"A verdade será sempre um escândalo". (In Adriano, M. Yourcenar)

"Quero imaginar sob que novos traços o despotismo poderia produzir-se no mundo... Depois de ter colhido em suas mãos poderosas cada indivíduo e de moldá-los a seu gosto, o soberno estende seus braços sobre toda a sociedade... Não quebra as vontades, mas as amolece, submete e dirige... Raramente força a agir, mas opõe-se sem cessar a que se aja; não destrói, impede que se nasça; não tiraniza, incomoda, oprime, extingue, abestalha e reduz enfim cada nação a não ser mais que um rebanho de animais tímidos, do qual o governo é o pastor. (...)
A imprensa é, por excelência, o instrumento democrático da liberdade."
Alexis de Tocqueville (1805-1859)



segunda-feira, 12 de novembro de 2012

PODE UM PROCTOLOGISTA METER O DEDO NA HISTÓRIA?


Se um dia fizerem uma pesquisa para determinar qual parlamentar mais desserviços prestou ao Brasil, o senador petista Paulo Paim vence folgado. Em julho de 2006, escrevi artigo intitulado “Nazismo negro e guilda branca”, no qual comentava a nuvem de estupidez que pairava sobre o Congresso nacional naqueles dias.

Não que sobre o Congresso costumassem pairar nuvens de inteligência. Mas naqueles dias a estupidez concentrou-se e ameaçava cair como chuva sobre o país todo.

O projeto de lei n° 3.198/2000, também chamado de Estatuto da Igualdade Racial, de autoria do senador, decretava a extinção do mulato. Mais ainda, previa a identificação racial dos negros em documentos de identidade. Segundo o Estatuto, os negros passariam a ter carteirinha de negro. De lambuja, Paulo Paim extermina legalmente os mulatos do território pátrio: “Para efeito deste Estatuto, consideram-se afro-brasileiros as pessoas que se classificam como tais e/ou como negros, pretos, pardos ou definição análoga”.

Demorou mas chegou até nós. Está sendo introduzida legalmente no Brasil a classificação ianque, que só consegue ver pretos e brancos em sua sociedade e nega a miscigenização. Curioso observar que nas décadas passadas os movimentos negros haviam concluído que raça não existia. Agora passou a existir e deve constar em documento. Como o branqueamento é bastante generalizado no Brasil, talvez fosse melhor uma tatuagem ou adereço bem visível, como Hitler instituiu na Alemanha para judeus e homossexuais.

No dia 14 de outubro passado, a escalada do apartheid deu um passo importante. Coube à presidente da República dar um nó de tope no projeto do senador Paim, quando o Palácio do Planalto anunciou para este mês de novembro um amplo pacote de ações afirmativas, que inclui a adoção de cotas para negros no funcionalismo federal. A medida, defendida pessoalmente pela presidente Dilma Rousseff, atingiria tanto os cargos comissionados quanto os concursados.

A cota no funcionalismo público federal propõe piso de 30% para negros nas vagas criadas a partir da aprovação da legislação. Hoje, o Executivo tem cerca de 574 mil funcionários civis.

Existe também a idéia de criar incentivos fiscais para a iniciativa privada fixar metas de preenchimento de vagas de trabalho por negros. Ou seja, o empresário não ficaria obrigado a contratar ninguém, mas seria financeiramente recompensado se optasse por seguir a política racial do governo federal. Mérito ou capacitação profissional não mais interessam. O que interessa, definitivamente, é a cor da pele.

Quarta-feira passada, o Senado aprovou um projeto de lei surrealista, que reza: "O exercício da profissão de historiador, em todo o território nacional, é privativo dos portadores de diploma de curso superior em história, expedido por instituição regular de ensino".

Autor da obra? O famigerado senador petista. Não bastasse ter regulamentado a profissão de negro, regulamenta agora a profissão de historiador. O Brasil adora regulamentações. Em 69, os militares regulamentaram a profissão de jornalismo, ofício que em país algum do mundo civilizado é regulamentado. As esquerdas, que sempre condenaram os militares, assumiram com entusiasmo o decreto da ditadura. Afinal, serve para controlar a liberdade de expressão e pensamento. Então é salutar, digno e justo.

Quem não lembra de 1984? Na distopia proposta por Orwell, o Estado controlava toda a informação disponível. A história era constantemente reescrita, de acordo com as resoluções do Ministério da Verdade. Winston, o protagonista principal da obra, tinha por função reescrever reportagens anteriores do Times para que o Partido parecesse sempre estar certo nas suas decisões. É o sonho de um outro partido, o PT. Controlando o jornalismo, controla a história presente. Controlando a historiografia, controla o passado. Controlando passado e passado, controla também o futuro.

