Por isso Thomas Mann nunca fez concessões aos nazistas.

Nos últimos meses mergulhei na obra de Thomas Mann e de seus comentaristas, com o objetivo de apresentar um curso sobre o autor agora em outubro (A Música do Apocalise - Thomas Mann e a lenda do Doutor Fausto). Eu tinha clareza do que queria, mas esse mergulho me permitiu ir além: ver o autor alemão em sua plenitude, seu lento processo de amadurecer para ser a consciência crítica do seu povo. A obra de Thomas Mann é o fecundo diálogo com as obras de Goethe e Nietzsche, especialmente estes dois. O decorrer da sua vida permitiu que ele partisse do deslumbramento inicial da juventude para a crítica mais implacável e corrosiva.

No Doutor Fausto essa crítica se mostra por inteiro. É o mesmo Fausto de Goethe reescrito sob a pele de Nietzsche que lá aparece. O livro é um apogeu. Com as guerras e a subida dos nazistas ao poder Thomas Mann não teve dúvida de que estava diante do mal mefistofélico integral, encarnado na saga de seu povo, a amada Alemanha. A história da Alemanha então se confundiu com a história de todo o mundo, pela guerra, pela ânsia opressora dos nazistas e pela violência sem tamanho que perpetrava. Mann percebeu onde foi dar aquele conceito de germanidade que ele próprio havia abraçado com firmeza ingênua em 1918, ao publicar o livro mais ridículo que poderia ter feito: o Considerações de um Apolítico. A germanidade é desses conceitos alucinados que só intelectuais fáusticos poderiam fabricar. Propunha um abismo entra os germânicos – a Alemanha –, tida por berço da cultura, em oposição e contra a civilização, identificada difusamente com a França, mas que na verdade é o cristianismo e o catolicismo. Foi abase para a política racista e genocida de Hitler. Certamente Thomas Mann descobriu que ele também contribui para a explosão de violência louca dos anos trinta e quarenta, ainda que de forma inconsciente.

Thomas Mann, todavia, era grande demais e ético demais para cair nessa estreiteza caricata de forma permanente. Na verdade, não obstante as idéias idiotas contidas no Considerações de um Apolítico, a exegese da obra dele mostra que, desde o início, ele colocou reservas severas a essas idéias. Tomemos o livro A Morte em Veneza. Ali está o esticismo em seu esplendor, apresentado de maneira bela e sofisticada, uma obra digna de um Platão. O que nos diz? Que o esteticismo é morte, é louco, é o Mal. Sem tirar e nem pôr. Viu o real, embora estivesse integralmente mergulhado no quadro da cultura do início do século XX. Essa grandeza ética vai explodir em 1922, ano em que proferiu o famoso discurso que, no espaço de duas laudas, negou tudo que escreveu em 1918. E repudiou violentamente o bestseller da época, o livro de Spengler A Decadência do Ocidente. Motivo: trabalhar com o ingênuo e mortal conceito de cultura x civilização.

Em 1924 veio à luz o livro A Montanha Mágica, o melhor dos seus livros. É um superlativo de símbolos, de psicologia, de religiosidade, de inconformismo com a modernidade. Hans Castorp, o personagem, concluiu os seus dias nas trincheiras da I Guerra Mundial. O próprio ambiente do romance é um asilo para tuberculosos, quando a doença não tinha cura. Seu diagnóstico continha algo como que uma sentença de morte. Uma doença pulmonar, do pneuma, do espírito. Tinha gente de toda Europa e do resto do mundo buscando tratamento. A humanidade inteira infectada pela pestilência espiritual. Aqui também a herança de Goethe está presente. O próprio Mefistófeles atua naquele ambiente infernal.

Será no Doutor Fausto que esse amadurecimento espiritual será exposto com todas as letras. Hitler é a conseqüência lógica da Reforma, de Goethe, do germanismo em sua batalha contra a civilização. De tal modo o livro é importante que arrisco dizer que Thomas Mann foi único que compreendeu o que estava em jogo, desde sua origem, quando o processo todo estava em marcha e as potências do Ocidente ainda falavam em desarmamento voluntário. Por isso Thomas Mann nunca fez concessões aos nazistas. Esse ponto de sua biografia o enobrece e exalta. Um gesto assim peremptório – que lhe custou dinheiro, bens, a própria nacionalidade – mostra como a sua consciência história foi aguda. E como jamais recuou na denúncia do Mal. Coragem e verdade combinadas, como em um Goethe renascido.

Os paralelos com os tempos de hoje são óbvios. O mundo em crise; a Europa em crise. Entender o que se passa exige o resgate de Thomas Mann, a voz que continua a ser a consciência critica do povo europeu.

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Assista ao vídeo “E agora, Europa?”, no qual Nivaldo Cordeiro comenta a história das idéias políticas intervencionistas na Europa ao longo do século XX, responsáveis pelas grandes guerras mundiais e pela atual derrocada econômica do Velho Continente.



Escrito por Nivaldo Cordeiro, 21 Setembro 2011

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