"A verdade será sempre um escândalo". (In Adriano, M. Yourcenar)

"Quero imaginar sob que novos traços o despotismo poderia produzir-se no mundo... Depois de ter colhido em suas mãos poderosas cada indivíduo e de moldá-los a seu gosto, o soberno estende seus braços sobre toda a sociedade... Não quebra as vontades, mas as amolece, submete e dirige... Raramente força a agir, mas opõe-se sem cessar a que se aja; não destrói, impede que se nasça; não tiraniza, incomoda, oprime, extingue, abestalha e reduz enfim cada nação a não ser mais que um rebanho de animais tímidos, do qual o governo é o pastor. (...)
A imprensa é, por excelência, o instrumento democrático da liberdade."
Alexis de Tocqueville (1805-1859)



terça-feira, 21 de agosto de 2012

4 MITOS SOBRE O MENSALÃO

4 mitos sobre o mensalão

Para negar a existência de um esquema de corrupção, a propaganda petista criou uma versão que nega os fatos. Parte da defesa abraçou essa versão na semana passada

Num artigo recente, o advogado José Luís de Oliveira Lima, conhecido como Juca, defensor do ex-ministro José Dirceu no julgamento do mensalão, comparou o processo em curso no Supremo Tribunal Federal (STF) ao mito da caverna, alegoria criada pelo filósofo grego Platão. Nela, homens vivem acorrentados dentro de uma gruta, olhando para sombras e tomam essas sombras pela realidade. A segunda semana do julgamento deixou uma dúvida.

Quem está, afinal, vendo uma imagem distorcida dos fatos? É, como quer Juca, o procurador-geral da República, Roberto Gurgel – que, no dizer dos advogados de defesa, fez uma denúncia “inconsistente”?
 Ou são os próprios advogados de defesa, que, em suas sustentações orais, confundiram mais do que esclareceram – e ajudaram a propagar mitos sobre o mensalão?

CONSTRUTORES DE MITOS Alguns dos principais réus  do mensalão. Para contestar as provas de corrupção surgidas durante a investigação,  os mensaleiros e seus apoiadores criaram falsas versões sobre o que aconteceu    (Foto: Folhapress (5) e  AE (4))

Os fatos sobre “o mais atrevido e escandaloso esquema de corrupção e de desvio de dinheiro público flagrado no Brasil”, nas palavras de Roberto Gurgel, são cristalinos. Em 6 de junho de 2005, o deputado federal Roberto Jefferson, do PTB, deu uma entrevista ao jornal Folha de S.Paulo dizendo que deputados da base aliada recebiam todo mês R$ 30 mil para apoiar o governo – e tal estipêndio tinha o apelido de mensalão.

Seis dias depois, em 12 de junho, no plenário da Câmara, fez outra denúncia: havia um esquema de repasse de dinheiro a partidos que compõem a base de sustentação do governo, idealizado pelo deputado José Dirceu, comandado pelo tesoureiro do PT, Delúbio Soares, e “tendo como pombo-correio o senhor Marcos Valério, um carequinha que é publicitário lá em Minas Gerais”.

A entrevista do dia 6 tinha algo de emocional: Jefferson queria se vingar do deputado José Dirceu, que, segundo ele imaginava, vazara informações sobre corrupção no PTB para a imprensa. A fala do dia 12, mais precisa, motivou as investigações que se seguiram.
Elas acabaram comprovando a existência do esquema denunciado pelo líder petebista – um caso em que, pela primeira vez no Brasil, altos representantes de um poder (o Executivo) são flagrados corrompendo altos representantes de outro poder (o Legislativo).
O julgamento que ora se desenrola no STF visa estabelecer a responsabilidade de cada acusado no esquema, com base nas provas coletadas pela acusação.

Esses são os fatos. A propaganda petista, ao tentar dizer que o mensalão foi um mito, propaga seus próprios mitos sobre o caso. Parte da defesa abraçou-os na semana passada. Ei-los.

