

Por fim, no dia 17 de dezembro de 2002, provavelmente frustrado pelas táticas protelatórias dos advogados do Clarín, Marquevich ordenou a prisão de Ernestina, então com 77 anos de idade, sob a acusação de ter falsificado documentos públicos de adoção. Ela passou três noites na cela VIP de uma delegacia e depois ficou em prisão domiciliar. A Argentina ficou escandalizada. Vários juízes de alto escalão criticaram a prisão, bem como jornalistas e outros grupos de direitos humanos. No dia 12 de janeiro, Ernestina publicou uma carta aberta no Clarín, acusando sua prisão de fazer parte de um plano para destruir a imprensa independente da Argentina. Mas a carta continha esta frase: “Falei muitas vezes com meus filhos sobre a possibilidade de eles e seus pais terem sido vítimas da repressão ilegal.” Era uma chocante admissão de que a investigação sobre as origens de seus filhos adotivos era justificada.
Marquevich, que foi afastado do caso, e por fim expulso do Judiciário por um tribunal do Congresso, foi substituído pelo juiz Conrado Bergesio, cujas decisões, segundo Alcira, “eram tomadas pelos advogados de Ernestina”. Ela acrescentou: “Durante anos, Bergesio fingiu investigar, mas não o fez.” Em 2004, Bergesio ordenou que os irmãos se submetessem ao exame na Unidade Médica Forense, mas os advogados das Abuelas e também do Clarín contestaram a ordem e nenhum exame foi realizado. Só depois que o casal Kirchner rompeu com o Clarín, em 2007, Alcira “começou a sentir uma pressão para fazer o caso andar, uma pressão mais política do que jurídica”. (Alcira deixou as Abuelas porque achou que a organização tinha se tornado excessivamente partidária, embora tenha continuado a representar famílias em busca de crianças roubadas e a trabalhar no caso de Ernestina.)

Alcira defendeu a lei dos exames compulsórios. Era uma decisão pesada demais para caber apenas ao adotado, mesmo quando essa pessoa já era um adulto. Não raro, os adotados sentiam-se aterrorizados com a ideia de serem os responsáveis pela prisão dos únicos pais que haviam conhecido. Alcira soube de pelo menos um pai que apontou um revólver contra a cabeça da filha adotiva para impedir que fornecesse sangue para o exame.
Em 2005, tornou-se possível obter o DNA de uma pessoa a partir da roupa e de objetos de uso pessoal. Alcira levou essa informação à Justiça e logo se instituiu uma alternativa para a extração compulsória de sangue: agora os juízes podiam determinar o confisco de objetos de uso pessoal, como escova de dentes. Um dos primeiros casos de exame desse tipo envolveu uma possível criança roubada de nome Evelyn Vázquez, que ameaçara se suicidar se tivesse de fazer o exame de sangue. Quando seu apartamento de cobertura foi invadido, em 2006, policiais protegeram as janelas a fim de evitar que ela pulasse. Evelyn tinha acabado de voltar da academia de ginástica e María Belén Rodríguez Cardozo, uma bioquímica do BNDG, confiscou sua bolsa, cheia de roupas de ginástica suadas. O exame de DNA comprovou que Evelyn era filha de Susana Pegoraro e Rúben Santiago Bauer, ambos desaparecidos em 1977. “Uma das primeiras coisas que ela fez depois da descoberta foi trocar seu nome para Evelyn Bauer”, disse Alcira. Evelyn estabeleceu uma relação com sua avó biológica, mas também continuou ligada aos pais adotivos – o pai adotivo tinha sido agente da contrainteligência –, que foram condenados à prisão no ano passado. O juiz do caso registrou em sua sentença que muitos adotados continuavam, na vida adulta, a ser “hóspedes ou prisioneiros das redes tecidas pelas pessoas que deles se apropriaram” e que a supressão da identidade imposta por tais adoções podia produzir sintomas “patológicos”.
Catalina de Sanctis, outra adotada, concorda. Ela cresceu, contou-me, referindo-se a si mesma como “Cara de Nada”, porque não se parecia com ninguém em sua família. Seus pais eram pessoas com problemas psicológicos, propensos à depressão e a bruscas mudanças de humor. “Não é qualquer pessoa que faz o que eles fizeram”, disse ela. “E ter feito isso deixou-os ainda mais doentes.” Toda vez que mencionavam as Abuelas na televisão, seu pai alcoólatra, agente da inteligência militar, tinha uma explosão de raiva e esbravejava insultos. Em 2000, Catalina pressionou a mãe, que não resistiu e confessou a verdade. O pai lhe disse que, se ela desse sangue, eles iriam para a prisão. Catalina sentiu-se paralisada. Em 2005, as Abuelas abriram uma investigação sobre suas origens; no ano seguinte, para evitar o exame de DNA, ela partiu de avião com o marido e o pai adotivo para o Paraguai, e depois voltou para a Argentina. No início de uma manhã, em maio de 2008, a polícia invadiu a casa onde ela e o marido se escondiam, com ordens de confiscar objetos pessoais. “Eu chorei”, disse ela. “Mas também foi um alívio.” No mês de setembro, ela soube que era filha de dois estudantes, René de Sanctis e Myriam Ovando; sua mãe estava grávida de seis meses quando foi sequestrada. Durante quase dois anos, Catalina se recusou a encontrar sua família biológica, mas agora está unida a eles. Diz que recuperar a verdade sobre sua origem foi a melhor coisa que aconteceu em sua vida. Seu pai adotivo, depois de sofrer um colapso nervoso, é mantido em prisão domiciliar num asilo, contou-me ela. Sobre Marcela e Felipe, Catalina disse: “As pressões que estão sofrendo devem ser muito grandes.”

