"A verdade será sempre um escândalo". (In Adriano, M. Yourcenar)

"Quero imaginar sob que novos traços o despotismo poderia produzir-se no mundo... Depois de ter colhido em suas mãos poderosas cada indivíduo e de moldá-los a seu gosto, o soberno estende seus braços sobre toda a sociedade... Não quebra as vontades, mas as amolece, submete e dirige... Raramente força a agir, mas opõe-se sem cessar a que se aja; não destrói, impede que se nasça; não tiraniza, incomoda, oprime, extingue, abestalha e reduz enfim cada nação a não ser mais que um rebanho de animais tímidos, do qual o governo é o pastor. (...)
A imprensa é, por excelência, o instrumento democrático da liberdade."
Alexis de Tocqueville (1805-1859)



quarta-feira, 10 de outubro de 2012

DECANO DO SUPREMO JULGA EX-COMPANHEIRO DE PENSÃO

 

 
Em julho, o estelionatário Sérgio Augusto Coimbra Vial foi preso mais uma vez pela polícia carioca.
Não aproveitou a oportunidade que lhe dera o ministro Celso de Mello, decano do Supremo Tribunal Federal (STF), que há cinco anos, em habeas corpus do qual se orgulha, anulou sentença que condenara Vial a dez anos de prisão por clonar cartões de crédito.
O ministro sustentou que as provas foram obtidas ilegalmente porque os agentes entraram à força no apartamento onde Vial se hospedava, na Zona Sul do Rio, para colher uma máquina de clonagem, chamada de chupa-cabra, sem autorização judicial.
Para chegar à conclusão de que a prova era ilícita por violação de domicílio, protegido pelo artigo 5º da Constituição, Mello se inspirou no conturbado ano de 1968, quando era estudante e morava na Pensão do Abelardo, na Rua Condessa São Joaquim, no Bexiga (SP).
Até hoje, o ministro se lembra da tensão que sofria quando a república era invadida por agentes do Dops atrás de agitadores do movimento estudantil. Se Mello não teve o quarto invadido, embora tenha sido obrigado a permanecer de pé, tenso, até o fim da batida, um vizinho não teve a mesma sorte. José Dirceu, outro hospede de Abelardo, já fazia parte da lista negra da repressão.
 
O destino voltaria a confrontá-lo com a trajetória de Zé Dirceu. Passados 44 anos, Mello é um dos dez juízes com o poder de levar para a prisão o ex-vizinho, acusado de corrupção ativa e formação de quadrilha. Ele foi um dos responsáveis para que esse julgamento acontecesse, ao votar em 2007 pelo acolhimento da denúncia.
Quatro meses mais velho do que Dirceu, Mello chegou à pensão em 1964 após uma temporada de estudos nos Estados Unidos. De uma família de Tatuí (a 131 quilômetros da capital), mudou-se para São Paulo aos 18 anos e se inscreveu no cursinho Toloza, na Rua São Bento, porque queria entrar para a Faculdade de Direito da USP.
Seu projeto não diferia dos sonhos de Dirceu, que chegara pouco antes, também do interior (a mineira Passa-Quatro), queria estudar Direito e também se abrigara no Abelardo.
Mello, que passaria cinco anos na pensão, descreve o quatro, dividido com outro hóspede, como "um cubículo com dois catres". Dirceu e Mello viviam em alas diferentes e se conheceram nas salas do cursinho Toloza.
O futuro presidente do PT trabalhava como office-boy.
- Naquele mesmo dia, nos encontramos na pensão e conversamos - recorda-se Mello.
As vidas deles seguiriam rumos distintos em 1965, quando Mello ingressou na USP e Dirceu, na PUC-SP.
 
O futuro ministro priorizava os estudos, e o vizinho de pensão, a carreira de líder estudantil. O calor das ruas logo bateria à porte do Abelardo.
No livro "O que fizemos de nós", que complementa a obra "1968: o ano que não terminou", de Zuenir Ventura, Mello descreveu o trauma causado pelas visitas noturnas dos agentes do Dops.
Mesmo tendo passado ao largo das agitações, ele contou que extraiu uma "dura lição": "Uma Constituição sob uma ordem autocrática não vale absolutamente nada. A polícia e os organismos militares detinham poderes totais sobre os indivíduos".
Em 1969, enquanto Mello diplomava-se, Dirceu ia para o exílio no México, em troca da libertação do embaixador norte-americano Charles Elbrick.
Para Mello, o regime militar representou muito mais do que o conceito abstrato, meramente teórico, estudado nos livros de História e de ciência política:
"Enfrentamos uma época realmente dura, em que pessoas eram arbitrariamente privadas de seus direitos", relatou a Zuenir.
Tal experiência alavancou a vocação de Mello pela preservação dos princípios constitucionais, como o direito a um julgamento justo, valor agora em jogo no julgamento do ex-vizinho dos temos duros do Abelardo.
O Globo
( Chico Otavio )
10 de outubro de 2012

Nenhum comentário:

Postar um comentário