"A verdade será sempre um escândalo". (In Adriano, M. Yourcenar)

"Quero imaginar sob que novos traços o despotismo poderia produzir-se no mundo... Depois de ter colhido em suas mãos poderosas cada indivíduo e de moldá-los a seu gosto, o soberno estende seus braços sobre toda a sociedade... Não quebra as vontades, mas as amolece, submete e dirige... Raramente força a agir, mas opõe-se sem cessar a que se aja; não destrói, impede que se nasça; não tiraniza, incomoda, oprime, extingue, abestalha e reduz enfim cada nação a não ser mais que um rebanho de animais tímidos, do qual o governo é o pastor. (...)
A imprensa é, por excelência, o instrumento democrático da liberdade."
Alexis de Tocqueville (1805-1859)



sexta-feira, 31 de maio de 2013

"LANTERNA MÁGICA" TRAZ MEMÓRIAS AMARGAS DE IGMAR BERGMAN

 



Publicado originalmente em 1987, ‘Lanterna mágica’ (Cosac ­Naify, 320 págs., R$ 87,50) não é uma autobiografia convencional. A reconstituição ordenada dos acontecimentos passa longe de ser uma prioridade ou um ojetivo para Ingmar Bergman (1918-2007).: ele não segue a cronologia nem se preocupa em respeitar uma estrutura narrativa que trate de forma equilibrada os diferentes períodos de sua vida e obra. E, no entanto, ‘Lanterna mágica’ é um dos melhores livros de memórias que já li, certamente o melhor escrito por um cineasta (e não foram poucos). Seu impacto para mim só tem equivalente nas memórias de outro gênio, este da literatura, Elias Canetti. Como o escritor búlgaro, o cineasta sueco escreve com espantosa sinceridade e  total entrega: ‘Lanterna mágica’ é uma autobiografia do coração, mas de um coração amargo. Saímos de sua leitura com a convicção de conhecermos profundamente seu autor, suas qualidades e seus defeitos, suas angústias, neuroses e medos, mas sem a mesma ceteza de admirá-lo.
 
Nesse sentido, ‘Lanterna mágica’ poderá desapontar o leitor em busca de informações objetivas, relatos detalhados ou análises “cabeça” dos 64 filmes que Bergman dirigiu – alguns dos consagrados como mais importantes pela posteridade sequer são mencionados. Sua movimentada carreira no teatro recebe tanta atenção (ou mais) quanto sua trajetória cinematográfica: Bergman dirigiu mais de 170 peças, a maioria em Estocolmo e em Munique, nem sempre com sucesso. Páginas e páginas são dedicadas a episódios desagradáveis, que muitos em seu lugar deixariam de fora.
 
Dois exemplos: a sedução do Nazismo, na adolescência, quando, num intercâmbio, morou na Alemanha com a família de um pastor, nos anos 30: “Eu o amei também. Durante muitos anos estive do lado de Hitler, alegrando-me com suas vitórias e me entristecendo com as derrotas”; e, já com mais de 60 anos, o sério problema que teve com o fisco da Suécia, quando foi acusado de sonegar impostos e quase levado à prisão, episodio que lhe valeu um colapso nervoso e o auto-imposto exílio na Alemanha: “Essa história, comprida e quase insuportável, que se estendeu por muitos anos, causando a mim e aos meus terrível sofrimento, custou uma fortuna em honorários advocatícios e me mandou para o exílio durante nove anos.” Outro trecho que pode surpreender muitos leitores é o de sua crítica ao movimento estudantil de 1968, que Bergman trata quase com desprezo, sublinhando o “lodo emocional”, o sectarismo e a intolerância dos jovens revolucionários.



A infância e os laços familiares – principalmente a intensa e conturbada relação com a mãe – são examinados em profundidade, em um processo de auto-análise sem qualquer filtro, maquiagem ou defesa. A exposição das próprias mazelas físicas (incluindo doenças crônicas constrangedoras, como os problemas digestivos e intestinais que o acompanharam por toda a vida) humaniza Bergman ainda mais, da mesma forma que a reconstituição de conflitos profissionais que pontuaram sua carreira no cinema e no teatro.
Por maior que tenha sido o seu sucesso, Bergman jamais conseguiu relaxar: viveu assombrado pela perspectiva do fracasso e pelo medo das pressões materiais: “Porque carrego comigo um tumulto constante, o qual tenho de manter sempre sob controle, sinto angústia diante do imprevisto, do imprevisível. No exercício de minha profissão, sou um pedante administrados do indizível. (…) Nunca me exponho. (…) Tudo é apenas aparência. Se por um momento levantasse a máscara e dissesse o que realmente sinto, meus companheiros se voltariam contra mim, me fariam em pedaços e me jogariam pela janela.”
 
Bergman tampouco encontrou a paz nos cinco casamentos (fora os longos casos com suas atrizes, como Liv Ullmann), nem estabeleceu com os nove filhos qualquer envolvimento afetivo Egoísta e muitas vezes frio – por exemplo, recursou-se a visitar o pai às vésperas de uma cirurgia delicada, apesar dos apelos da mãe; uma semana depois era a mãe que morria – ele reconhece que fez sofrer gente que deveria amar. Filho de um severo pastor protestante, sua relação com Deus e a religião também foi compreensivelmente conturbada, alimentando questões presentes nos filmes da primeira metade de sua carreira, como ‘O sétimo selo” (1957). Quando, na fase madura, ele se voltou para a dissecação dos relacionamentos afetivos interpessoais, os resultados foram igualmente amargos e perturbadores. Tratando o amor, a família e a fé de forma adulta, como raramente se vê hoje no cinema, Bergman dirigiu filmes que continuam inquietantes décadas após sua realização, como ‘Persona’ (1966), ‘Gritos e sussurros’ (1972), ‘Face a face’ (1973) e ‘Cenas de um casamento’ (1976).
 