No que dependesse de Paulo Paim, Heródoto não teria escrito suas Histórias. Não tinha diploma. Ernesto Renan teria exercido ilegalmente a profissão, ao escrever os sete volumes de sua colossal história do cristianismo, mais outros tantos da história do judaísmo. No Brasil, um dos mais prolíficos estudiosos de nossa história, cuja obra é fundamental para o entendimento do ciclo de Vargas, era médico por formação. Especialização? Proctologia. Pelo projeto ora aprovado, proctologistas não devem meter o dedo na História.

A pretensão do senador é ridícula. Se alguém quiser escrever uma história da matemática ou da medicina, da astronomia ou da gastronomia, da arquitetura, da música ou da pintura, não precisa ser matemático ou médico, nem astrônomo ou arquiteto, nem precisa ter conhecimentos de música, gastronomia ou pintura. Basta ter o diploma do curso de História. De certa forma, estão proibidas as biografias. Biografia é história e biógrafos, de modo geral, não têm diploma de história.

Aliás, ser biógrafo já é profissão censurada no Brasil, este país incrível onde uma biografia depende da anuência do biografado e de seus descendentes. Recentemente, a biografia de Lampião foi censurada, a pedido de Expedita Ferreira, sua filha. Em novembro do ano passado, Aldo Albuquerque, juiz da 7ª Vara Cível de Aracaju, expediu uma liminar suspendendo a publicação do livro Lampião mata sete, no qual o juiz aposentado Pedro de Morais defende a tese de que Virgulino Ferreira da Silva, o famoso Rei do Cangaço, seria homossexual. “Não chega a ser nem um capítulo do meu livro, mas eu questiono o assédio dele aos meninos do cangaço e o fato de eles serem tão próximos”, disse Morais.

O livro foi proibido, antes mesmo de ser publicado. Vejamos como se sai o impoluto escritor Fernando de Morais, que está escrevendo a biografia de Zé Dirceu. Dela constará sua condenação pelo STF por sua chefia de quadrilha? Se constar, será permitida por Dirceu – ou pelos seus – sua publicação?

Mais algumas perguntinhas: se a mim, cronista, me ocorre escrever a história da crônica no Brasil, estaria proibido de escrevê-la? Se a um chef – ou simples amante da boa cozinha – ocorre percorrer a história de nossos hábitos alimentares, estaria proibido de fazê-lo? Se a um engenheiro especializado na produção de vidro apetece escrever uma história do vidro, precisaria primeiro freqüentar um curso de história antes de escrevê-la?

O ridículo é o mesmo que embasa a exigência de diploma para jornalistas. Jornalista não é quem domina uma área do conhecimento, mas quem tem curso de jornalismo. O ridículo passou no Senado. A nuvem de estupidez continua pairando sobre a casa. Dos 81 senadores, só dois votaram contra o absurdo. Assim como também passou a reforma da Previdência. Desta vez, nem foi preciso comprar votos. Nada de espantar neste país que já pretendeu regulamentar até mesmo as profissões de filósofo e astrólogo. Há precisamente uma década, um medíocre cronista do Estadão, o Mário Prata, já pediu a regulamentação da profissão de escritor.

De ridículo em ridículo, vai-se construindo a nação.


MÁRIO QUER PRATA *

Continua fazendo estragos no país o furor corporativista que assola certos ofícios. Em crônicas anteriores, comentei a regulamentação da profissão de astrólogo, cujo projeto de lei já passou no Senado. Enquanto a vigarice não toma forma de lei, um certo mestre De Rose - que não tem mestrado em coisa alguma - se propõe a regulamentar a profissão de instrutor de ioga. Os místicos se organizam e querem o monopólio do mercado das angústias humanas. Não bastassem estes senhores querer cercar de exigências os profissionais destas guildas metafísicas, um jornalista do Estadão quer agora carteirinha para escritor. Demonstrando desconhecimento da confecção de leis, o cronista Mário Prata pede ao presidente da república o reconhecimento de seu ofício: "O que eu quero, meu presidente, é que antes de o senhor deixar o governo, me reconheça como escritor". A capacidade de síntese do cronista é extraordinária: nunca se disse tanta bobagem em frase tão curta.