Mito 1 


 Se não há prova de pagamento mensal, não houve mensalão

Tal mito foi brandido, na semana passada, por três advogados: Alberto Toron, que representa o ex-deputado João Paulo Cunha; Márcio Thomaz Bastos, defensor do diretor do Banco Rural José Roberto Salgado; e Marcelo Leonardo, advogado do publicitário Marcos Valério.
Diz essa versão que não há evidências de que o PT montara, no governo Lula, um esquema de repasse de dinheiro a parlamentares em troca de apoio político ao governo.

 A Procuradoria-Geral da República (PGR), porém, nunca denunciou um pagamento mensal do governo a parlamentares. Por uma razão simples.
A acusação coletou provas sobre a segunda afirmação de Roberto Jefferson, aquela feita com a razão – não a primeira, feita com base na emoção. O que a PGR denunciou foi um esquema de “compra de apoio político”, fartamente sustentado por provas testemunhais e documentais.
Elas mostram que os pagamentos aos deputados eram regulares, embora não fossem necessariamente mensais. Os extratos bancários provam que todo mundo recebeu – e todo mundo confirma que recebeu. O
s líderes partidários afirmaram em seus depoimentos ter levado dinheiro. Roberto Jefferson (PTB) afirmou ter recebido R$ 4 milhões do PT.
Valdemar Costa Neto (PL) confirmou ter recebido R$ 10 milhões.

Os deputados José Janene e Pedro Corrêa também confirmaram que o PP recebeu dinheiro. Além dos depoimentos, as investigações identificaram dezenas de saques feitos nas agências do Banco Rural em Brasília, em São Paulo, no Rio de Janeiro, em Belo Horizonte.
E também foram descobertos cheques recebidos pelos acusados.

A palavra “mensalão” foi uma criação de Roberto Jefferson. Ela depois se tornaria uma gíria para tipos bem diferentes de corrupção – “mensalão mineiro”, “mensalão do DEM”, “mensalinho” etc. O mensalão deve ser entendido no sentido de compra de apoio político com dinheiro sujo – não necessariamente com pagamento mensal. A confusão só serve à propaganda que tenta negar os fatos.

Mito 2


 Não há relação entre os saques e as votações do congresso


  Os réus dizem que não há relação entre as datas dos pagamentos feitos pelo valerioduto e os votos dos parlamentares envolvidos. O advogado Arnaldo Malheiros, que defende Delúbio, entregou aos ministros gráficos cujo objetivo era mostrar como o apoio de PL, PTB e PMDB ao governo diminuiu na mesma época em que os saques do mensalão aumentaram.
Se o mensalão tivesse sido verdadeiro, disse ele, o PT seria um “traído feliz”. “Não teria sido compra muito útil ou inteligente”, afirmou. “Jamais foi feito repasse de dinheiro a parlamentares para compra de votos”, disse Marcelo Leonardo, defensor de Marcos Valério.

As afirmações dos advogados ignoram uma das especificidades do mensalão: antes de corromper parlamentares, o Executivo corrompeu partidos. As negociações com o PL (atualmente PR), PTB e PP foram feitas com os líderes das legendas, respectivamente Valdemar Costa Neto, Roberto Jefferson e José Janene.


Durante o mensalão, o governo Lula obteve do Congresso o que bem queria, como mostrou o procurador-geral da República, Roberto Gurgel – e partidos como PTB, PP e PL incharam como balões. Gurgel destacou a atuação de deputados do PTB, do PP, do PL e do PMDB na aprovação das reformas da previdência e da reforma tributária, em 2003.

Além disso, apoio político não se resume a votos favoráveis. Aliados servem também – e sobretudo – para proteger o governo, evitando convocações e requerimentos desagradáveis. Ou até para não fazer nada.

Em fevereiro de 2004, ÉPOCA revelou que o principal assessor de José Dirceu, Waldomiro Diniz, pedira propina ao bicheiro Carlinhos Cachoeira. A crise causou abalos, mas a oposição só conseguiu assinaturas para uma CPI no Senado, onde não havia mensalão. Na Câmara, onde havia, nem sinal de CPI.