Em 22 de abril de 2010, os quatro maiores jornais do país publicaram uma carta assinada por Marcela e Felipe. “A exemplo de muitas crianças adotadas, não conhecemos nossos pais biológicos, mas como qualquer outra pessoa, formamos nossa identidade no decorrer de nossas vidas”, escreveram. “Nunca vimos nenhuma prova concreta de que sejamos filhos de desaparecidos. [...] O uso político de nossa história parece injusto. [...] Trinta e quatro anos atrás, nossa mãe nos escolheu para sermos seus filhos. E nós, todos os dias, a escolhemos para ser nossa mãe.” A carta pouco fez para dissipar a impressão de que os irmãos eram pessoas cativas, cujas palavras eram todas controladas pelo Grupo Clarín e seus advogados, e só aumentou a impressão do público de que eles tinham um sentimento de autoridade ultrajada. Toda criança adotada na Argentina em 1976, sobretudo as que apresentavam muitas irregularidades em seus registros de adoção, como Marcela e Felipe, podia estar sujeita a uma investigação. A longa história de resistência de Ernestina dava a impressão de que eles estavam desesperados em seu intento de esconder a verdade.
Chicha Mariani, ex-presidente das Abuelas, ainda alimentava a esperança de que Marcela fosse sua neta. “Se não forem filhos de desaparecidos”, disse ela, “qual o motivo para sujeitá-los a essa tortura de esperar e esperar e brincar dessa maneira com nossas emoções?”

