"A verdade será sempre um escândalo". (In Adriano, M. Yourcenar)

"Quero imaginar sob que novos traços o despotismo poderia produzir-se no mundo... Depois de ter colhido em suas mãos poderosas cada indivíduo e de moldá-los a seu gosto, o soberno estende seus braços sobre toda a sociedade... Não quebra as vontades, mas as amolece, submete e dirige... Raramente força a agir, mas opõe-se sem cessar a que se aja; não destrói, impede que se nasça; não tiraniza, incomoda, oprime, extingue, abestalha e reduz enfim cada nação a não ser mais que um rebanho de animais tímidos, do qual o governo é o pastor. (...)
A imprensa é, por excelência, o instrumento democrático da liberdade."
Alexis de Tocqueville (1805-1859)



sexta-feira, 2 de setembro de 2011

CUBA: 2 BRASILEIROS E 14 CUBANOS DISCUTEM A SITUAÇÃO ATUAL E OS POSSÍVEIS RUMOS DO REGIME DE FIDEL CASTRO



Meritória, sem dúvida, a iniciativa da revista Estudos Avançados da USP de publicar um “Dossiê Cuba”, com ampla participação de intelectuais e artistas cubanos.
Sem embargo de algumas ressalvas que farei abaixo, creio que os trabalhos incluídos no dossiê serão de muita utilidade a todos quantos se interessem pela experiência socialista da ilha e pelas opções com que ela ora se defronta.

Minha ressalva mais importante diz respeito ao escasso pluralismo de pensamento entre os autores. Embora reúna estudos sobre muitas áreas substantivas – da economia e a política, passando pela educação e a saúde, até o teatro, o cinema, a literatura e o folclore -, o dossiê não contempla uma real diversidade quanto a avaliações e perspectivas de análise.

Em seu editorial, infelizmente lacônico, a revista apenas afirma que a mídia via de regra se limita a registrar “aspectos indesejáveis” da experiência revolucionária ; mas admite, por outro lado, que os avanços logrados em certas áreas como educação básica e saúde pública “deram-se paralelamente a tendências de enrijecimento burocrático e a deformações institucionais ”.

De fato, tendo me esforçado por acompanhar ultimamente a realidade cubana, eu tinha algumas indagações em mente quando comecei a leitura do Dossiê . Interessa(va)-me, desde logo: a reforma econômica – na verdade, um mega-ajuste fiscal - que o governo começou a implementar no primeiro semestre deste ano.

Interessavam-me também, como não podia deixar de ser, a situação dos direitos e garantias individuais e, em particular, a dos direitos humanos, que sabidamente assumiu contornos sinistros desde a chamada “primavera negra” de 2003 e as greves de fome levadas a cabo em 2010 por prisioneiros políticos, um dos quais, Orlando Zapata Tamayo, morreu após 84 dias sem se alimentar.

Por último, mas não menos importante, eu esperava me informar melhor sobre a questão democrática, ou seja, sobre reivindicações, expectativas, debates e reflexões eventualmente em curso entre os atores políticos, intelectuais inclusive.

SITUAÇÃO ECONÔMICA ATUAL DE CUBA

Num texto intitulado “Cuba e o Socialismo Possível”, o brasileiro Luís Carlos Bresser Pereira assume uma posição muito mais normativa que analítica ou factual. Afirma – e disto nem o governo cubano discorda -, que, como está, não dá para continuar. Opina entretanto que Cuba tem a sorte de ter uma boa alternativa: adotar o modelo chinês, ou seja, um capitalismo de Estado no qual o Partido Comunista se mantenha firmemente no controle político, cogitando a transição para a democracia (socialista) somente quando o país houver atingido um nível relativamente elevado de desenvolvimento, inclusive do ponto de vista industrial.

Bresser Pereira acredita, aliás, que o governo cubano já tenha tomado uma decisão estratégica nessa direção. De minha parte, eu me confesso incapaz de ver que democracia e que socialismo poderão advir do modelo chinês, mas não é a minha opinião o que aqui nos deve nos ocupar.

