"A verdade será sempre um escândalo". (In Adriano, M. Yourcenar)

"Quero imaginar sob que novos traços o despotismo poderia produzir-se no mundo... Depois de ter colhido em suas mãos poderosas cada indivíduo e de moldá-los a seu gosto, o soberno estende seus braços sobre toda a sociedade... Não quebra as vontades, mas as amolece, submete e dirige... Raramente força a agir, mas opõe-se sem cessar a que se aja; não destrói, impede que se nasça; não tiraniza, incomoda, oprime, extingue, abestalha e reduz enfim cada nação a não ser mais que um rebanho de animais tímidos, do qual o governo é o pastor. (...)
A imprensa é, por excelência, o instrumento democrático da liberdade."
Alexis de Tocqueville (1805-1859)



domingo, 22 de janeiro de 2012

"A VIOLÊNCIA NÃO É UM BALÉ", DIZ DAVID FINCHER

Diretor de "Os homens que não amavam as mulheres" diz em entrevista a ÉPOCA como tratou as cenas de violência no longa
Mariane Morisawa, de Estocolmo

OUSADIA
O diretor David Fincher, em foto de 2010. (Foto: Nicolas Guerin/Contour/Getty Images)

Em reportagem que está na edição desta semana, ÉPOCA conta como o cineasta David Fincher, responsável por filmes como Seven e Zodíaco, tenta manter sua independência artística mesmo à frente de projetos milionários. Nesta entrevista, Fincher fala sobre a busca pela autonomia e conta detalhes de como foi filmar seu último longa metragem, Os homens que não amavam as mulheres, baseado no primeiro livro da série Millennium, do sueco Stieg Larsson.

ÉPOCA - De onde vem seu fascínio com a série Millennium?

David Fincher - Não havia fascínio. Tinha recebido o livro anos atrás. Quando me contaram a história, pensei que nenhum estúdio ia querer fazer, porque parecia tão diferente do que Hollywood faz. E daí, cinco anos mais tarde, eles dizem: “Lindo! Vamos amar fazer esse filme!”.

ÉPOCA - Então o que mudou, os milhões de livros vendidos?

Fincher - Sim, os 50 milhões de livros vendidos.

ÉPOCA - Por que achou que nenhuma companhia em Hollywood ia querer fazer o filme?

Fincher - Não consigo lembrar de outro filme, talvez desde Pulp Fiction (1994) ou Amargo Pesadelo (1972), em que um estupro anal foi permitido, menos ainda como um foco emocional. Não é o tipo de coisa que Hollywood esteja ansiosa para ter nos filmes. Você não vai ouvir: “Me dê mais sodomia! É o que precisamos!”. Foi o que quis dizer. Normalmente, quando você quer fazer um filme para um estúdio, tudo o que pode deixar o público desconfortável tem de ser removido. Então, fiquei surpreso. Para ser justo com o estúdio, eles chegaram para mim e disseram: “As pessoas amam esse livro. Filme”. E eu falei que tinha muita coisa complicada, e eles simplesmente responderam: “Sim, sabemos. Faça”.

ÉPOCA - O que sua versão tem de diferente em relação ao filme europeu?

Fincher - Vi o original uma vez. Não tenho como comentar. Me lembro de achar que era muito bonito, muito arrumadinho. Acho que nosso filme é mais sujo, mais desleixado... E há mais flashbacks do passado. É provavelmente mais Hollywood.

ÉPOCA - É verdade que o fim é diferente?

Fincher - Sim.

ÉPOCA -
Sua versão é melhor?

Fincher - Eu prefiro. Uma ideia foi mudada e gosto muito. É muito mais simples e direta.

ÉPOCA - O roteiro para o segundo livro, A Menina que Brincava com Fogo, já está pronto. Você vai dirigir?

Fincher - Não sei. Se você me convidasse hoje, para estar pronto no próximo Natal, a resposta seria não.

ÉPOCA - O papel de Lisbeth Salander foi disputado por muitas atrizes. Por que escolheu Rooney Mara?

Fincher -
Por sua ética profissional. No começo dos testes, não sabia se daria certo. Em A Rede Social, ela precisava humanizar o Mark Zuckerberg (interpretado por Jesse Eisenberg) e ser capaz de enfrentá-lo verbalmente, isso tendo no máximo 19 falas. Minha grande questão era se ela poderia ser arredia e interiorizada como Lisbeth Salander. Uma vez tomada a decisão, cinco dias depois ela estava em Estocolmo, onde ficou por um mês sozinha, andando pelas ruas, frequentando os cafés. Disse para ela aprender a andar de skate, para ela ter a postura de um garoto de 14 anos. E ela aprendeu. E depois ainda teve a mudança do cabelo, a descoloração das sobrancelhas. Ela fez tudo.

ÉPOCA -
É verdade que você divide seus filmes em categorias?