Martínez é um bairro muito bonito, margeado por palmeiras, sempre-vivas e laranjeiras. Ernestina mora numa casa enorme cercada por um muro, uma mansão de mármore e vidro, atrás de portões de aço preto, ladeados por guaritas de concreto. Os portões abriram para o carro de Marcela e Felipe, que entrou rapidamente, seguido pelo carro da polícia. Os advogados chegaram logo depois. Rodríguez Cardozo, o bioquímico do BNDG, e três colegas, acompanhados de dois técnicos da Unidade Médica Forense, chegaram minutos depois. Encontraram a polícia e os advogados parados no saguão da casa, à espera de Marcela e Felipe, que haviam desaparecido em seus quartos. Mais tarde, calculou-se que os irmãos ficaram fora de vista por dez minutos.
A juíza orientara os especialistas a confiscar roupas dos irmãos e outros objetos de uso pessoal que tivessem consigo. Como Graciela Mochkofsky descreve a cena em seu livro, quando a ordem foi lida, Felipe começou a chorar. Marcela pediu que chamassem seu psiquiatra. Os irmãos foram separados, os especialistas homens foram para um cômodo com Felipe e as mulheres, para outro, com Marcela. Rodríguez Cardozo notou que Felipe dava a impressão de que vestia roupas de outra pessoa. Seu terno era grande demais para ele – a calça arrastava no chão – e era tão nova que ainda estava com a etiqueta plástica da loja. A roupa de Marcela era tão apertada que as calças mal fechavam em sua cintura. Mesmo assim as roupas foram confiscadas – Felipe estava sem cueca –, além do sutiã de Marcela, que também parecia novo em folha, e suas meias. “Nossa intimidade não foi respeitada”, disse Marcela naquela noite no Canal 13 da televisão, uma estação do Clarín. Ela e o irmão, disse Marcela, foram tratados como “criminosos”.
No BNDG, a equipe de Rodríguez Cardozo se pôs a trabalhar, tentando mapear perfis genéticos das roupas capturadas. A roupa de Felipe continha o DNA, em proporções iguais, de dois homens e uma mulher; a de Marcela tinha o DNA ou de um homem e uma mulher ou de duas mulheres. Nenhum DNA pôde ser obtido das meias de Felipe, que ele supostamente estaria usando havia cinco horas. As meias de Marcela tinham o DNA de três pessoas.
Foi um desastre de relações públicas para a juíza Salgado, as Abuelas e o BNDG. Perfis genéticos foram obtidos dos itens apreendidos na busca anterior, sob o comando do juiz Bergesio, e das amostras que os irmãos haviam deixado na Unidade Médica Forense, mas as Abuelas rejeitaram aqueles perfis. Como ninguém de sua confiança estava presente na hora em que Marcela e Felipe forneceram o sangue para o exame na Unidade Médica Forense, explicaram, não havia prova de que as amostras eram de fato deles. Salgado não teve opção a não ser ordenar mais uma extração de sangue e saliva para os exames. Todo mundo supunha, é claro, que os advogados de Marcela e Felipe iriam apelar em todas as instâncias, até a Suprema Corte, o que adiaria a resolução até as eleições presidenciais de outubro.
Então, nas últimas semanas de junho de 2011, houve uma surpresa: Marcela e Felipe entregaram uma carta à juíza Salgado. A fim de pôr um fim ao “constrangimento e à perseguição da mídia e dos tribunais”, e para poupar sua mãe “de mais ataques e sofrimentos”, escreveram, não só forneceriam novas amostras de sangue como também deixariam que seus perfis genéticos fossem conferidos com o de todas as 219 famílias qualificadas no BNDG.

Por volta das nove e meia, veículos estacionaram embaixo da passarela de pedestres. A visão da entrada do hospital ficou bloqueada pela porta aberta de um carro esportivo, do lado do passageiro, enquanto Marcela e Felipe entravam correndo. A mídia esperou durante uma hora, outra hora, e depois mais uma. Logo depois de uma hora da tarde, Alan Iud, advogado das Abuelas, saiu para fazer uma declaração: os irmãos tinham fornecido amostras para o exame de DNA e o processo estava concluído. No dia seguinte, jornais publicaram as cobiçadas fotografias dos irmãos saindo do BNDG: Felipe, de paletó e gravata, no banco traseiro do carro, prendendo seu cinto de segurança; Marcela saindo do hospital, fechando o colarinho de um casaco amarelo, o cabelo louro preso num rabo de cavalo.

Mas, como vim a saber, havia um outro motivo. Em 2010, geneticistas do BNDG haviam examinado as amostras da Unidade Médica Forense e o primeiro jogo de objetos pessoais confiscados, e descobriram na mesma hora que não combinavam com nenhum dos perfis existentes no banco de dados. “Soubemos disso porque somos obcecados por nosso trabalho aqui”, disse-me minha fonte no BNDG. “Afinal, não passam de listas de números.” Alguém do banco de dados forneceu essa informação a um executivo do Clarín e Marcela e Felipe provavelmente concluíram que havia um risco muito pequeno de que seus exames combinassem com o DNA de alguma família. Parecia provável que as Abuelas soubessem disso também, embora elas neguem. Provavelmente foi por esse motivo que elas contestaram a autenticidade daquelas amostras.

