"A verdade será sempre um escândalo". (In Adriano, M. Yourcenar)

"Quero imaginar sob que novos traços o despotismo poderia produzir-se no mundo... Depois de ter colhido em suas mãos poderosas cada indivíduo e de moldá-los a seu gosto, o soberno estende seus braços sobre toda a sociedade... Não quebra as vontades, mas as amolece, submete e dirige... Raramente força a agir, mas opõe-se sem cessar a que se aja; não destrói, impede que se nasça; não tiraniza, incomoda, oprime, extingue, abestalha e reduz enfim cada nação a não ser mais que um rebanho de animais tímidos, do qual o governo é o pastor. (...)
A imprensa é, por excelência, o instrumento democrático da liberdade."
Alexis de Tocqueville (1805-1859)



domingo, 28 de agosto de 2011

CARACTERÍSTICAS DE UM LOUCO (PARTE I)


Em 'O dia em que o presidente sumiu', Augusto Nunes comenta sobre o ex-presidente Jânio Quadros, que ficou no cargo por apenas 207 dias.

O artigo de Augusto Nunes não se resume a informações sobre um passado que pode ser considerado tão esdrúxulo quanto algumas fotos com o ex-presidente relâmpago naquela época.

Ao ler as diversas características de loucura que acometiam Jânio Quadros, pareceu que o artigo vinha com um som arrepiante ao fundo. É como se, durante a leitura, nossos ouvidos ouvissem um berro abafado acompanhado de gargalhadas alucinadas, a nos dizer "Loucura é o nosso nome."

A reportagem de Augusto Nunes se refere à foto de Jânio Quadros ao lado como a imagem da indecisão. Porém, se os pés trocados significam a indecisão de um, no outro demonstram ""coalisão"". É quando os pés podem trair o verdadeiro destino daqueles que vão, ao mesmo tempo, para os dois lados.

Sete anos depois do suicídio de Getúlio Vargas, sete meses depois da posse, o presidente Jânio Quadros precipitou, com sete linhas manuscritas, a sequência de crises que desembocaria, sete anos mais tarde, no Ato Institucional n° 5 - e na instauração da ditadura sem camuflagens. Na manhã de 25 de agosto de 1961, a democracia ainda em sua infância viu-se forçada a renunciar à maturidade, que só seria alcançada caso fossem cumpridos integralmente dois mandatos consecutivos. O Brasil civilizado pareceu mais distante que nunca no dia em que o presidente sumiu.

Abrupto e inesperado, o último ato foi um fecho coerente para a ópera do absurdo composta desde o primeiro dia de governo, quando Jânio foi ameaçado pela maioria oposicionista no Congresso: se ele continuasse a hostilizar o antecessor Juscelino Kubistchek, uma sessão especial da Câmara e do Senado seria convocada para tratar do assunto. Ainda em 10 de fevereiro, o novo presidente revidou com a criação de comissões de sindicância, chefiadas por militares e incumbidas de investigar ""focos de corrupção" que dizia ter herdado de JK.


Nos dias seguintes, o Brasil viajou numa montanha-russa monitorada por um homem de 44 anos que obedecia exclusivamente ao instinto. Tangenciando o penhasco com perturbadora frequência, alternando freadas bruscas com arrancadas vertiginosas, ele aumentou o expediente dos servidores públicos, exonerou meio mundo, suspendeu nomeações por um ano, reduziu o orçamento das Forças Armadas e os quadros funcionais de todas as embaixadas, tabelou o preço do arroz e do feijão, condenou a invasão de Cuba financiada pelos Estados Unidos, planejou a anexação da Guiana Francesa, baixou medidas de combate ao monopólio, desvalorizou a moeda, determinou ao ltamaraty que restabelecesse relações diplomáticas com a União Soviética, proibiu maiô em concurso de miss, lança-perfume, briga de galo, corridas de cavalo em dias úteis e veiculação de comerciais no cinema, mobilizou o Exército para reprimir uma greve de estudantes no Recife, brigou com a maioria dos parlamentares aliados, regulamentou a remessa de juros para o exterior, enviou o vice João Goulart à China, condecorou Che Guevara e rompeu com Carlos Lacerda. No 207º dia de governo, renunciou à Presidência.

