"A verdade será sempre um escândalo". (In Adriano, M. Yourcenar)

"Quero imaginar sob que novos traços o despotismo poderia produzir-se no mundo... Depois de ter colhido em suas mãos poderosas cada indivíduo e de moldá-los a seu gosto, o soberno estende seus braços sobre toda a sociedade... Não quebra as vontades, mas as amolece, submete e dirige... Raramente força a agir, mas opõe-se sem cessar a que se aja; não destrói, impede que se nasça; não tiraniza, incomoda, oprime, extingue, abestalha e reduz enfim cada nação a não ser mais que um rebanho de animais tímidos, do qual o governo é o pastor. (...)
A imprensa é, por excelência, o instrumento democrático da liberdade."
Alexis de Tocqueville (1805-1859)



quinta-feira, 10 de janeiro de 2013

RENÉ GUÉNON E A MODERNIDADE

    
          Artigos - Cultura 
Quem nos garante que num regime não-democrático, o mais elevado é necessariamente e sempre o melhor ou o maior? Quem nos demonstra que o Leviatã de Hobbes é um sistema melhor do que a democracia representativa?

Problema da crítica de René Guénon à modernidade, é o de que ele incorre no mesmo erro do gnosticismo moderno, quando anuncia uma visão escatológica milenarista servindo-se do conceito hinduísta de Kali Yuga, que serviu também de modelo à teoria do “eterno retorno” de Nietzsche.

Podemos, por isso, concluir que é muito difícil a um ser humano dissociar-se totalmente do espírito do tempo, neste caso concreto, da modernidade.

Porém, é possível fazer a crítica à modernidade baseando-nos em fatos e na razão, e por isso sem entrar pelo milenarismo adentro. E se René Guénon cometeu o pecado do milenarismo escatológico, não podemos reduzir o seu pensamento a esse pecado: pelo contrário, muito do pensamento de Guénon é racional — “racional” aqui entendido no sentido de “racionalidade”, e não de “racionalismo”; ou, o sentido dado aqui a “racional” é axiomático ou de “supra-racional”, segundo o conceito de René Guénon.

Devemos julgar uma determinada época histórica pelos fatos e pelos seus efeitos, não só no que diz respeito à cultura intelectual, mas essencialmente no que diz respeito à cultura antropológica — que é a cultura e a inteligência do povo, que é a mais importante de todas. E neste sentido, a análise histórica de René Guénon e as analogias que ele faz têm todo o sentido racional. Ou seja, não é possível dizer com segurança se estamos em presença de um final de “ciclo Kali Yuga” (porque “o futuro a Deus pertence”); mas é possível constatar, de fato, que a cultura antropológica atual é intelectual e espiritualmente inferior à da cultura antropológica da Idade Média na Europa — tal como René Guénon defende.

Não é, por exemplo, por alguém ser piloto de um avião que é necessariamente mais intelectualizado do que um determinado camponês da Idade Média. A capacidade intelectual não se mede apenas por capacidades motoras ou pela capacidade de percepção sensorial e/ou de ação empírica.

Aristóteles distinguiu a “arte do fazer” (techne), e do episteme (ciência), por um lado, do ethos (hábito) e do êthos (caráter) por outro lado. Ao contrário do episteme e da “arte de fazer”, o “hábito” requer a participação da “alma irracional” (“Ética a Eudemo”, Livro II, 2, 1220 b 1-3).

Ora, é essa “alma irracional” do ser humano que a modernidade eliminou da cultura antropológica, substituindo-a pelo conceito científico e chão de “subjetividade” relativista que foi relegada para um plano secundário do valor, e que truncou a unidade e a identidade da alma do ser humano moderno.
Por isso, dizer que um certo piloto de um Boeing 747 é necessariamente mais intelectualizado do que um determinado camponês da Idade Média, é afirmar que o techne é, por princípio, anterior e superior em valor, ao ethos — o que é irracional porque se coloca a quantidade acima da qualidade, e porque se nega a lógica e os seus axiomas que não são físicos.

René Guénon critica o gnosticismo moderno por “politizar a religião mediante a moralização da política”, mas ele comete o mesmo erro dos gnósticos modernos quando critica a democracia, ou seja, ele também politiza a religião, ou pelo menos politiza a metafísica, quando escreve: “O mais elevado não pode provir do mais baixo, porque o maior não pode provir do menor”.

A pergunta que fazemos é a seguinte: quem nos garante que num regime não-democrático, o mais elevado é necessariamente e sempre o melhor ou o maior? Quem nos demonstra que o Leviatã de Hobbes é um sistema melhor do que a democracia representativa? E a talhe de foice recordo as palavras de Mircea Eliade no seu livro “História das Ideias Religiosas” :

“(…) a fé inabalável e a força moral dos cristãos, a sua coragem perante a tortura e a morte, a qual foi admirada mesmo pelos seus maiores adversários (…)

Para todos os desenraizados do império (romano), para as vítimas de alienação cultural e social, a Igreja era a única esperança para alcançar a identidade e encontrar ou reencontrar um sentido para a existência. Visto que não existiam quaisquer barreiras sociais, raciais ou intelectuais, qualquer pessoa podia tornar-se membro desta comunidade otimista e paradoxal, na qual um cidadão poderoso, camareiro do imperador, se prostrava diante de um bispo que tinha sido seu escravo.

Muito provavelmente, nenhuma comunidade na História, nem antes, nem depois, conheceu uma igualdade, uma caridade e um amor entre irmãos tão grandes como aqueles que foram vividos nas comunidades cristãs dos primeiros quatro séculos.”

Se esta descrição do Cristianismo primordial não é democracia, não sei o que seja. Por exemplo, naquele tempo, os bispos eram eleitos pelo povo. O problema da democracia representativa é a lógica do contrato social saído de Rousseau, a promessa do político, e o conceito maçônico jacobino e gnóstico de “vontade geral”; mas não podemos nem devemos “deitar fora o bebê com a água do banho”.

10 de janeiro de 2013
Orlando Braga

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