"A verdade será sempre um escândalo". (In Adriano, M. Yourcenar)

"Quero imaginar sob que novos traços o despotismo poderia produzir-se no mundo... Depois de ter colhido em suas mãos poderosas cada indivíduo e de moldá-los a seu gosto, o soberno estende seus braços sobre toda a sociedade... Não quebra as vontades, mas as amolece, submete e dirige... Raramente força a agir, mas opõe-se sem cessar a que se aja; não destrói, impede que se nasça; não tiraniza, incomoda, oprime, extingue, abestalha e reduz enfim cada nação a não ser mais que um rebanho de animais tímidos, do qual o governo é o pastor. (...)
A imprensa é, por excelência, o instrumento democrático da liberdade."
Alexis de Tocqueville (1805-1859)



domingo, 6 de janeiro de 2013

SOBRE MORTOS-VIVOS E VIKTOR FRANKL

       
          Artigos - Cultura 
walkingdeadO fim da civilização no seriado derruba de uma vez por todas os paradigmas 'modernos'.

Assisti recentemente as duas primeiras temporadas do famoso seriado americano ‘The Walking Dead’ e posso afirmar que fiquei fascinado, não só pela produção impecável e pela qualidade extrema dos atores, mas principalmente pela qualidade dos roteiros.

Fábio Argondizo, um amigo do Facebook, chamou a minha atenção para a semelhança dramática da série com a vivência precária e radical dos campos de concentração narrada pelo psiquiatra Vitor Frankl no seu livro ‘Em Busca do Sentido’.

De fato, o seriado - pelo menos nas duas temporadas - merece destaque por espremer seus protagonistas entre duas questões em meio a uma corrida frenética pela sobrevivência em um mundo apocalíptico: "por que eu não quero morrer?" e "por que eu deveria viver?"

Em ‘The Walking Dead’ o mundo é repentinamente tomado por zumbis. Não há respostas sobre o que aconteceu: apenas cadáveres ambulantes em toda parte querendo devorar a todos. Não há tempo para entender muita coisa. Todos estão o tempo inteiro correndo, seja fugindo dos mortos-vivos, procurando víveres ou evitando sucumbir ao desespero dos que ainda estão vivos.

Para o desespero dos desarmamentistas, armas de fogo e balas tornam-se artigos de primeiríssima necessidade para evitar a voracidade dos zumbis ou o assédio de outros humanos igualmente desesperados. A civilização desabou: não há Estado, lei, mídia, nada; apenas destruição e morte. A ordem é sobreviver; ainda que não se saiba até quando nem para quê.

Apesar da violência gráfica perturbadora do seriado (sangue, massa encefálica e vísceras são café pequeno), é o drama humano que sobressalta na tela com uma crueza pouco vista. Todos os mesmos personagens poderiam estar em um campo de concentração: o homem que quer salvar a sua família, a mulher indefesa e incapaz de defender a si e aos outros, o idoso que teme tornar-se descartável, a jovem impetuosa que quer deixar de ser a eterna vítima, a criança que insiste em manter a inocência em meio ao caos, etc.

 
O personagem central, o policial Rick, no episódio piloto, protagoniza a cena síntese do seriado quando observa um zumbi com metade do corpo destruído arrastando-se desesperadamente como em uma agonia eterna. O 'caubói' o observa calmamente, com compaixão, como se pensasse "por que eu não quero matá-lo?" ou "por que deveria deixá-lo viver nesse estado?", antes que, com pesar, desferisse um tiro na cabeça do errante infeliz. A cena e o personagem do caubói sintetizam bem o diferencial de Vitor Frankl para sobreviver ao absurdo. No comentário de Olavo de Carvalho à obra supracitada:

Frankl entrou no campo (de concentração) firmemente determinado a conservar a integridade da sua alma, a não deixar que seu espírito fosse abatido pelos carrascos do seu corpo.

A alusão ao caubói estilo xerife não é gratuita e dialoga com os grandes westerns. Mais uma vez, o comentário do filósofo brasileiro sobre Frankl, parece sintetizar o personagem:

Frankl observou que, de todos os prisioneiros, os que melhor conservavam o autodomínio e a sanidade eram aqueles que tinham um forte senso de dever, de missão, de obrigação.

Rick nega a si o sabor da matança e da destruição irrefletida e tem na família e nos amigos a motivação para a sobrevivência e para a resistência moral. É claro que não vai ser fácil.

Shane, o amigo policial de Rick, é uma espécie de duplo do personagem central Rick. Crente de que o amigo estava morto, Shane toma para sua proteção a mulher e o filho do caubói, ganhando assim uma motivação para lutar. A volta do parceiro gera então uma rivalidade ao estilo girardiano com consequências trágicas. Os amigos não disputam apenas uma mulher, mas sim uma motivação vital para continuarem lutando naquele mundo absolutamente hostil e sem sentido. É o 'outro', expresso na mulher e na criança, que os mantém vivos, no lato sentido da palavra.