Insatisfeito com o Congresso, infeliz com a vida numa cidade que odiava, colérico com o discurso em que Carlos Lacerda o acusou de tramar um golpe de gabinete, Jânio pouco dormiu na madrugada de 25 de agosto de 1961. Saiu da cama antes que o sol nascesse disposto a tirar o sono dos demais brasileiros. Depois do café da manhã, ao lado da piscina do Palácio da Alvorada, sobressaltou a mulher, Eloá, com outra frase de novela mexicana: "A conspiração está em marcha, mas vergar eu não vergo!"

Às 6 horas, já no Planalto, chamou a seu gabinete alguns assessores de confiança e, alisando o bigode de dono de botequim, antecipou a manchete da próxima edição de todos os jornais: "Comunico aos senhores que renuncio, hoje, à Presidência da República".
Durante o desfile do Dia do Soldado, convocou os três ministros militares para uma audiência - e para deixá-los atônitos com a notícia. Rejeitou os apelos para ficar com outro palavrório solene que terminava com a identificação do culpado: "Ajustem o novo Brasil às exigências do Brasil novo. Com esse Congresso eu não posso governar".

Sem pausas, ordenou ao ministro da Justiça, Oscar Pedroso Horta, que entregasse ao presidente do Senado, Auro de Moura Andrade, a carta que redigira no dia 19, depois de condecorar Che Guevara.
Na hora do almoço, embarcou rumo à base aérea de Cumbica, para a demorada escala que precedeu a partida para a Europa a bordo de um navio cargueiro. No dia 26, o país, imerso na perplexidade, pareceu afundar na crise provocada pelo veto dos chefes das Forças Armadas à posse do vice João Goulart.

"Ele foi a UDN de porre no governo", resumiu Afonso Arinos de Mello Franco, ministro das Relações Exteriores. "Faltou alguém trancá-lo no banheiro", lastimou. Só se fosse para sempre, sabe-se hoje.
Algumas horas de cárcere privado só adiariam a tentativa de instituir o presidencialismo autoritário que o deixaria livre para agir. Na carta da renúncia, o signatário informou que deixara com o ministro da Justiça as razões do seu gesto. O segundo texto confiado a Pedroso Horta é um amontoado de queixas difusas, alusões a "forças terríveis", declarações de amor ao Brasil e juras de apreço ao Povo (com maiúscula). Ele só contou a verdade alguns meses antes de morrer, em 16 de fevereiro de 1992, numa conversa com Jânio John Quadros Mulcahy, o único filho homem de Tutu Quadros.

Em 25 de agosto de 1991, trinta anos depois da renúncia, o paciente internado no Hospital Albert Einstein, em São Paulo, foi acometido por um surto de sinceridade provocado pela curiosidade do neto. "Foi o maior erro que cometi", lamentou. "Ao renunciar, eu quis pedir um voto de confiança à minha permanência no poder."
Foi para acentuar a sensação de vazio que despachara o vice, João Goulart, para a China. "Jango era uma espécie de Lula, completamente inaceitável para a elite", comparou.

"Imaginei que o povo iria às ruas, seguido dos militares, e que eu seria chamado de volta."

O intuitivo genial só esqueceu de combinar com os adversários. Auro de Moura Andrade comunicou ao plenário do Congresso que a renúncia era "um ato de vontade unilateral", e empossou o presidente da Câmara, o depurado Ranieri Mazzilli.

Preocupados com o vice que voltava da China, os militares esqueceram o homem que desertara. E o povo só poderia ser mobilizado por um partido janista que o líder jamais deixou nascer. "Fiquei com a faixa presidencial até o dia 26", contou ao neto. "Deu tudo errado. O país pagou um preço muito alto." Jango acabaria engolido pelos quartéis. Mas seria expedido três anos mais tarde.

Augusto Nunes

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