"A verdade será sempre um escândalo". (In Adriano, M. Yourcenar)

"Quero imaginar sob que novos traços o despotismo poderia produzir-se no mundo... Depois de ter colhido em suas mãos poderosas cada indivíduo e de moldá-los a seu gosto, o soberno estende seus braços sobre toda a sociedade... Não quebra as vontades, mas as amolece, submete e dirige... Raramente força a agir, mas opõe-se sem cessar a que se aja; não destrói, impede que se nasça; não tiraniza, incomoda, oprime, extingue, abestalha e reduz enfim cada nação a não ser mais que um rebanho de animais tímidos, do qual o governo é o pastor. (...)
A imprensa é, por excelência, o instrumento democrático da liberdade."
Alexis de Tocqueville (1805-1859)



quinta-feira, 15 de novembro de 2012

ABOMINÁVEL MUNDO NOVO

 

 A gente é acordado e levanta da cama por conta de um desses irritantes relógios de cabeceira que ignoram nossas variáveis horas de sono, ficam apitando e, sem que tenhamos manifestado nossa opinião, interligam-se com um programa de rádio ou de televisão, daqueles que nesta manhã não nos interessam.
Pouco importa a essa máquinas diabólicas se tivemos insônia ou não, durante a noite, e se gostaríamos de ficar mais quinze minutos deitados. Muito menos se o governo nos impôs esse abominável horário de verão que nos rouba uma hora de sono pela manhã e nos obriga a rolar por igual tempo na cama, de noite.



A parafernália da máquina de fazer café emite sinais os mais variados, solta fumaça e, se não estivermos diante dela no momento certo, servirá bebida fria ou pelando. Ao abrir a geladeira para pegar um mamão, é bom não esquecer a porta aberta por mais de um minuto, senão ela começa a imitar a radio-patrulha, com detestáveis e intermináveis bips. Partindo do princípio de que preferimos banho frio, deixamos de ligar o chuveiro elétrico, mas, se precisarmos ligar, cuidado: ele fatalmente fará cair o disjuntor e cortar a eletricidade da casa.

Na hora de sair, será preciso apertar mil teclas em código para acionar o alarme, mas não há um dia na semana em que, errando o dedo indicador, não recebamos um aviso da empresa de segurança sobre já estarem vindo gorilas para enfrentar um ladrão inexistente.

Na garagem, é um horror. Primeiro, a maquininha que abre o portão automático, sempre em desacordo com nossas intenções, ávida por emperrar a grade e levar-nos à chave manual.
No veículo, um vestibular inteiro de cibernética: a tecla que abre a porta, aquela que liga o motor, a que baixa o vidro e a que liga o ar refrigerado, todas funcionando apenas se estiverem de bom humor. O rádio, Deus nos livre. Jamais acertamos a emissora das notícias, agredidos com mil botões que tocam música caipira e anunciam produtos que, de raiva, jamais compraremos.

No caminho para o trabalho, começa a luta entre mocinhos e bandidos. Onde estarão , hoje, os pardaizinhos camuflados que nos obrigam a trafegar a cinquenta quilômetros por hora, com a opção de multas de duzentos reais a cada poste? O trânsito é um horror, mesmo se não choveu. Duas horas no engarrafamento para ouvir de um funcionário paranóico a inexistência de vagas que pagamos mensalmente.

No escritório, as mil chaves para abrir a porta que qualquer meliante terá aberto antes. Há que ligar o computador, mesmo velho, e tem início as estações do calvário. O motor escondido no chão, as teclas de ligação, as de ingresso da Internet e, se não tiver havido um desarranjo que apagou a memória e mudou o tipo das letras, seguir-se-á a inglória luta para abrir os e-mails enviados durante a noite.

Anúncios aos montes, de miraculosos produtos para evitar a ejaculação precoce, para performances sexuais dignas do Casanova, para assinar tais ou quais jornais e para manter encontros com maravilhosas garotas de programa que, se acionarmos a tecla para apreciar suas fotografias, mostrarão aos remetentes o número de nossas senhas e de nossas contas bancárias.

Se precisarmos tirar algum dinheiro do banco, ou fazer transferências, uma débâcle completa. No fim, verificaremos não haver saldo, em meio a mil taxas de serviços que pagamos por depositar nosso dinheiro nos bancos, aqueles que tempos atrás pagavam juros pelos depósitos e ainda distribuíam cadernetas.

Intervalo para o almoço, que precisamos deglutir na própria mesa de trabalho. Se pedirmos, via Internet, um sanduíche de ovo frito sem bacon, a certeza é de que virá um misto quente com bacon e sem ovo frito.
 
Haverá que escrever, no caso dos jornalistas, o artigo diário para os assinantes, mas as agências encarregadas de distribuí-los fatalmente avisarão haver recebido versículos da Bíblia ou contos eróticos do Marquês de Sade.
 
Nesse meio tempo tocou mil vezes a mais diabólica das maquininhas inventadas pela humanidade, o telefone celular. “Quem fala, é o Carlos? Aqui é a Margarida. Você não gostaria de trocar de provedor?”
Não adianta dizer que estamos no trânsito ou ocupados com uma gravação, porque a malsinada interlocutora ligará de novo perguntando se chegamos bem ou se gravamos um comentário criticando o governo.
O celular tira fotografias que não queremos tirar, calcula a distância entre a Terra e a Lua, avisa haver recebido recados de assinantes desconhecidos e quando queremos avisar alguém da família que chegaremos atrasados para o jantar, desliga automaticamente e se apresenta fora do ar.
 
O tempo passa, recebemos pelo correio eletrônico montes de propaganda inócua. Pedidos para ingressarmos na ONG que tenta salvar as barbas do camarão do Mar Vermelho e a memória de Ramsés II. Como descobriram nosso endereço é um mistério, mas fica pior quando os próprios entram em nosso computador ou em nosso celular para indagar se vamos à festa do centenário da descoberta dos besouros que não voam ou da quermesse para a recuperação dos gatos cegos.
 
Se precisarmos sair para uma entrevista ou conversa com alguma autoridade, é o fim do mundo. Exigem, no Congresso, nas sedes dos partidos ou em algum ministério identificações, cartões de identidade, declarações de fidelidade a este ou aquele potentado, gravata, meias pretas e provas de que votamos no candidato preferido do nosso interlocutor.
 
Depois, a volta para casa. Na caixa do correio, notificações do Imposto de Renda para apresentarmos no mês passado os recibos de despesas médicas da década de oitenta. Exigências da Previdência Social para comprovarmos haver trabalhado 40 anos nesta ou naquela empresa, apesar das evidências impressas em arquivos que a gente cultiva, não sei se por egoísmo, vaidade ou maldade.
Também deixaremos de continuar a receber miseráveis aposentadorias, caso velhos recibos tenham sido jogados fora. Além de convites aos montes para a inauguração de novos centros comerciais, exposições de artistas desconhecidos e fabulosas chances de enriquecer depositando mensalidades a preços módicos.
 
O elevador não funciona, há que subir oito andares. Depois, o médico se queixa de que não fazemos exercício. A chave não entra na fechadura. As teclas do dispositivo anti-ladrão confundem-nos com o próprio, voltam a apitar e precisamos provar aos seguranças que somos os proprietários. O lanche deixado pela empregada no forno de micro-ondas queimou, ela esqueceu de desligá-lo. No dia seguinte, começará tudo de novo.
 
Por conta desse abominável mundo novo, percebemos porque Sócrates, Platão e Aristóteles brilharam tanto na busca do conhecimento e da sabedoria. Tinham muito tempo para pensar…

15 de novembro de 2012
Carlos Chagas

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