 
O fim da civilização no seriado derruba de uma vez por todas os paradigmas 'modernos'. Em outra cena simbólica, algumas mulheres do grupo de sobreviventes queixam-se de 'é preciso repensar a divisão das tarefas ali no acampamento'.

A queixa é vã: em um mundo de sobrevivência atroz não há como abrir mão dos homens - naturalmente mais fortes e guerreiros - na defesa do grupo, as tarefas domésticas e menos perigosas acabam ficando mesmo com as mulheres. A cena demonstra bem como todos os ismos caem facilmente por terra em uma situação extrema: feminismos e 'gêneros' tornam-se irrelevantes e impraticáveis e não há lugar para o egoísmo ideológico.

É imperiosa a necessidade de se reconhecer o Outro e a impossibilidade da auto-suficiência tão cara ao homem e a mulher de hoje. E é justamente por causa dessa incapacidade de conviver com o Outro que as mulheres 'reclamonas' decidem suicidar-se. Não há lugar nesse mundo para a quem falta humildade. Uma das mulheres se mata, a outra decide assumir um papel masculino.
 
O extermínio das famílias de muitos personagens parece enfraquecê-los. Rick e sua família chegam a despertar até certo ressentimento por parecerem mais confiantes. Um novo filho os tornam ainda mais motivados.

Olavo:


 “O sentido da vida, concluiu Frankl, era o segredo da força de alguns homens, enquanto outros, privados de uma razão para suportar o sofrimento exterior, eram acossados desde dentro por um tirano ainda mais pérfido que Hitler - o sentimento de viver uma futilidade absurda. Frankl tinha três razões para viver: sua fé, sua vocação e a esperança de reencontrar a esposa. Ali onde tantos perderam tudo, Frankl reconquistou não somente a vida, mas algo maior que a vida."

 
Mas não é a promessa de vida que impera em ‘The Walking Dead’. A morte é onipresente. É um horror e um convite. É comum os personagens depararem-se com suicidas. A personagem Andrea perde a irmã e só desiste de se matar quando encontra o zumbi de um suicida pendurado em uma árvore. Ali ela percebe que a morte não é o fim e pode ser o começo de um pesadelo ainda pior.
O sofrimento do homem, que podia ficar ali eternamente pendurado, como em uma punição eterna, a faz pedir que ele seja destruído. A consciência moral, volta a conquistar subitamente, naquele mundo, sua relação intrínseca com o sentido da vida em si.

Bem disse Franklin: "O homem pode suportar tudo, menos a falta de sentido."

Atestando a qualidade do seriado (espero que se mantenha nas próximas temporadas), uma outra cena deixou-me mesmerizado pela força poética. Em certo episódio, o grupo encontra uma igrejinha no meio do nada. Ao abrir-se as portas deparam-se com um grupo de zumbis sentados diante do Crucifixo. Que ironia! Os mortos, como que em eterna contemplação, fitam o Deus Vivo em forma de cadáver apregoado. Após matarem os zumbis, um dos membros do grupo debocha: "E aí, JC? Aceitando pedidos?" Os mortos fitam o Salvador, os vivos não.


Os vivos de alguma forma também podem estar mortos. Estar vivo é uma questão de atitude, literal e simbolicamente. Logo após, a mãe da menina perdida faz uma oração diante da Cruz. Nunca o silêncio de Deus foi tão eloquente a nos lembrar dos versículos de Isaías, 55, 6: "Buscai ao Senhor enquanto se pode achar, invocai-o enquanto está perto." Parece ser tarde. É doloroso imaginar que Deus possa ficar surdo aos apelos de uma mãe.
 
Os zumbis fascinam por serem um arquétipo de nossas próprias carcaças cada vez mais desalmadas e dominadas pelos instintos mais básicos. Nós somos os errantes. Os vivos e os mortos. Está claro que o que está em jogo em ‘The Walking Dead’ são as almas dos protagonistas. O Mal, que certamente é responsável por tudo, já possui aqueles corpos. As almas pertencem a Deus. Mas é preciso preservá-las. É preciso sobreviver ao apocalipse zumbi sem se tornar um deles; simbólica e literalmente, um monstro de frieza e amoralidade.
 
"Nenhum homem inventa o sentido da sua vida: cada um é, por assim dizer, cercado e encurralado pelo sentido da própria vida."
"The Walking Dead" parece ser pura logoterapia. Dramaturgia de primeira qualidade.

06 de janeiro de 2013
Luiz Fernando Vaz

 Referência:
Olavo de Carvalho, ‘A mensagem de Viktor Frankl’, revista Bravo, novembro de 1997.

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