"A verdade será sempre um escândalo". (In Adriano, M. Yourcenar)

"Quero imaginar sob que novos traços o despotismo poderia produzir-se no mundo... Depois de ter colhido em suas mãos poderosas cada indivíduo e de moldá-los a seu gosto, o soberno estende seus braços sobre toda a sociedade... Não quebra as vontades, mas as amolece, submete e dirige... Raramente força a agir, mas opõe-se sem cessar a que se aja; não destrói, impede que se nasça; não tiraniza, incomoda, oprime, extingue, abestalha e reduz enfim cada nação a não ser mais que um rebanho de animais tímidos, do qual o governo é o pastor. (...)
A imprensa é, por excelência, o instrumento democrático da liberdade."
Alexis de Tocqueville (1805-1859)



domingo, 28 de agosto de 2011

CARACTERÍSTICAS DE UM LOUCO (PARTE II)

A tentativa de implantação de uma ditadura civil que resultou no advento de uma ditadura militar ortodoxa seria a peça mais vistosa do acervo de singularidades e paradoxos colecionados desde o berço. Jânio João Quadros, segundo a certidão de batismo, o filho do médico Gabriel Nogueira Quadros e da dona de casa Leonor Silva Quadros, resolveu ainda menino trocar o "João" por um "da Silva" e juntar o mais comum dos sobrenomes ao prenome inspirado em Janus, o deus bifronte. Virou Jânio da Silva Quadros - ou apenas Quadros, na assinatura dos bilhetinhos ou de decretos oficiais.
Nascido em Campo Grande (hoje Mato Grosso do Sul), inventou quando estudante em Curitiba um estranhíssimo sotaque sem parentesco com Mato Grosso, com o Paraná ou com qualquer região.

O acento personalíssimo só pode ser encontrado na voz dos imitadores. O estudante de direito da Faculdade do Largo São Francisco já exibia trajes desleixados e cabelos em desalinho, parecia pouco asseado, bebia com muita competência e apreciava frases empoladas. Tinha na cabeça (além de um dicionário alojado em algum desvão do cérebro) ideias vagamente nacionalistas e a certeza de que fora enviado pela Divina Providência para salvar o Brasil.

Em 1947, os alunos do Colégio Dante Alighieri decidiram conseguir uma vaga na Câmara Municipal de São Paulo para o professor de geografia que não fizera sucesso como advogado criminalista e não ingressara na carreira diplomática "por não corresponder aos padrões estéticos". Foi o começo da impressionante cavalgada das vassouras, anabolizada pelo discurso que celebrava a luta do tostão contra o milhão, prometia varrer a bandalheira, punir os desonestos, enquadrar os ineptos e engaiolar os corruptos - a começar pelo inimigo preferido, Adhemar de Barros, uma espécie de Paulo Maluf sem disfarces.
Em apenas treze anos, Jânio foi deputado estadual, prefeito da capital, governador, deputado federal e presidente da República. Só ficou do começo ao fim no governo de São Paulo. Ao completar o mandato em janeiro de 1959, o líder carismático havia incorporado a imagem de administrador incorruptível.

O Brasil fora feliz com JK, um mineiro risonho, generoso, tolerante, afeito ao convívio dos contrários. Mas decidiu em 1960 que o sucessor seria o mato-grossense genioso, instável, ególatra, autoritário.
Como o país, Jânio pagou caro pela renúncia ao mandato conferido por mais de 5,6 milhões de eleitores.

Transformado numa caricatura de si próprio, tentou a ressurreição impossível antes e depois da cassação, em 1964. Fracassou em 1962 e em 1982 na tentativa de voltar ao governo paulista, elegeu-se prefeito de São Paulo em 1985. Aos 75 anos, morreu pensando na Presidência. E sem revelar o número da conta no banco suíço.

Cinquenta anos depois da renúncia, o Brasil parece bem menos primitivo, a democracia tem mais consistência e Jânio figura na galeria presidencial como outro ponto fora da curva. Mas tampouco parece suficientemente moderno para considerar-se livre de reprises da farsa. Países exauridos pela corrupção endêmica serão sempre vulneráveis a algum populista que, com um discurso sedutoramente agressivo, prometa varrer a bandalheira.

O ilusionista do palanque


Naquele Brasil em que a televisão ainda engatinhava, os comícios eram uma espécie de novela das 8 e os principais atores políticos eram tão populares quanto as estrelas da Globo hoje. Nenhum fez tanto sucesso quanto Jânio Quadros em 1960. Durante a temporada eleitoral, o candidato à Presidência protagonizou em centenas de cidades noitadas em que se revelou um gênio dos palanques.