O jornal Clarín saudou os resultados com apelos para que o processo contra Ernestina Herrera de Noble fosse suspenso. O jornal e outros membros da mídia também clamaram que Estela de Carlotto e o governo pedissem desculpas a Ernestina e seus filhos. Numa entrevista coletiva no dia 18 de julho, Estela respondeu: “Eles dizem para pedirmos desculpa, mas quem deve pedir desculpa são os membros do Estado terrorista que apagaram todos os traços de nossas famílias e aqueles que escondem informações, para que não possamos encontrar nossos netos, e que usam nossa dor por oportunismo político.” Estela negou que o resultado dos exames tinha sido negativo. Não fora possível confrontar o DNA dos irmãos com o de quatro famílias cujos perfis genéticos ainda estavam incompletos. O caso, concluiu ela, ainda não estava encerrado. A ira de Estela servia para que os outros lembrassem que ela mesma era a mãe de uma filha brutalmente assassinada e que seu neto ainda não fora encontrado. As Abuelas, muitas delas agora com 80 ou 90 anos de idade, transmitem às vezes uma comovente sensação de premência.
O livro de Mochkofsky, publicado em agosto, afima que Héctor Magnetto, o atormentado executivo do Clarín, certa vez confidenciou a um colega que Ernestina não tinha a menor ideia de onde tinham vindo seus filhos. “E isso é que é o pior”, lamentou. Mochkofsky concluiu que isso significava que era simplesmente o fato de não saber –e não se atrever a descobrir – que levou Ernestina e o Grupo Clarín a expor Marcela e Felipe a dez anos de assédio e incerteza, ao mesmo tempo que permitia que o caso deles ganhasse a dimensão de um polarizador debate nacional, político, legal e de direitos humanos. E quanto a Marcela e Felipe? Seu silêncio, seu ar de isolamento fortificado, parecia impenetrável.
Em setembro, a juíza Salgado publicou uma sentença do caso de Ernestina de Noble Herrera. Num longo parecer, argumentou, tal como Estela, que como quatro famílias em busca de crianças nascidas em 1976 tinham perfis genéticos incompletos, a segunda etapa da tentativa de comparar o DNA estava inacabada e a terceira etapa não podia começar. Qualquer outro exame no caso, portanto, estava suspenso. Em dezembro, foi anunciado, com pouco alarde, que três daqueles perfis genéticos tinham sido concluídos e comparados, e o resultado foi de novo negativo. A juíza Salgado não indicou quando seria realizada a última rodada de exames, nem mesmo se seria feita.
Se a terceira rodada de exames for cumprida e o resultado for negativo, nem todos vão considerar o caso encerrado. Desde 2006, o BNDG incorporou em seu banco de dados 74 novas famílias. No dia em que visitei o BNDG, um homem idoso de Mendoza veio depositar uma amostra de seu sangue no banco de dados. A ideia de que sua filha talvez estivesse grávida quando desapareceu, trinta anos antes, havia afinal impelido o homem a dar aquele passo. Por mais remota que seja, sempre existe a possibilidade de que a próxima pessoa a cruzar aquela porta venha a ser um parente de Marcela ou de Felipe.

Chicha Mariani tem, hoje, 88 anos e está quase completamente cega. Transformou num museu a casa em La Plata de onde sua neta foi levada – seus escombros bombardeados estão guardados numa caixa de plástico transparente – e ela dirige uma fundação que tem o nome de Clara Anahí. “Estou sozinha no mundo”, disse-me ela. “Sempre tive esperança de encontrar Clara Anahí. Toda manhã acordo e penso, não quero, não quero continuar. Depois de um tempo, penso: Mas se eu não me mexer, o que vai acontecer? E aí me levanto e saio à procura dela. Quem vai procurar por ela quando eu partir?”
13 de maio de 2012
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