Esquecendo que existe um Congresso neste país, o cronista pede ao presidente a elaboração de uma lei. Mais ainda. Cita a Inglaterra como exemplo de país onde o escritor é reconhecido. Lá, segundo o cronista, toda editora que publicar um livro, tem que mandar um exemplar para cada biblioteca pública do país. "Claro que os 40 mil exemplares são comprados pelo governo. Quem ganha? Em primeiro lugar o público. Ganha a editora, ganha o escritor. Ganha o País. Ganha a profissão".

E quem perde? - seria de perguntar-se. A resposta é simples: como o governo não paga de seu bolso coisa alguma, perde o contribuinte, que com os impostos tem de sustentar autores até mesmo sem público. É o que chamo de indústria textil. Textil assim mesmo, sem acento: a indústria do texto. É uma indústria divina: você pode não ter nem um mísero leitor e vender 40 mil exemplares. Este é o sonho do cronista. Mário Prata viu um Potosi a céu aberto no bolso do contribuinte. Quando um político tasca a mão no dinheiro público, a imprensa horroriza-se e fala em ética. Mas se um membro da guilda sugere ao presidente da República que confisque dinheiro do contribuinte para seu bem-estar, chama-se a isto defesa da literatura nacional.

Diga-se de passagem, esta corrupção é florescente no Brasil. De fato, o Estado não compra 40 mil exemplares de cada editora. Mas através das leituras impostas em currículos e vestibulares, obriga a compra forçada dos Machados, Clarices Lispectors e Lygias Fagundes Telles da vida. Autores que, não fosse esta imposição da máfia editorial, há muito estariam gozando do merecido repouso eterno. Há quem defenda a privatização da Petrobras. Ninguém fala em privatização do livro. Pois o livro, no Brasil, é estatal.

Existe ou não existe a profissão de escritor no Brasil? Primeiro ter-se-ia de perguntar se escritor é profissão. Em um livro que causou algum escândalo na Paris dos anos 70 - Le Bazar des Lettres - Roger Gouze contestava com energia o caráter profissional do ofício. "O estatuto oficial do escritor me parece tão absurdo quanto o das prostitutas que também reivindicam o seu: não se pode ao mesmo tempo desafiar o poder, a polícia, as leis (por hipócritas que sejam) da sociedade e pedir-lhes uma proteção". Se a literatura é uma arte - argumenta o autor - o escritor deve, como todo mundo, ter uma profissão que o sustente, ao lado da arte que ele alimenta com o melhor de si mesmo. "Não uma segunda profissão, pois a literatura não é uma".

Como viverá então o escritor se a obra não lhe rende nada? "Como todo mundo" - responde Gouze. Claro que o autor francês fala de uma época em que literatura era vista como contestação. Hoje, os autores estão se profissionalizando. O editor pesquisa o paladar do público e encomenda um produto de moda. O escritor, como carneirinho dócil, escreve o que o público pede e o editor ordena. Ou o que um político paga. Fernando de Morais, por exemplo, está imerso na biografia desse caráter sem jaça, Antônio Carlos Magalhães.

No canta quien tiene ganas, sino quien sabe cantar - já dizia Martín Fierro. Escreve quem quer escrever, quem sente ter algo dizer e não consegue ficar calado. Regulamentar a profissão de escritor seria o primeiro passo para regulamentar também a de poeta. Ou a profissão escultor ou pintor. Não mais é poeta quem cria poemas, nem escultor quem esculpe, nem pintor quem pinta. Mas quem está registrado, em algum cartório, como tal. Você pode imaginar um ator que não consegue provocar um mísero aplauso em um teatro, mas é ator? Esse ator sem platéia já existe neste país incrível, pois a profissão foi regulamentada.

A pretensão não é nova, só o arguto cronista do Estadão parece desconhecê-la. O projeto que regulamenta a profissão de escritor está em tramitação na Câmara Federal há pelo menos dois anos. O absurdo foi proposta do deputado Antônio Carlos Pannunzio, por sugestão de membros da Academia Sãoroquense de Letras, de São Roque, interior de São Paulo. O projeto estabelece as normas para o exercício da profissão, nos mesmos moldes da de jornalista. Só não exige curso superior. Aprovada a lei, escritor não será mais quem escreve, e sim quem possui certificado de habilitação profissional. Ao melhor estilo do finado mundo socialista, este certificado seria fornecido exclusivamente pelo sindicato ou por associações profissionais da categoria.

Um jornalista pede ao governo para extorquir do contribuinte o dinheiro de seu sustento. Mário quer prata. Volto a Fierro:

Si la vergüenza se pierde jamás se vuelve a encontrar.

12 de novembro de 2012
janer cristaldo

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