"A verdade será sempre um escândalo". (In Adriano, M. Yourcenar)

"Quero imaginar sob que novos traços o despotismo poderia produzir-se no mundo... Depois de ter colhido em suas mãos poderosas cada indivíduo e de moldá-los a seu gosto, o soberno estende seus braços sobre toda a sociedade... Não quebra as vontades, mas as amolece, submete e dirige... Raramente força a agir, mas opõe-se sem cessar a que se aja; não destrói, impede que se nasça; não tiraniza, incomoda, oprime, extingue, abestalha e reduz enfim cada nação a não ser mais que um rebanho de animais tímidos, do qual o governo é o pastor. (...)
A imprensa é, por excelência, o instrumento democrático da liberdade."
Alexis de Tocqueville (1805-1859)



sexta-feira, 5 de outubro de 2012

VALE RELER O TEXTO DE FERNANDO GABEIRA


Este talvez seja um dos melhores textos, se não o melhor, que Fernando Gabeira escreveu. Flores, Flores Para Os Mortos. Não costumo gostar de esquerdistas. Mas, como em toda a regra há exceção, Gabeira parece ser uma delas. Um esquerdista arrependido, se não da filosofia, pelo menos das ações covardes. Abalo-me a vertê-lo aqui, pois nossos leitores podem não tê-lo lido alhures. Uma radiografia nua e crua do glorioso partido™, realizada por quem estava lá dentro, e pode falar de cátedra. Um verdadeiro libelo contra a corja de dirige o partido. Não se pode culpar todos os petistas. Já contei aqui que privei com um deles, membro fundador, que acreditava piamente na ética que era apregoada. Mal sabia ele que seriam dirigidos por uma chusma de malfeitores aproveitadores. Não sei o que é feito dele, se continua acreditando. Mas, como era uma pessoa inteligente, de bons princípios, pode ter caído na real. Espero!


Ofereço a ele o choro preferido de Pixinguinha, que fez em parceria com Benedito Lacerda, “Ingênuo”
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FLORES, FLORES PARA OS MORTOS
Fernando Gabeira
 
“Sempre que os fatos ganham velocidade, costumo comprar um bloco de notas. Anoto frases, idéias, intuições e deixo que se decantem com o tempo. Volto a elas, depois, para rejeitá-las ou desenvolvê-las. A primeira frase que me veio à cabeça foi a da vendedora de flores que encerra um filme. Volto a elas, depois, para rejeitá-las ou desenvolvê-las.

A primeira frase que me veio à cabeça foi a da vendedora de flores que encerra um filme. O pequeno bloco também tem idéias. Por exemplo: comparar a ditadura com o governo Lula. Uma neutralizou o Congresso pelo medo; o outro, pelo pagamento de mesada. Ditadura e governo Lula compartilham o mesmo desprezo pela democracia, ambos violentaram-na, reduzindo o Parlamento a uma ruína moral.

Os militares prepararam sua saída de forma organizada. Nem muito devagar, para não parecer provocação, nem muito rápido para não parecer que estavam com medo. Já o núcleo duro do governo Lula parece perdido, batendo cabeça, ou melhor, enfiando-a na areia, sem perceber que a polícia está chegando e, daqui a pouco, alguém vai gritar na porta do Planalto: “Se entrega, Corisco”.

Quando era menino e vivia em Juiz de Fora, fazíamos rodas de capoeira, bastante rudimentares – confesso. Mas cantávamos: “A polícia vem, que vem brava / quem não tem canoa, cai n’água”.
Tudo isso jorra aos borbotões na minha caderneta. Anotei: chamar alguém do “Guinness”, o livro dos recordes, para saber se algum tesoureiro de qualquer partido do mundo se desloca com batedores de motocicleta e carros clones para iludir perseguidores; se algum tesoureiro partidário se desloca com jatos particulares, semanalmente; se introduz no palácio associação de empreiteiros que receberam R$ 1,1 bilhão de dívidas.

Os militares batiam, davam choques e insultavam na sessão de tortura, mas vi muitos dizendo que me respeitavam porque deixei um bom emprego para combatê-los com risco de vida. Eles viam ideais no meu corpo arrasado pelo tiro e pela cadeia.

O PT queria que eu abrisse mão exatamente da minha alma, e me tornasse um deputado obediente, votando tudo o que o Professor Luizinho nos mandava votar. Os militares jamais pediriam isso.

Desde o princípio, disseram que eu era irrecuperável e limitaram-se à tortura de rotina. Jamais imaginei que seria grato aos torturadores por não me pedirem a alma. Não sabia que dias tão cinzentos ainda viriam pela frente.
Que seria liderado por um homem que achava que Maurício de Nassau era um deputado de Pernambuco. Logo eu, que sou admirador de um deputado pernambucano chamado Joaquim Nabuco. Foram os anos mais duros de minha vida.

No meu caderno anoto frases e indicações da semelhanças da luta contra a ditadura e da luta contra este governo, desde que comecei a criticá-lo, com a importação de pneus usados. As pessoas têm suas carreiras, seus empregos, sua racionalizações. É preciso respeitá-las, atravessar o deserto sem ressentimentos.

Agora, sobretudo, é preciso respeitar o sofrimento dos vencidos. Outro dia, quando me referi a um núcleo na Casa Civil como um bando de ladrões que atentava contra a democracia, uma jovem deputada do PT estremeceu. Senti que não estava ainda preparada para essas palavras cruas. E fui percebendo pelas anotações que talvez estejam aí, para o escritor, o mais rico manancial de toda essa crise. Como estão as pessoas do PT? Como se ajustam a essa nova realidade? Que destino tomaram na vida?

Procuro não confundir, entre os que ainda defendem o governo, aqueles que são cínicos, cúmplices e os outros, que apenas obedeceram as ordens sob a forma da aplicação do centralismo democrático. Alguns defendem porque ainda não conseguiram negociar com sua própria dor.
Não podem suportá-la de frente. Mas terão de fazer algum dia, porque, por mais ingênuos que sejam, já perceberam que a mãe está no telhado. Vamos ter de encarar juntos essa realidade. A grande experiência eleitoral da esquerda latino-americana, admirada por uma Europa desiludida com Cuba”.

05 de outubro de 2012

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