"A verdade será sempre um escândalo". (In Adriano, M. Yourcenar)

"Quero imaginar sob que novos traços o despotismo poderia produzir-se no mundo... Depois de ter colhido em suas mãos poderosas cada indivíduo e de moldá-los a seu gosto, o soberno estende seus braços sobre toda a sociedade... Não quebra as vontades, mas as amolece, submete e dirige... Raramente força a agir, mas opõe-se sem cessar a que se aja; não destrói, impede que se nasça; não tiraniza, incomoda, oprime, extingue, abestalha e reduz enfim cada nação a não ser mais que um rebanho de animais tímidos, do qual o governo é o pastor. (...)
A imprensa é, por excelência, o instrumento democrático da liberdade."
Alexis de Tocqueville (1805-1859)



segunda-feira, 3 de junho de 2013

NA BASE DA GAMBIARRA

O descompromisso do governo com os princípios republicanos de fato, não os usados como figuras de retórica para efeito de disfarce, assume uma nitidez espantosa quando o presidente do Senado, Renan Calheiros, é quem dá à presidente da República lições sobre o funcionamento das instituições.
 
Nesse ponto a gente vê que há mais que "algo errado", para usar a expressão do presidente da Câmara, Henrique Alves (correligionário de Calheiros), na concepção de República dos atuais locatários do poder.
 
Está certíssimo o senador quando informa à ministra da Casa Civil, Gleisi Hoffmann, que o Executivo não dá ao Legislativo a sua devida dimensão e que, embora desafine, não é assim que a banda toca na ordem natural das coisas. Pura verdade.
 
Mas é fato também que o limite não foi ultrapassado à força. O Planalto não arrombou, simplesmente avançou por uma porta que o Congresso deixou aberta.
 
Comportou-se como armazém de secos e molhados; o governo, em seu desapreço aos parceiros e na certeza de que o PT tem o monopólio da virtude e o respaldo eterno das pesquisas e opinião, sentiu-se à vontade para tratar o Parlamento como objeto de sua propriedade com salvo-conduto para qualquer tipo de uso.
 
Pior: assim continuaria sendo se a presidente Dilma Rousseff soubesse pilotar com habilidade a sua maioria e tivesse noção do que seja diálogo. É necessário, portanto, dar o devido peso à altivez temporã assegurada ao Senado pelo presidente da Casa. A atitude é consequência do estilo da chefe da nação: rude e crente de que é a mais sabida de todos.
 
Em sua presumida sapiência conseguiu transformar uma imensa base aliada em enorme e inesgotável fonte de problemas. Talvez para surpresa da presidente, não se resolvem com liberação de emendas ao Orçamento nem com gestos de intimidação.
 
Vamos ver agora se o Senado fica firme em sua posição, se a Câmara acompanha ou se tudo não passou de um soluço. Muito em breve, nesta semana mesmo, já vai ser possível perceber. É quando se confirma, ou não, uma das hipóteses aventadas pelo governo para contornar as dificuldades decorrentes da tramitação das MPs.
 
Assim como se fosse coisa mais natural do mundo, fala-se em transferir o conteúdo de uma medida com prazo de validade vencido para outra que versa sobre assunto diferente. A prática é conhecida como "contrabando" no Congresso. É ilegal, mas sempre foi aceita.
 
No ano passado, porém, quando o Supremo Tribunal Federal determinou que o Legislativo cumprisse a Constituição e passasse a examinar todas as medidas em comissão mista, o então presidente da Câmara, Marco Maia, anunciou que não poderiam mais ser incluídos itens estranhos ao objeto original da MP em plenário, depois da passagem pela comissão.
 
Caso aceite o estratagema do "contrabando", o Congresso estará dando aval a que o governo continue atuando por intermédio da mão do gato. Na base da gambiarra.

03 de junho de 2013
Dora Kramer, O Estado de S.Paulo

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