"A verdade será sempre um escândalo". (In Adriano, M. Yourcenar)

"Quero imaginar sob que novos traços o despotismo poderia produzir-se no mundo... Depois de ter colhido em suas mãos poderosas cada indivíduo e de moldá-los a seu gosto, o soberno estende seus braços sobre toda a sociedade... Não quebra as vontades, mas as amolece, submete e dirige... Raramente força a agir, mas opõe-se sem cessar a que se aja; não destrói, impede que se nasça; não tiraniza, incomoda, oprime, extingue, abestalha e reduz enfim cada nação a não ser mais que um rebanho de animais tímidos, do qual o governo é o pastor. (...)
A imprensa é, por excelência, o instrumento democrático da liberdade."
Alexis de Tocqueville (1805-1859)



sábado, 3 de novembro de 2012

JOGO BRUTUS

 

Ao Carlos Heitor Cony, por uma inspiração involuntária

Somos um país de torcedores. Como em folhetins de todas as épocas, existe uma tendência nacional de reduzir tudo a heróis e vilões. Para a turma da minha geração, a mamadeira já vinha acompanhada de boas doses de Ted Boy Marino contra Verdugo (no inesquecível Telecatch Montilla), de Mickey contra João Bafo de Onça, de Popeye contra Brutus, de Super Homem contra Lex Luthor. Esses polos deixam de ser inocentes manifestações de paixão quando se transportam para o mundo puro e duro.

Utilizar a linguagem dos quadrinhos para se entender a sociedade leva a aberrações como, por exemplo, chamar o ministro do STF, Ricardo Lewandowski, de “vendido” e “traidor”, e o também ministro Joaquim Barbosa, de “herói nacional”. Ou vice-versa, dependendo do gosto do freguês. A simplificação do Fla-Flu nunca foi boa conselheira.
O julgamento do mensalão segue, em grandes linhas, o padrão das torcidas.
Há um clima de quase histeria em certos momentos. O que me inquieta é a base movediça que informa os torcedores. Quantos deles têm acesso aos autos dos processos ? Quantos, entre eles, têm competência jurídica para avaliar pareceres e sentenças ? Quantos entendem o idioma dos Meritíssimos ? Isso vale, claro, para todos os “times” envolvidos e nos remete a uma questão essencial: uma vez que depende de interpretações, não há neutralidade na Justiça. Aliás, não há neutralidade na vida.

Não acredito na ingenuidade e “espírito público” dos ilustres petistas que indicaram oito dos onze ministros do STF (e também os dois procuradores do mensalão, o que fez a denúncia inicial e o atual). Desconfio seriamente que imaginavam criar uma boa blindagem no Judiciário, uma sublegenda legal de confiança.
Não à toa, antes do julgamento, Jilmar Tatto, líder do PT na Câmara dos Deputados, declarou, com toda a arrogância a que tinha direito: “Os réus petistas vão ser todos absolvidos. Vocês vão ver. Os ministros do STF são corajosos”. Corajosos ? Hoje, são rotulados de “farsantes” por esses torcedores. O time deles, afinal, está perdendo.

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IMPUNIDADE

Parte do sentimento popular com relação à malha de corrupção que está sendo julgada vem da história de impunidade para os criminosos de colarinho branco. Como dizem os juristas, neste país só são condenados os três Ps: pobres, pretos e putas.
Com bons advogados e legislação leniente, é praticamente impossível que os abastados paguem por seus crimes. No Brasil, existe uma aristocracia que se comporta com a absoluta certeza de que está acima da lei.

Além disso, há uma lamentável, mas compreensível, péssima avaliação dos políticos em geral, não raro comparados a bandidos. Na sua época, digamos, veemente, Lula chegou a dizer que havia 300 picaretas no Congresso. Hoje, seu partido dissolveu todas as fronteiras éticas e se alia com o que há de pior, em todos os sentidos, da política brasileira. Como explicar isso ao cidadão comum ? Como defender a atividade política, quando lideranças importantes prostituem suas biografias e aderem ao vale-tudo ?

Não vou cair na armadilha da arquibancada. Estou acompanhando com seriedade as sessões do STF, estranhando “dosimetrias” e outros jargões, mas me considero incapaz de avaliar o trabalho dos juízes. Minhas conclusões são, portanto, políticas, desenhadas a partir dos dados de conhecimento público.
Há indícios muito fortes de que se montou uma operação financeira, alimentada em parte por recursos públicos, com o objetivo de corromper políticos da base aliada do primeiro governo Lula, garantindo, dessa forma, a “governabilidade” e o continuísmo.

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AMANCEBANDO-SE

O jurista Fábio Konder Comparato, um intelectual de esquerda, escreveu:
“Esse partido (o PT) surgiu, e permaneceu durante alguns poucos anos, como uma agremiação política de defesa dos trabalhadores contra o empresariado.
Depois, em grande parte por iniciativa e sob a direção de José Dirceu, foi aos poucos procurando amancebar-se com os homens de negócio”.
Tarso Genro, quadro petista histórico, disse, em entrevista ao Estadão:
“Que tem pessoas que cometeram ilegalidades, não tenho dúvida. Seria debochar da Justiça do país e do processo dos inquéritos achar que todo mundo é inocente”.