Em ‘Lanterna mágica’, Bergman inventaria suas muitas culpas: pelos conflitos com os pais, pela crueldade com os irmãos, pela forma como tratou as mulheres, pela indiferença aos filhos, pela arrogância no trato com atores e subordinados.A mesma dureza amarga ele demonstra nas breves descrições de encontros com outros mitos, como Greta Garbo, Ingrid Bergman e Laurence Olivier.
 
Seu olhar está sempre em busca do defeito que fragiliza, nos outros como em si mesmo, como as rugas na boca de Garbo. Somente ao falar do cineasta russo Andrei Tarkóvski e de poucos outros colegas Bergman demonstra uma generosidade sem reservas: “(…) Tarkóvski é o maior de todos, pois se move, sem dúvida, no espaço do sonho; não explica, o que explicaria, afinal de contas? Ele é um sonhador que conseguiu pôr em cena suas visões. (…) Durante toda a minha vida bati à porta desse salão, onde ele se movimenta com toda a facilidade. Somente algumas vezes consegui entrar. (…) Fellini, Kurosawa e Buñuel se movem na mesma região de Tarkóvski. Antonioni estava a caminho, mas foi eliminado, sufocado por seu próprio tédio. Méliès esteve sempre lá sem se dar conta. Era, afinal, mágico de profissão.”
 
Tanto quanto o silêncio de Deus, Bergman filmou o abismo insuperável entre as pessoas. Sua descrição do casamento com a pianista Käbi Laretei vale tanto como uma confissão de incompetência como marido quanto como um diagnóstico perfeito do que acontece em muitas uniões, dependendo da experiência do leitor: “Tudo era uma produção nova e heróica que logo se transformou em nova e heróica catástrofe. Duas pessoas à caça de identidade e segurança escrevem papéis uma para a outra.
 
A máscara se espatifa logo e cai por terra ao primeiro estranhamento. Nenhum dos dois tem paciência de observar o rosto do outro. Ambos gritam com o olhar desviado: ‘Olhe para mim, veja-me’, mas ninguém vê. Os esforços não dão frutos. As duas solidões são um fato, o fracasso uma realidade não reconhecida. A pianista viaja em turnê, o diretor dirige e a criança é confiada a mãos competentes. Exteriormente, a imagem representa um casamento estável com sucesso para os contraentes. A decoração é de bom gosto e a iluminação bem-arranjada.”
 
Voltando à relação com a mãe: ela está sugestivamente presente no começo (“Inclino-me sobre fotografias de minha infância e estudo o rosto de minha mãe através da lupa: tento penetrar sentimentos que se deterioraram”) e no final do livro, que se encerra com a narrativa de um sofrido reencontro imaginário, anos após a morte dela, que deveria servir como ajuste de contas, mas que resulta mais uma vez em fracasso, na incapacidade de comunicação verdadeira, na ausência de qualquer revelação que desse sentido a esse absurdo chamado vida. Em 1983, Bergman realizou um curta sobre ela, ‘O rosto de Karin’, sem texto nem diálogo, composto apenas de fotografias, que talvez seja uma boa maneira de concluir esta resenha:


 
“Há alguns anos fiz um pequeno filme sobre o rosto de minha mãe. Eu o fiz com uma câmera de 8 mm e uma objetiva especial. Como, depois da morte de meu pai, roubei todos os álbuns de fotografia da família, tive acesso a um material considerável. O filme era, pois, sobre o rosto de minha mãe, ‘O rosto de Karin’, desde a primeira fotografia aos 3 anos até a última, uma foto de passaporte tirada alguns meses antes de seu derradeiro infarto.
“Dia após dia, estudei centenas de imagens através da objetiva, que ampliava e delimitava: a favorita do pai que envelhecia, orgulhosa, encantadora e arrogante. A estudante junto com suas colegas do primeiro ano da classe de Tia Rosa, em 1890. A menina que se contorce atormentada, vestida com um avental bordado, em meio a colegas que não estão usando avental. A primeira comunhão, numa blusa branca, bordada, cara, de corte russo, uma menina de Tchekhov, anelante e cheia de mistério. A jovem enfermeira com seu uniforme, a profissional diplomada, decidida e cheia de confiança. A fotografia do noivado, tirada em 1912. (…)
“Então vem a última imagem, a foto do passaporte. (…) Minha mãe havia sofrido dois infartos. Parece que um vento gélido soprou em seu rosto, os traços se desviaram um pouco. O olhar é velado, ela, que sempre lia, não pôde mais ler, o coração era mesquinho com o abastecimento do sangue, o cabelo cinzento sobre a fronte larga e baixa está puxado para trás, a boca sorri hesitante, é preciso sorrir nas fotografias. A pele macia das bochechas está empapuçada e atravessada por riscos e depressões, os lábios estão ressecados.”
 
(PS: Superficial e cheio de spoilers pinçados do texto para impressionar o leitor, o prefácio de Woody Allen – na verdade uma  resenha publicada no ‘New York Times’  em 1988 – é absolutamente dispensável. Recomendo saltar, ou deixar sua leitura para o final. Melhor seria ter mantido a introdução de Fernando Gabeira à primeira edição brasileira do livro, de 1988, da editora Guanabara).

31 de maio de 2013
Luciano Trigo

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