"A verdade será sempre um escândalo". (In Adriano, M. Yourcenar)

"Quero imaginar sob que novos traços o despotismo poderia produzir-se no mundo... Depois de ter colhido em suas mãos poderosas cada indivíduo e de moldá-los a seu gosto, o soberno estende seus braços sobre toda a sociedade... Não quebra as vontades, mas as amolece, submete e dirige... Raramente força a agir, mas opõe-se sem cessar a que se aja; não destrói, impede que se nasça; não tiraniza, incomoda, oprime, extingue, abestalha e reduz enfim cada nação a não ser mais que um rebanho de animais tímidos, do qual o governo é o pastor. (...)
A imprensa é, por excelência, o instrumento democrático da liberdade."
Alexis de Tocqueville (1805-1859)



terça-feira, 6 de dezembro de 2011

O DEVER DA CLAREZA

O filólogo Celso Cunha, responsável pela revisão do texto da Constituição de 1988, renunciou à tarefa, desapontado com a imprecisão e o barroquismo das proposições.
Em discurso pronunciado na Assembleia Constituinte em 20 de setembro de 1988, salientou:

“Estilisticamente, é uma Constituição sui generis, que parece duvidar da eficácia da lei. Deveria ser escrita na língua culta normal dos brasileiros – culta sem ser preciosa, normal sem ser vulgar”. Arrematou, parodiando o que Ortega y Gasset afirmara em relação à filosofia: “Clareza é a cortesia do legislador para com seu povo”.

Predicado do bom estilo, clareza é o que não contrapõe obstáculo ao pensamento, sem tomar em conta a complexidade e a sutileza do tema.
O que é claro não necessariamente é simples ou trivial, como assinala André Comte-Sponville, mas é uma indispensável cortesia aos que leem. Quando a clareza do enunciado implica repercussões sobre direitos e obrigações, então ela se torna crucial, assumindo caráter de dever para os que respondem pela enunciação.

A legislação tributária brasileira, muitas vezes, não prima pela clareza, em virtude da pretensão de confundir, ignorância ou falta de polidez do legislador.

Uma pérola da obscura linguagem tributária brasileira, como bem assinalaram os professores Eurico Di Santi e Isaías Coelho, é retratada no art. 150, § 1.º da Constituição:

“A vedação do inciso III, b, não se aplica aos tributos previstos nos arts. 148, I; 153, I, II, IV e V; e 154, II; e à vedação do inciso III, c, não se aplica aos tributos previstos nos arts. 148, I; 153, I, II, III e V; e 154, II; nem à fixação da base de cálculo dos impostos previstos nos arts. 155, III, e 156, I”.

O significado dessa norma é relativamente simples para os profissionais da área tributária, mas sua construção é um primor de hermetismo, com proliferação de remissões cruzadas, pontos e vírgulas – quase uma linguagem de máquina, para usar um vocabulário da informática.


A linguagem obscura se torna mais iníqua quando se inscreve no contexto de uma profusão de normas, decorrente de uma fúria legiferante que, no propósito de tudo controlar, nada controla. Serve bem, todavia, ao arbítrio, à prepotência e, não raro, à corrupção.

O Código Tributário Nacional (CTN) estabelece, no art. 212, que as administrações fiscais da União, dos Estados e municípios deverão consolidar, anualmente, as respectivas legislações tributárias. Os Fiscos, porém, desconhecem solenemente essa obrigação, no entendimento insubsistente de que se trata de norma meramente programática. Essa descortesia merece ser corrigida, por alteração no CTN, instituindo-se sanções, em caso de inobservância da regra.

As dúvidas dos contribuintes, ao menos em tese, deveriam ser respondidas prontamente pela administração fiscal. Mas não é assim que tem ocorrido. Consultas têm tido respostas lentas e, muitas vezes, pouco qualificadas, sem falar da abusiva alegação de ineficácia. Conheço casos tão estarrecedores, que poderiam ser incluídos em edição atualizada de O Processo, de Kafka.

Há rumores críveis de que se pretende tornar mais restritivo o instituto da consulta. Caso sejam procedentes, trata-se de verdadeiro atentado à dignidade do contribuinte, correspondendo a uma compensação torpe à ineficiência do Estado.

A combinação da abundância de normas, nem sequer consolidadas, com a inépcia no esclarecimento das dúvidas dos contribuintes representa um verdadeiro abuso de autoridade, por omissão.

Há também outra espécie de omissão que produz uma zona cinzenta, onde tudo é possível. É a que se opera no campo das leis com baixa densidade normativa, a exemplo da legislação aplicável a ágio e a dissimulação. Em ambos os casos, é tempo de rever a legislação, procedendo-se à eliminação das brechas fiscais e do potencial de litigiosidade.

As regras tributárias relativas a ágio foram construídas num momento histórico em que se pretendia incentivar a privatização de serviços de infraestrutura, sem que existissem muitos atrativos para inversões estrangeiras. Hoje, o contexto é completamente diferente, ainda que a privatização de determinados serviços públicos seja um processo inconcluso. Ao longo do tempo, essas regras se converteram tão somente em repulsivo instrumento de planejamento tributário abusivo.

Ainda que pendente de disciplinamento por lei ordinária, a regra estabelecida no art. 116, parágrafo único, do CTN, produziu um lamentável campo de batalhas entre o Fisco e o contribuinte. Institutos do Código Civil, como a fraude à lei ou abuso de forma, são transpostos para os procedimentos de fiscalização, sem que se reconheça a barreira fixada por aquela norma. É o pior dos mundos possíveis, em que se abrigam a arbitrariedade e a insegurança jurídica.

Legislações obscuras, omissões na divulgação de normas ou silêncio como resposta a consultas são vícios deploráveis, que demandam tipificação como infrações administrativas. Clareza, em verdade, integra o conceito de moralidade do Estado.

Everardo Maciel
6 de dezembro de 2011
Fonte: Valor Econômico

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