José Luis Rodríguez García, economista, escreve sobre a experiência do período 1989-2010 e as perspectivas atuais de seu país. Segundo ele, o projeto econômico ora em execução – denominado Alinhamentos da Política Econômica e Social -, uma vez divulgado pelo Partido Comunista, foi amplamente discutido pela população antes de ser aprovado no VI Congresso do PCC, realizado em abril de 2011. Informa que o plano expressa a vontade de manter a economia planificada, embora abrindo um espaço maior para formas de propriedade não estatal, “que terão uma reprodução limitada” (pág. 36). Na questão mais importante, a do ajuste do setor público, ele apenas reitera que “a flexibilização da gestão econômica, tanto no setor estatal como no cooperativo e no privado [...] e a abertura para a outorga de novas licenças para o trabalho autônomo” permitirão flexibilizar o uso da força de trabalho, visando poder oferecer alternativas de solução ao subemprego no setor estatal, o que constitui um passo indispensável para o aumento da renda dos produtores e, por essa via, propiciar o aumento da produtividade d trabalho”(pág. 38).

E conclui numa tecla peculiar: “ Se o país conseguiu avançar até o presente, vencendo obstáculos que pareciam intransponíveis, foi porque os elementos econômicos sempre foram considerados na política econômica [...] junto com os aspectos sociais e políticos, [e porque] não se cometeram erros estratégicos. [Tampouco] podemos ignorar na experiência cubana o papel da liderança revolucionária encabeçada pelo Comandante em Chefe, sua fidelidade e entrega ao povo de Cuba como um fator relevante nas conquistas econômicas e sociais dos últimos 50 anos na história do país”.

Mais objetivo, quanto ao ajuste, acaba sendo o Frei Betto: “A situação econômica do país exige medidas drásticas e urgentes [...]. O plano de reformas econômicas implica a demissão de pelo menos um milhão de funcionários públicos, com incentivos a que emigrem para pequenas e médias iniciativas privadas; o fim da libreta [que assegura a cada cidadão uma cesta básica] e das refeições em centros de trabalho (medida a ser compensada por aumento de salários), [e, finalmente], a extinção da dupla moeda (o CUC, o peso conversível, vale atualmente 24 pesos tradicionais).

REPRESSÃO E DIREITOS HUMANOS

Com referência às liberdades individuais e aos direitos humanos, eu não imaginei encontrar no Dossiê uma discussão franca sobre as implicações totalitárias de um regime fundado no partido único, no controle absoluto da economia pelo Estado e numa concepção unitária da vida social, mas quis acreditar que a leitura não seria de todo frustrante. Enganei-me, é claro; mesmo conhecendo pouco da história dos países socialistas, eu deveria ter me lembrado de que nesta área impera desimpedida a novilíngua orwelliana.

Nos autores cubanos, salvo melhor juízo, nada há sobre prisioneiros políticos e direitos humanos no passado recente. Remontando à época revolucionária, Aurélio Alonso, sociólogo, professor da Universidade de Havana, faz algumas observações sumárias, quiçá um tanto idealizadas, mas não desprovidas de interesse.

Ao colocar-se Cuba sob a proteção da URSS, ele escreve, “… a soberania conseguida (pela Revolução) não se vê ameaçada pela nova forma de dependência”; esta, no entanto, implica “(…) custos, às vezes lacerantes e lamentáveis em mais de um sentido, de uniformização do pensamento. Algo de discriminatório, e às vezes de repressivo, se impôs no plano ideológico” (pág. 11).

Novamente, cabe ao Frei Betto (p.224-225) o crédito por abordar o assunto de maneira mais direta, o que, infelizmente, não quer dizer que o tenha feito de forma satisfatória. Surpreende que sequer tenha tocado nas sentenças draconianas que o Estado cubano impôs a pessoas acusadas de crimes políticos e a dissidentes de consciência, tampouco nas detenções feitas no início da década passada e nas greves de fome que foram notícia em todo o mundo: “Malgrado as acusações de desrespeito aos direitos humanos – monitoradas pelos Estados Unidos, nação que mantém na base naval de Guantánamo o mais hediondo campo de concentração que o mundo atual conhece -, em 52 anos de Revolução não se conhece em Cuba um único caso de pessoas desaparecidas, assassinatos extrajudiciais; seqüestros de opositores políticos; torturas e prisões ilegais”.

DEMOCRACIA: ESPECULAÇÃO OU EXPECTATIVA?

Deixei para o fim, para poder citá-lo mais extensamente, o texto “A Democracia em Cuba”, do professor e ensaísta Julio César Guanche Zaldívar.

