"A verdade será sempre um escândalo". (In Adriano, M. Yourcenar)

"Quero imaginar sob que novos traços o despotismo poderia produzir-se no mundo... Depois de ter colhido em suas mãos poderosas cada indivíduo e de moldá-los a seu gosto, o soberno estende seus braços sobre toda a sociedade... Não quebra as vontades, mas as amolece, submete e dirige... Raramente força a agir, mas opõe-se sem cessar a que se aja; não destrói, impede que se nasça; não tiraniza, incomoda, oprime, extingue, abestalha e reduz enfim cada nação a não ser mais que um rebanho de animais tímidos, do qual o governo é o pastor. (...)
A imprensa é, por excelência, o instrumento democrático da liberdade."
Alexis de Tocqueville (1805-1859)



sábado, 8 de outubro de 2011

QUEM DEVE JULGAR OS JUÍZES?

A ação da Associação de Magistrados Brasileiros (AMB) junto ao Supremo Tribunal Federal (STF) para que este limite o poder do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) de investigar e julgar magistrados suspeitos de ilegalidades gerou uma grande polêmica, especialmente a partir da perspectiva, que parecia prevalecer até semana passada, de que o ponto de vista da AMB seria endossado pelo Supremo.

Uma boa parte da discussão tem girado em torno de como a atuação do CNJ afeta o trabalho das corregedorias dos tribunais. Quem se alinha com a tese da AMB defende que o CNJ pode esvaziar as corregedorias, pois estas acabariam por deixar todas as apurações para o Conselho. Quem defende o status quo aponta que uma das razões para a criação do CNJ foi exatamente a inoperância das corregedorias.

Ainda que acalorado, esse debate tem passado ao largo de uma questão fundamental: quem está mais bem posicionado para investigar e julgar os magistrados, o CNJ ou as corregedorias? Em especial, tem-se dado pouca importância a um aspecto crítico dessa situação: os magistrados são julgados por seus pares. Em geral, isso significa que o réu ou investigado pode ser colega e engajar-se em múltiplas relações com aqueles que lhe estão julgando. Pode-se pressupor que, em geral, o julgador levará em conta essas relações, passadas, presentes e futuras, na hora de decidir. Isso contrasta com o caso de um cidadão comum, em que a relação parte-magistrado é limitada ao julgamento. De fato, em havendo múltiplas relações entre o magistrado e a parte, a boa norma diz que esse deve declarar-se impedido de julgar.

A maior contribuição da mídia é impedir que o caso seja esquecido, já que a sociedade passa a cobrar um desfecho

Dois trabalhos recentes ajudam a responder à questão acima a partir da análise de outras duas situações em que o julgamento de desvios funcionais, na expressão do Ministro Peluso, também é feito pelos pares. Sandro Cabral e Sérgio Lazzarini, em “The ‘Guarding the Guardians’ Problem: An Analysis of Investigations against Police Officers in an Internal Affairs Division”, analisam o caso das corregedorias de polícia. Michele Butto, Carlos Pereira e Mathew Taylor, em “Sunshine or Shadow? The Effect of Secret Voting Procedures on Legislative Accountability”, examinam os julgamentos dos deputados federais.

Os estudos, com base em avaliações empíricas diversas, chegam a quatro conclusões importantes para o caso em questão.

Cabral e Lazzarini concluem que investigações conduzidas por comissões especializadas, em anteposição àquelas formadas caso a caso, em geral chegam a resultados mais rapidamente. Butto, Pereira e Taylor também observam que a composição do conselho julgador é um determinante importante do resultado. Isso aponta para a relevância de se ter julgadores com menor número de relações com as partes investigadas ou julgadas, o que claramente é uma vantagem importante do CNJ em relação às corregedorias. Da mesma forma, uma “comissão especializada” como o CNJ é mais visível e fácil de monitorar do que corregedorias espalhadas pelo país.

Segundo, o poder e a senioridade do acusado influem no resultado. Na polícia, oficiais de patente mais alta tendem a ser punidos de forma mais branda, enquanto a investigação é mais rigorosa quando se trata de um novato. Na Câmara dos Deputados, o poder do deputado – por exemplo, uma liderança partidária – também afeta a probabilidade de punição. Isso sugere que a investigação e julgamento pelo Conselho Nacional de Justiça é mais crítico no caso de desembargadores do que de juízes de primeira instância, que poderiam ficar sob responsabilidade das corregedorias.

Esse poderia vir a ser um critério para evitar que o Conselho seja eventualmente sobrecarregado de apurações.

Terceiro, a publicidade, em especial a cobertura feita pela mídia, tem grande influência no resultado da investigação. A maior contribuição é provavelmente impedir que o caso seja esquecido, na medida em que a sociedade passa a cobrar um desfecho. Essa evidência vai de encontro à proposta do ministro Ari Pargendler, de que as investigações contra magistrados sejam feitas sob sigilo.

Quarto, Cabral e Lazzarini observam que o tipo de delito sendo investigado influi no resultado. Por exemplo, acusações de extorsão tendem a ser tratadas com mais rigor do que aquelas de violência policial. Também no caso do Congresso há evidências de maior rigor no julgamento de delitos menos relacionados, na prática, à atividade política: por exemplo, há mais rigor em relação a homicídios do que contribuições ilegais de campanha. Infere-se daí que a atuação do CNJ é especialmente relevante em desvios funcionais menos sérios, uma vez que os casos mais graves, como a venda de sentenças, por exemplo, tenderiam a ser tratados mais duramente pelas corregedorias.

Naturalmente, há que se ter cuidado ao extrapolar inferências obtidas nos casos da polícia e dos deputados federais para o dos magistrados. A boa notícia, porém, é que há dados disponíveis para se fazerem estudos semelhantes para o caso do judiciário. Avaliações recorrentes sobre o tema seriam importantes para garantir o aperfeiçoamento institucional nessa área.

Armando Castelar Pinheiro
Fonte: Valor Econômico, 07/10/2011

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