Mito 3


 O dinheiro era só caixa dois eleitoral


 Trata-se da versão criada durante o escândalo para salvar o governo Lula. O advogado Malheiros usou essa tese para rebater as acusações contra Delúbio Soares: “Ele fez caixa dois de campanha, isso ele não nega.
Agora, ele não corrompeu ninguém”. Há, de fato, situações de caixa dois eleitoral narradas no processo do mensalão. Mas não há só isso – e, de qualquer modo, elas são irrelevantes para a gravidade dos crimes.
Do ponto de vista ético, pouco importa se o dinheiro ilegal foi usado para pagar dívidas eleitorais ou para qualquer outra finalidade. Importa que houve, comprovadamente, compra de apoio político. Como admitiu o deputado Valdemar Costa Neto em entrevista a ÉPOCA, em junho de 2005, o PL não apoiaria o governo se não recebesse R$ 10 milhões.

Quase todos os integrantes dos partidos aliados de Lula não apresentaram comprovantes de que usaram os recursos entregues por Valério para quitar dívidas eleitorais.

O PTB não apresentou nenhuma nota fiscal para provar que gastou os R$ 4 milhões recebidos do PT com despesas eleitorais. O mesmo se dá com o PL, com o PMDB, com o PP…
O então assessor parlamentar do PP, João Cláudio Genu, sacou R$ 1,1 milhão. Segundo os depoimentos dos deputados José Janene e Pedro Corrêa, o dinheiro foi usado para pagar advogados. Mas também não apareceu nenhuma nota fiscal para confirmar isso.
Apenas o depoimento de Genu admitindo que entregava o dinheiro à liderança do PP no Congresso.


Mito 4


 Não há prova do envolvimento de josé dirceu


“Não há, no entender da defesa, nenhuma prova, nenhum documento, nenhuma circunstância que incrimine José Dirceu”, disse o advogado de Dirceu, José Luís de Oliveira Lima, o Juca, na semana passada.
Os propagadores desse mito afirmam que Dirceu se afastara do PT quando assumiu a pasta da Casa Civil no governo Lula.
Não faltam evidências, no entanto, da participação de Dirceu no mensalão. Elas estão nos depoimentos dos líderes partidários do PP e do PL. Ambos confirmaram o poder de Dirceu para autorizar qualquer acordo envolvendo o PT.
E também nos depoimentos de Roberto Jefferson, o autor original das denúncias. Ele afirmou que as reuniões para chegar ao acordo do PTB com o PT foram feitas com Genoino, Marcelo Sereno, Delúbio Soares e Dirceu, que “homologava todos os acordos daquele partido (PT)”.
Jefferson afirma que Genoino, apesar de ser presidente do PT, não tinha autonomia para “bater o martelo”.
Valério, em seu depoimento, corrobora essa tese. Segundo ele, Delúbio assegurou que Dirceu sabia das operações financeiras. A mulher de Valério também disse que Dirceu sabia e, em seguida, Valério confirmou o que sua mulher dissera.
Delúbio disse que só agia por orientação partidária, nunca sozinho. Em depoimento à Justiça Federal, em 14 de dezembro de 2007, o deputado Pedro Corrêa, do PP, afirmou que manteve várias reuniões com Dirceu, Genoino e Sílvio Pereira, o Silvinho, secretário-geral do PT e homem de confiança de Dirceu. Silvinho e Genoino administravam o PT.

Em 2003, um dos sócios de Valério, Rogério Tolentino, comprou o apartamento da ex-mulher de Dirceu, Angela Saragoça. Angela ainda conseguiu um financiamento imobiliário no Banco Rural. Para completar, Marcos Valério ajudou-a a arrumar emprego no BMG, o outro banco acusado de participar do mensalão. Se Dirceu conhecia tão pouco Valério, por que Valério ajudou tanto sua ex-mulher?


***
A luz da realidade desmente a sombra dos mitos. Na próxima vez em que citar Platão, o advogado Juca poderia buscar inspiração no Livro VIII da República. Nele, Platão compara os políticos a zangões, que vivem de sugar bens públicos em benefício próprio. Embora pessimista, a frase ganha contornos de triste realidade diante das provas do mensalão.

21 de agosto de 2012
LEANDRO LOYOLA E MARCELO ROCHA, Época

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