Fincher - Acho que há filmes que pedem revisitas para apreciar suas diversas camadas, suas diferentes facetas em diversas fases de sua vida. E existem produções, como O Quarto do Pânico (2002), que são feitas para serem processadas numa única sessão. Não quer dizer que o filme é menor. A Rede Social (2010) precisava funcionar em uma sessão. Já Clube da Luta (1999) tem muita coisa, não foi feito para ser ingerido de uma só vez. Seven (1995) foi feito para uma só vez, mas também é um filme que finge ser de investigação policial até você perceber que é uma meditação sobre o mal. Zodíaco (2007) era pessoal demais, é mais como um livro. Não é para ser digerido de uma só vez. Não quer dizer que o trabalho do roteirista James Vanderbilt seja superior ao de Aaron Sorkin em A Rede Social. Mas eu me aproximo do material de forma diferente filosoficamente. Espero que Os Homens que Não Amavam as Mulheres tenha mais camadas, mas foi desenhado para ser processado em duas horas e trinta minutos. Em Zodíaco, eu desisti dessa ideia. Não quero soar pretensioso, mas ele foi feito para você sentir como se fossem 30 anos. É para você se cansar.

ÉPOCA - Mas, por ser mais pessoal, Zodíaco é seu favorito?

Fincher - Não. Eu não tenho favoritos, nem vergonha de nada. Sempre aprendemos. Há coisas em Vidas em Jogo (1997) e O Quarto do Pânico que eu gostaria que fossem melhores. Em Seven, falei: preciso de mais dois meses para consertar. E o produtor disse: “Dave, não dá. Você precisa fazer a versão possível agora”. A mesma coisa aconteceu com Homens que Não Amavam as Mulheres. Houve momentos em que tive de dizer: “OK. Para o filme estar no cinema na data marcada, vou ter de conviver com certas coisas pelo resto da vida”.

ÉPOCA - O Clube da Luta e Zodíaco não foram grandes sucessos de bilheteria. Como se sente em relação a isso?

Fincher - Talvez não tenham tido tanto sucesso exatamente por terem mais camadas.

ÉPOCA - Mas você se preocupa com a bilheteria?

Fincher - Eu não faço filmes que custam US$ 3 milhões. Faço filmes de US$ 80 milhões a US$ 100 milhões. E não te deixam fazer isso se você não dá retorno. Então, sim, eu me preocupo. Clube da Luta não foi tão bem na bilheteria, mas rendeu US$ 130 milhões em vídeo. Então se pagou. Se der um pouco de lucro para quem investiu, tudo bem. E é minha responsabilidade, não acho algo irrelevante. Agora, você quer saber se penso em Clube da Luta e digo: “Diabos, esse filme deveria ter feito US$ 700 milhões no mundo todo?”. Claro que não! Nós nos divertimos tanto fazendo! Não podíamos acreditar que estavam deixando a gente fazer aquele filme! Porque era tão malvado! (risos) Quantas vezes na minha vida me diverti tanto quando cheguei ao set e disse: “Adivinhem o que vamos fazer hoje? Vamos jogar uma bola de metal gigante num Starbucks!”. Isso é divertido para c...!

ÉPOCA - E a crítica, aborrece?

Fincher - Quando você vai ver um filme no fim de semana de abertura é uma experiência diferente de quando você vai ver numa sessão de imprensa. Se você vai ver três semanas depois da estreia, com 80 pessoas na sala em vez de 400, é diferente. Quando sair em Blu-Ray ou for visto numa avião, idem. Daqui a dez anos, também. Você quer que os críticos gostem? Sim! Vai se matar se eles não gostarem? Não! Você vai ficar preocupado que seus filhos vão ler essa crítica? Não! Já tive vários filmes com resenhas arrasadoras.

ÉPOCA -
Por exemplo?

Fincher - Seven. As pessoas odiavam, chamaram de tortura-pornô da MTV. Quinze anos mais tarde, é considerado um dos filmes seminais dos anos 1990. Mas alguns críticos ainda vão dizer que é horrível. Direito deles. Agora, quantos críticos eu considero bons? Uns quatro, cinco. E não é uma questão de concordar. Há críticos que admiro de quem discordo na maior parte do tempo, mas são pessoas que escrevem bem e têm um discurso. E há pessoas que me fazem rir quando não gostam de algo. Você coloca certas coisas no filme para esses críticos detestarem! (risos) Mostramos Os Homens Que Não Amavam as Mulheres ao estúdio e perguntei: “Há violência o suficiente?”. A resposta foi “não sei”. E eu disse: “Caramba, falhei tremendamente!” (risos)

ÉPOCA -
Quando você vai fazer um filme sobre violência, ele tem de ser o mais violento possível?

Fincher - Não é isso! Acredito que, especialmente em filmes americanos, há cenas demais de violência sem consequência. Quando você vê Irreversível (2002), de Gaspar Noé, entende por que as pessoas ficaram ofendidas. Mas, num filme, a violência deve ofender, enojar e dar enjôo. Quando você mostra um estupro num filme, as pessoas têm de ficar mal. Porque é horrível. Acho que isso é ser responsável. Para mim, a violência não é um balé. Violência é violência e deve ser perturbadora. Se você já levou ou deu um soco na cara, há ramificações psíquicas. Você sente-se de forma diferente, o mundo fica diferente. E o cinema tem de fazer você se sentir assim. Por isso não suporto videogames em que o jogador tem a visão de um atirador. Não acho divertido ver as cabeças explodindo.

ÉPOCA - Então o que pensa sobre essa discussão sobre a influência dos filmes em atos violentos reais?

Fincher - Você só pode começar a falar da responsabilidade das imagens sobre as pessoas quando houver pesquisas científicas que provem isso. Até haver provas, não acredito. Acho que é próprio de qualquer arte mostrar e exagerar coisas para chocar as pessoas. Mas a violência está no dia a dia. No cinema, para mim, o problema é quando se torna atraente.

Nenhum comentário:

Postar um comentário