Lula teve, desde o início, um comportamento de biruta de aeroporto. Atordoado pelas denúncias iniciais, fez dois comentários sintomáticos … e conflitantes. Em entrevista dada em Paris, sem qualquer base factual, afirmou que tudo não passava de rearranjo de caixa dois de campanha, coisa que, no Brasil, “todo mundo faz”. Caixa dois que o então ministro da Justiça, Márcio Thomaz Bastos, dizia ser “coisa de bandido”. Em seguida, numa reunião ministerial, desabafou:

“Eu me sinto traído por práticas inaceitáveis sobre as quais eu não tinha qualquer conhecimento. Não tenho nenhuma vergonha de dizer que nós temos de pedir desculpas. O governo, onde errou, precisa pedir desculpas”.
Jamais revelou quem traiu.
Hoje, há uma blitzkrieg governista, recusando todas as denúncias e colocando-se como vítima de uma “farsa”, montada por “golpistas” e “conspiradores”. Da confirmação à negação total: uma ponte esquizofrênica.

Os estilhaços não param de se espalhar. Os que pretendem ser “prisioneiros políticos” se forem para a cadeia por corrupção ativa e formação de quadrilha são, não apenas um refluxo patético de seu passado militante, mas uma ofensa grave aos verdadeiros presos políticos de todos os quadrantes e épocas. Uma comparação inaceitável e demagógica.

Na entrevista ao jornal argentino La Nación, Lula não conteve a soberba: “Já fui julgado pelas urnas. A eleição de Dilma foi um julgamento extraordinário”. Ato falho ? Ao que se saiba, o companheiro ex-metalúrgico não está no banco dos réus. Ao menos por enquanto. É melancólico.

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NA DIREITA
Um esclarecimento indispensável. O PT não é uma associação criminosa, como verbera a mídia de direita. Não é, claro, o inimigo principal na luta por um Brasil socialista. Tem quadros e militantes dedicados, honestos e sinceramente empenhados em lutas progressistas.
Ocorre que renunciou, faz tempo, à esquerda. O projeto do partido no poder tem sido administrar os interesses do capital, conciliar com as forças conservadoras e amortecer os conflitos sociais, cooptando organizações populares.
Desde a Carta aos Brasileiros, de 2002, o PT adernou para o centro e, em muitas situações, à direita. Nas campanhas eleitorais, que praticamente não se diferenciam dos demais partidos, trata de não fazer marola e retira a política da agenda.

Hoje, é legítimo perguntar: qual é o projeto político do PT ?
Não levo a sério essa história de “conspiração” e ameaça às elites. Luta de classes é um conceito manipulado pelo PT ao sabor das conveniências.
Quando se trata do mensalão, são a “mídia golpista” e as “elites” que querem destruir um partido de origem popular.
Quando se trata de atender às demandas da burguesia, estende-se o tapete vermelho e toma de isenção fiscal, aumento de crédito e outros mimos.
Replica o modelo consumista dos países capitalistas centrais, sem uma crítica consistente às limitações desse modelo.

Como nas novelas policiais, fica a pergunta: alguém irá preso ?
No Brasil, não há a mínima condição de se responder. Tudo tem um bouquet meio shakespeareano. No magnífico Julio César, há o discurso de Marco Antônio, amigo do candidato a ditador que é assassinado.
Os conspiradores convencem o povo, num primeiro momento, de que o crime tinha sido necessário para abortar a ameaça de um regime tirânico. Chega Marco Antônio e, com extrema habilidade, muda o estado de espírito da massa.
Ficou célebre sua ironia sobre Brutus, um dos assassinos:
“Venho aqui no funeral de César. Ele era meu amigo, fiel e justo comigo. Mas Brutus disse que ele era ambicioso, e Brutus é um homem honrado”.
Todos os delinquentes se acham homens honrados. Há outra passagem no texto, menos citada. César tinha medo da inteligência. Referindo-se a um senador, diz:
“Ele pensa demais. Homens assim são perigosos”.
Profetas e Padins Ciços concordariam com César. E eles abundam no Brasil.

PS: A cara feia do fascismo: Dois graves incidentes marcaram a eleição de ontem em São Paulo.
No primeiro, o ministro do STF Ricardo Lewandowski foi ofendido enquanto aguardava para votar.
“Bandido, corrupto, ladrão, traidor”, gritaram-lhe alguns eleitores.
No segundo, o coordenador da Comissão de Ética do PT paulista, Danilo Camargo, que é advogado (!), agrediu a socos o humorista Oscar Filho, do programa “CQC”, da TV Bandeirantes. Alegou ter sido “provocado”.
Expando aos dois casos a nota do presidente da OAB-RJ, Wadih Damous, que se referiu apenas ao ministro Lewandowski: “Trata-se da conduta de vândalos, com conotações fascistas”. Caso de gente que só sabe conviver com o sim, senhor.

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