"A verdade será sempre um escândalo". (In Adriano, M. Yourcenar)

"Quero imaginar sob que novos traços o despotismo poderia produzir-se no mundo... Depois de ter colhido em suas mãos poderosas cada indivíduo e de moldá-los a seu gosto, o soberno estende seus braços sobre toda a sociedade... Não quebra as vontades, mas as amolece, submete e dirige... Raramente força a agir, mas opõe-se sem cessar a que se aja; não destrói, impede que se nasça; não tiraniza, incomoda, oprime, extingue, abestalha e reduz enfim cada nação a não ser mais que um rebanho de animais tímidos, do qual o governo é o pastor. (...)
A imprensa é, por excelência, o instrumento democrático da liberdade."
Alexis de Tocqueville (1805-1859)



quinta-feira, 29 de dezembro de 2011

HISTORIAS D`ANTANHO...

Viver sem medo

Velho, muito velho, terno sempre azul e cabeça toda branca, seu Manuel era uma figura querida e conhecida sobretudo em Teresópolis mas também em Petrópolis: revendedor há muitos anos da Loteria Federal. A sorte só chegava a Teresópolis e às vezes a Petrópolis pelas mãos já mirradas do seu Manuel.

Depois que o presidente Geisel deixou o governo, seu Manuel arranjou mais um freguês permanente para seus bilhetes: Geisel. Toda extração, ele levava um bilhete inteiro para o sítio dos Cinamomos, do ex-presidente, aqui perto. Era venda segura e a comissão certa.

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GEISEL

De repente, Geisel passou a receber do Rio, toda semana, diretamente da Loteria, cinco bilhetes inteiros. Como essa era a cota mínima de um revendedor, o ex-presidente ganhava o desconto de revendedor e seu Manuel perdia sua comissão. Mas não se queixava: – “Quem pode, pode. E ele tem sorte. Uma vez ganhou”.

Um cliente aqui de Petrópolis lhe perguntou:

- “Seu Manuel, por que o senhor não se queixa lá na Caixa?”

- “Porque tenho medo”.

- “Mas o homem já não é mais presidente”.

- “Eu sei. Ele saiu do governo, mas meu medo do governo ficou”.

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PAULO ANTONIO

Num fim de semana em Itaipava, na histórica Adega dos Frades, um grupo de políticos, jornalistas, empresários, relembrava os tempos de medo da ditadura. Paulo Antonio Carneiro, diretor do “Diário de Petrópolis”, então jovem dirigente do MDB municipal, revendo seus papéis, encontrou umas laudas escritas à mão. A letra é minha.

Candidato em 1974 a deputado federal pelo MDB do antigo Estado do Rio, em dobradinha com o vereador Carlos Portella, candidato a estadual, os dois então bem jovens, com menos de 30 anos, Paulo Antonio me pediu algumas sugestões para sua primeira aparição no horário do TRE na TV.

O SNI fazia uma pressão brutal, no Tribunal Regional Eleitoral, contra os candidatos do MDB, censurando-lhes os pronunciamentos, sobretudo dos mais jovens e aguerridos. Era preciso ser rápido no gatilho e aproveitar bem aqueles rápidos instantes, com declarações curtas e fortes.

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ILHA DO MEDO

Paulo Antonio foi para a TV com uma pequena lista delas no bolso. Na sua vez de falar, reviu, memorizou e começou exatamente pela primeira:
“Democracia não é só ter eleição de quatro em quatro anos. Democracia é viver sem medo”.

Na mesma hora, saíram os três do ar: o programa, Paulo Antonio e a frase. Dias depois, também eram vetadas e saíram da lista eleitoral do MDB fluminense as candidaturas dele e de seu fiel companheiro Portella.

Seu Manuel da Loteria sabia que, nas ditaduras, governos saem, mas o medo fica. Governantes são trocados, mas o medo continua. Cuba não é uma democracia, é uma ditadura, não só porque não tem eleições (há uma farsa de eleições), mas porque lá todo mundo vive com medo. Até o Raul.
Fidel saiu, ficou Raul, e Cuba permanece a mesma ilha do medo. Não podemos aceitar a América Latina como o continente do medo.

Sebastião Nery

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