A coreografia e o roteiro se repetiam em todas as apresentações. Ele chegava no fim do comício, suando sob o temo de suburbano salpicado pela caspa, cabelos intencionalmente desalinhados e empunhando um sanduíche que simulava a falta de tempo para refeições normais. Convocado pelo locutor, passeava o olhar estrábico pelo oceano de vassouras antes de começar o discurso sempre melhor na forma que no conteúdo.


Sem cometer um único erro gramatical, enfileirava mesóclises e ênclises, abusava dos pronomes oblíquos e colecionava raridades pinçadas dos desvãos do dicionário para comunicar que chegara a hora de enquadrar os corruptos, os maus funcionários públicos, os empresários gananciosos, os adversários em geral e o presidente da República em particular.

Dado o recado, Eloá se aproximava para, abraçada ao marido, endossar em silêncio a fala de encerramento. "Minha mulher pediu-me que dirigisse as últimas palavras à mulher brasileira, a verdadeira dona da vassoura", sublinhava o sotaque estranhíssimo. "Àquela que sofre no trabalho permanente do lar, que deve equilibrar as contas de salários de miséria." Encerrado o espetáculo, as eleitoras exibiam o sorriso de quem descobrira que, olhando bem, Jânio Quadros, além de esbanjar sabedoria, não era tão feio quanto diziam.

A MAIS PACIENTE DAS DAMAS

Eloá do Valle Quadros foi a mais paciente das primeiras-damas. "Ninguém conseguiria aturar um homem assim tanto tempo", sorria a paulistana que o estudante de direito conheceu em 1940, no Guarujá, e com quem ele permaneceria casado durante cinquenta anos, até que a morte dela os separou.
A solidariedade silenciosa de Eloá compôs uma improvável e harmoniosa parceria com o marido extravagante, loquaz, imprevisível, sovina e mulherengo. "Eloá manda em mim", dizia Jânio em rodas de amigos". "Se fosse verdade", ela corrigia, "ele beberia menos."

Habituada às súbitas mudanças de rota de Jânio, Eloá se ajustava ao imprevisto com a expressão resignada de quem cumpre ordens do destino. Em 25 de agosto de 1961, por exemplo, percebeu durante o café da manhã no Palácio da Alvorada que o marido, depois da madrugada insone, estava com o humor nublado como a manhã de inverno em Brasília. Ouviu-o praguejar contra Carlos Lacerda e o Congresso, mas não adivinhou o que viria. Soube que estava casada com um ex-presidente pelo telefone: Jânio pediu-lhe que preparasse as malas para a volta definitiva a São Paulo.

Integrante da linhagem das primeiras-damas exemplarmente discretas, que cuidam dos assuntos domésticos por terem aprendido desde sempre que "política é coisa de homem", Eloá passou a vida driblando entrevistas e evitando holofotes. Se pudesse, teria permanecido à distância também dos palanques. Impossível: Jânio fazia questão de tê-la sempre ao lado na hora da mensagem à mulher brasileira, que fechava as apresentações.

Baixa, rechonchuda, Eloá sobreviveu até 1990 a numerosas doenças imaginárias que Jânio costumava atribuir-lhe, para comover amigos ou inibir adversários. Morreu sem ter conseguido reaproximar o marido da filha Tutu. Além do titular, só ela conhecia o número da mítica conta bancária na Suíça. Eloá levou o segredo para o túmulo.

O GOVERNO DOS BILHETINHOS

Na folha de papel com o timbre do gabinete do prefeito de São Paulo , datada de 27 de outubro de 1953, dez linhas datilografadas explicavam a uma professora primária por que não seria possível promover a mudança do ponto de ônibus que reivindicara. Foi o primeiro dos mais de 70000 bilhetinhos de Jânio. Ou J. Quadros, como se identificava o remetente, que se inspirou nos memorandos expedidos pelo primeiro-ministro inglês Winston Churchill durante a II Guerra Mundial para criar o que sempre chamou de "papeleta".

Excitado com o sucesso da novidade, concebida para fixar a imagem do chefe onipresente que se comunicava com os subordinados sem intermediários, o redator resolveu aperfeiçoar o estilo, diversificar o conteúdo, temperá-lo com muita ironia e intensificar a produção. Com frases mais curtas e ainda mais rebuscadas, os mais de 40 000 bilhetinhos subscritos em quatro anos pelo então governador de São Paulo tratam de questões relevantes e urgências administrativas, mas também recusam onças ofertadas ao zoológico ou autorizam o uso do seu nome como marca de cachaça "desde que a qualidade seja boa".

Em sete meses na Presidência, Jânio mandou cerca de 5000 bilhetinhos. Previsivelmente, a extravagância virou motivo de piada e inspirou chargistas como Carlos Estevão, de O Cruzeiro (veja acima).

O último bilhete, de 25 de agosto de 1961, tinha sete linhas manuscritas e um tom melancólico. Comunicava ao Congresso Nacional a renúncia do chefe de governo.

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