"A verdade será sempre um escândalo". (In Adriano, M. Yourcenar)

"Quero imaginar sob que novos traços o despotismo poderia produzir-se no mundo... Depois de ter colhido em suas mãos poderosas cada indivíduo e de moldá-los a seu gosto, o soberno estende seus braços sobre toda a sociedade... Não quebra as vontades, mas as amolece, submete e dirige... Raramente força a agir, mas opõe-se sem cessar a que se aja; não destrói, impede que se nasça; não tiraniza, incomoda, oprime, extingue, abestalha e reduz enfim cada nação a não ser mais que um rebanho de animais tímidos, do qual o governo é o pastor. (...)
A imprensa é, por excelência, o instrumento democrático da liberdade."
Alexis de Tocqueville (1805-1859)



domingo, 17 de fevereiro de 2013

INADIMPLÊNCIA COMO DESOBEDIÊNCIA CÍVICA


 
Os sinais estão todos aí. Dados do Banco Central (BC) mostram que as famílias da nova classe média brasileira têm, em média, 44,4% de sua renda anual comprometida com dívidas, o que, numa situação limite, “sujam seu nome” nas agências de crédito como SPC, Serasa etc.
 
Mais do que uma constatação estatística que dimensionaria os maus pagadores, o que estamos vivendo (mas ainda não reconhecemos) é a adoção da inadimplência como desobediência cívica.
 
Segundo a Serasa Experian, do total de inadimplentes, cerca de 30% têm apenas uma dívida em atraso, e os outros 70% mais de uma. A média é de cinco por pessoa.
Depois do cartão de crédito (com juros no crédito rotativo em torno de 323% ao ano), destacam-se as taxas de 12,1% no atraso do cheque especial (com taxas de juros ao redor de 151% ao ano), e da aquisição de outros bens, 12,9%.
Mas à medida que caem os juros reduz-se a inadimplência.
 
Por exemplo, as prestações de crédito pessoal, veículos e financiamento imobiliário têm as menores taxas de inadimplência, de 6,2%, 5,9% e 1,5%, respectivamente, segundo as informações divulgadas pela Serasa Experian.
 
Apesar dos discursos oficiais e do ufanismo de algumas lideranças políticas e empresariais, os brasileiros da nova classe média conquistaram seu lugar no mercado de consumo na marra. Romperam o apartheid econômico que os mantinha nas favelas e cortiços e saíram às ruas para conquistar, também na marra, suas próprias rendas.
Como?
 
Aproveitaram a primeira brecha da inflação controlada, a partir de 1994, e se viraram como camelôs, faxineiras, mecânicos de automóveis, donos de botecos e de carrinhos de cachorro quente. Vendem, de porta em porta, cosméticos, roupas, sapatos, ovos, ferramentas e colchões.
 
Aprenderam a gerenciar sua própria economia informal, a partir dos códigos vivenciais que desenvolveram para sobreviver fora da economia formal ao longo das décadas.
 
Acumularam experiência e alguma renda nas barbas das elites, que foram obrigadas aos poucos a lhes conceder um novo status de cidadania e de consumo, para absorve-los nos rituais da retomada democrática brasileira. E também assimilar essa imensa sede de consumo diante das seguidas crises financeiras mundiais.
 
Esses brasileiros e brasileiras da base da pirâmide social, alguns com carteiras de trabalho e a imensa maioria com títulos eleitorais, foram percebidos pelos partidos políticos que compreenderam que era possível ganhar eleições ao vincular suas propostas às expectativas de pertencimento destes milhões de brasileiros, tradicionalmente excluídos.
 
Dessa combinação de oportunismo político, legítimo numa democracia, e da necessidade de se confirmar as vontades agora cidadãs de um imenso contingente de homens e mulheres que aprenderam a buscar trabalho e renda emerge uma nova realidade econômica no Brasil.
 
Agora governado por políticos mais ou menos alinhados com essa cidadania pulsante e que adotam políticas públicas que freiam, até certo ponto, a fúria de concentração de renda das elites.
 
E que trocam o voto dessa massa de cidadãos-consumidores por acesso à sobrevivência básica, via Bolsa Família; ao consumo e, principalmente, ao crédito com juros embutidos que, em caso de dívidas, transferem renda de maneira brutal, ilegal e ilegítima, através de juros compostos e extorsivos, nas barbas dos governantes que fingem nada ver.
 
Resgata-se o equilíbrio entre as elites, que se acomodam no poder e que através do crédito antecipam o carro zero de mil cilindradas (um dos mais caros do mundo), os eletrodomésticos, as quinquilharias que confirmam a humanidade destes consumidores populares. Desbravadores, indômitos e acostumados a arrancar o que precisam da vida, enquanto podem, sem medir consequências.
 
É quando os juros extorsivos, embutidos nas compras a prazo ou explícitos nas cobranças das dívidas em atraso começam a ser coletiva e intuitivamente percebidos como ilegítimos.
 
Surge então a inadimplência como desobediência cívica. Que as elites e seus economistas de plantão tentam, a todo custo, classificar como falta de educação financeira desses novos consumidores.
 
Mesmo sendo dessa elite financeira a iniciativa de incentivar o crédito, de só vender a prestação para transformar a operação de compra e venda num relacionamento financeiro.
 
E que obriga o novo consumidor a desembolsar duas a três vezes o valor dos bens que adquire nessa sua nova etapa, especialmente quando há atraso nas prestações, através dos juros embutidos, juros de mora e “comissão” de permanência mais honorários advocatícios.
 
Até que cai a ficha, para cada consumidor desrespeitado isoladamente, como está acontecendo atualmente. E a desobediência cívica coletiva emerge e se impõe.
Porque mesmo sem terem lido “A República Explicada à Minha Filha”, de Regis Debray, esses consumidores-cidadãos descobriram que “o que é legal nem sempre é legítimo. Acima da lei, há a Constituição. Acima dos regulamentos, há a humanidade”.
 
17 de fevereiro de 2013
Marco Roza é jornalista e diretor da Agência Consumidor Popular.

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