De início, ele declara ter a política revolucionária cubana posterior a 1959 elaborado um conceito de democracia baseado em dois pontos-chave: aumentar o número de pessoas que podem ter acesso à política, e colocar a justiça social na base da política democrática .No discurso estatal, o valor da justiça social prevaleceu acima de qualquer outro ideal especificamente político, por exemplo, o dos “direitos individuais”, expressando a aspiração jacobina de conformar uma totalidade social uniforme : uma “sociedade de uma só classe”(pág. 19).

Mas, com o tempo, ele prossegue, “… a importância [dada ao princípio da uniformidade] se converteu em fonte imanente de limitações, entre elas a prevalência da “unidade” acima da “diversidade” revolucionária, a sobrevalorização do estatal (como apogeu do “burocratismo”) e a codificação de uma ideologia de Estado”.

Permito-me observar que o professor Guanche Zaldívar está longe de ser um contestador à outrance do sistema cubano. Ele reconhece, por exemplo, que “…o sistema institucional cubano conseguiu um aumento da participação cidadã, a habilitação de mecanismos de consulta popular, a politização da cidadania na exigência da participação na tomada de decisões, a promoção de valores de solidariedade e cooperação, a mobilidade social, graus muito altos de igualdade e integração social e a compreensão da atividade política como serviço público” (págs. 20-21).

Entretanto, retomando a perspectiva histórica, ele reafirma que “…na regulação das diferenças existentes no interior do espectro revolucionário”, foi o conceito de ‘unidade revolucionária’ que ocupou o papel central:

“Em 1959, era imprescindível conseguir a unidade (das) principais forças revolucionárias”. (O problema é que), até o presente, continua-se proclamando a unidade como necessidade revolucionária”, conquanto tal conceito “há décadas não se refira ao mesmo conteúdo de 1959”. “Depois de 1967, não se reconheceu mais a existência explícita de diferenças de posição dentro do campo revolucionário. Na prática, a convocatória para a unidade não parte [mais]do reconhecimento prévio de diferenças substantivas” (pág. 21). Chega-se assim, “com tal uso do conceito de ‘unidade como unanimidade’, (…) à preeminência absoluta da política estatal acima das diversas formas de políticas praticáveis a partir da sociedade. [...] A ausência de mediação institucional entre poder estatal e cidadania, da qual Fidel Castro já falava em 1965, fez que a burocracia progredisse rapidamente” (pág. 22).

Seguindo por esse caminho, o autor, sem o admitir, queixa-se da falta de certos “formalismos” que todas as democracias representativas consagram e têm na verdade como elementares: separação de poderes, liberdade de organização partidária, garantias individuais etc. Ouçamo-lo: “O apogeu da burocracia socialista cubana se consolidou em relação à ausência de uma plataforma sociojurídica e ideocultural sobre os limites do poder estatal, num contexto em que o Estado revolucionário crescia em proporções, influência e grau de programação sobre a vida social”.

Nessa linha, Guanche Zaldívar chega a um dos pontos mais interessantes de sua exposição, a criação de estamentos ou, se preferem, de cidadãos de primeira e segunda classe:

“A cidadania não podia dispor assim da abstração jurídica que deveria caracterizá-la. A concessão de grande parte dos direitos políticos não se outorgaria segundo a condição legal do cidadão, senão por meio do status político do revolucionário. Isto é, consagrou-se o direito dos revolucionários ao poder estatal, mas não se regularam na mesma medida os direitos dos cidadãos - como categoria mais geral que a dos revolucionários – diante do poder, nem diante dos direitos do poder, nem diante do controle do poder.

A questão do ‘burocratismo’ conserva toda a sua vigência. É recorrente nas críticas ao processo cubano, e é, também, um dos alvos do próprio discurso oficial, que hoje se encaminha para ‘atualizar o modelo econômico’ [expressão de Raúl Castro, citado pelo autor] (24).

Concluindo, o autor indica a necessidade de reformular os dois pontos-chaves adotados pela Revolução em 1959: “ trata-se [ainda] da igualdade social, mas também da igualdade de direitos políticos no exercício dos poderes. A democracia é o regime universalista por autonomásia. É o único capaz de expressar o leque inteiro dos interesses da vida humana e natural [...].

Se [aqueles dois] pontos consistiam em aumentar o número de pessoas que podiam ter acesso à política e em colocar a justiça social na base da política democrática, agora eles poderiam ser reformulados em termos da universalização dos direitos de cidadania e promoção da independência pessoal, social e nacional (pág.26).

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