"A verdade será sempre um escândalo". (In Adriano, M. Yourcenar)

"Quero imaginar sob que novos traços o despotismo poderia produzir-se no mundo... Depois de ter colhido em suas mãos poderosas cada indivíduo e de moldá-los a seu gosto, o soberno estende seus braços sobre toda a sociedade... Não quebra as vontades, mas as amolece, submete e dirige... Raramente força a agir, mas opõe-se sem cessar a que se aja; não destrói, impede que se nasça; não tiraniza, incomoda, oprime, extingue, abestalha e reduz enfim cada nação a não ser mais que um rebanho de animais tímidos, do qual o governo é o pastor. (...)
A imprensa é, por excelência, o instrumento democrático da liberdade."
Alexis de Tocqueville (1805-1859)



domingo, 23 de junho de 2013

THE WALKING DEAD


          Artigos - Cultura 
Tudo que começa com Liberté, Egalité, Fraternité termina em guilhotina.
O que uns e outros não percebem é que a tal ‘massa na rua’ é o ápice da despersonalização, da falta de qualquer traço distintivo e, ipso facto, de vida inteligente. Vida inteligente não é aderir: é precisamente o contrário disso.

É PRECISO MUITA violência para se fazer protesto pacífico, decerto. Nada mais violento do que o pacifismo das multidões. Chego em casa, ligo a tv e estão protestando contra rigorosamente tudo.
Contra rigorosamente nada. Dos vinte centavos já ninguém se lembra (saudades dos vinte centavos!). Parecia tudo tão nobre e tão singelo. Agora o negócio virou maio de 68 e todo mundo quer é tocar fogo no circo.
Ou, mais precisamente, nos carros, nos caixas eletrônicos, no comércio, nas bandeiras, na inteligência, na dignidade, em qualquer coisa que esteja no caminho do entusiasmo cívico. O id das gentes resolveu sair às ruas. E a multidão é aquilo que se sabe: movimento bruto, força da natureza.

Todos tão emocionados! Encontraram um arremedo de sentido, ao menos provisório, no movimento. Esticar as pernas faz bem, nem lembravam mais disso.
Perderam uns quilos. Quase fui às lágrimas quando um amigo escreveu algo sobre o ‘espírito’ do povo. De repente, todos estão orgulhosíssimos de si mesmos: saíram às ruas ‘contra tudo isso que está aí’, contra esse ‘status quo’, contra a ‘corrupção’, contra a ‘fome na África’, contra as ‘flexões do infinitivo’ e as platitudes de costume.

Saíram para se manifestar, ponto. Eles se parabenizam, eles jogam confetes uns nos outros, eles assopram língua-de-sogra. Você, quieto no canto, sabe (você os conhece) que eles nunca pensaram a sério em rigorosamente nenhuma das coisas contra as quais (ou a favor das quais), súbito, resolveram protestar – estado, impostos, capital, economia, regulação, reservas de mercado, etc. Bobagens. Reacionarismos. Nós devemos ‘atear fogo na cara da burguesia’. Joel, meu querido, melhor tomar seus cuidados.

Porque não é preciso cautela, prudência, capitulações: bastam uns coquetéis na cabeça e outros na mão; bastam umas camisetas amarradas na cara e, voilà!, o recém chegado do mundo da falta de idéias agora é um Isaiah Berlin, um Trotsky. Um Hegel improvisado a encarnar o ‘espírito objetivo’.
Fosse tão fácil, fosse apenas sair andando por aí a tocar o bumbo, teríamos feito há mais tempo, não é mesmo? Tudo que começa com Liberté, Egalité, Fraternité termina em guilhotina.

E é divertido ver gente dizendo, agora que a baderna saiu mesmo do armário ideológico, que ‘Não importa se o movimento x é manipulado pelo grupo y!, porque o povo está nas ruas, o gigante acordou e eu quero lutar por um mundo melhor!’. De fato, nunca importou. Não é essa a intenção. E nem são os vinte centavos. Falando neles.

Falando nos vinte centavos, ocorre o previsto: Fernando Haddad dizia, solene, que ceder à ‘pressão popular’ seria populismo indesculpável. Fernando Haddad e Geraldo Alckmin anunciam hoje, solenes, que atenderão aos apelos populares, e os vinte centavos, gatilho do patriotismo de ocasião, não serão mais cobrados. Vitória cívica, satisfação, lágrimas. Ótimo para a democracia, não é mesmo?

Péssimo para a democracia. Há certas vitórias que são derrotas. Se algo funciona no sistema democrático representativo é justamente servir de anteparo ao populismo violento, às pressões das maiorias sobre as minorias, das massas sobre os indivíduos.

Representantes são eleitos e se encarregam das leis, da fiscalização, da justiça. Devem ser cobrados, avaliados e, se ruins, que não sejam reeleitos.
Não apenas a divisão de poderes, mas o fato mesmo de que as decisões são tomadas, em tese, depois de conscienciosas deliberações garante alguma segurança jurídica e o império das leis.

Fernando Haddad capitulou precisamente no momento em que não poderia fazê-lo. Grupos com os mais variados pretextos exigem coisas e as coisas exigidas são quase que imediatamente atendidas. Conclusão: eles sabem que para negociar não é preciso mais do que alguns coquetéis molotov na mão.

Se a democracia representativa não satisfaz, agora as condições de possibilidade para a democracia direta estão dadas. Manifestações sob as mais variadas bandeiras (muito embora a quase que absoluta identidade de cores) tendem a tomar conta do cenário e isso nunca terminou bem. Se não são mais as leis, será a força. Anomia.
E a praça pública dará lugar à praça de guerra.  Contemos com a pusilanimidade dos nossos revolucionários.
O que uns e outros não percebem é que a tal ‘massa na rua’ é o ápice da despersonalização, da falta de qualquer traço distintivo e, ipso facto, de vida inteligente.

Vida inteligente não é aderir: é precisamente o contrário disso. Jean Jacques Rousseau não era nada tolo. A multidão anseia, desesperada, por um cadáver que legitime a explosão iminente de violência. A volonté générale procura, desesperadamente, seu Robespierre.
 
23 de junho de 2013
Gustavo Nogy
Publicado no site Ad Hominem.

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