"A verdade será sempre um escândalo". (In Adriano, M. Yourcenar)

"Quero imaginar sob que novos traços o despotismo poderia produzir-se no mundo... Depois de ter colhido em suas mãos poderosas cada indivíduo e de moldá-los a seu gosto, o soberno estende seus braços sobre toda a sociedade... Não quebra as vontades, mas as amolece, submete e dirige... Raramente força a agir, mas opõe-se sem cessar a que se aja; não destrói, impede que se nasça; não tiraniza, incomoda, oprime, extingue, abestalha e reduz enfim cada nação a não ser mais que um rebanho de animais tímidos, do qual o governo é o pastor. (...)
A imprensa é, por excelência, o instrumento democrático da liberdade."
Alexis de Tocqueville (1805-1859)



domingo, 26 de fevereiro de 2012

HILÁRIO

Presidente da República é presidente da República. Autoridade máxima de um País, representante do Estado Brasileiro e Comandante em Chefe das Forças Armadas.
Manda muito! Manda tanto que, por um incrível que pareça, acaba não mandando nele mesmo. Um bom exemplo, são as viagens presidenciais. Cada uma é preparada com muita antecedência, em todos os seus detalhes.
Quando fica acertada a viagem faz-se logo um primeiro roteiro. Aí a máquina do poder começa a funcionar. Tudo tem que ser previsto: hora que sai, quem vai com o Presidente, onde ele vai chegar, quem vai recebê-lo, para onde ele vai, o que ele vai fazer, o que vai acontecer na sua presença, estrutura da solenidade, qual a alternativa se chover, e assim por diante.

Mais: quem sobe no palanque, quem vai compor a mesa, quem vai falar, duração dos discursos, audiências, até despedidas e assim por diante. Não pode haver improviso e, se houver, sempre tem alguém para solucionar rápido.

Para que a máquina funcione adequadamente e com todas vantagens para o

Presidente, há um grupo de servidores da Presidência da República atento a tudo e a todos. São dezenas de técnicos que começam por visitar antecipadamente local da visita. Checam ponto por ponto, se há algum problema qual a solução, onde vai ficar a imprensa, etc etc. Esse grupo chama-se, no jargão do poder, "Escalão Avançado", ou "Escav". Antes chamava-se Batalhão Precursor.

Do? Escav? fazem parte, entre outros, peritos em segurança, peritos em
comunicações, alguém da área médica, peritos em transportes, alguém do
cerimonial, alguém da área de imprensa e alguém da área de comunicação
social. Tem gente até do serviço secreto do Governo.

O técnico ligado ao setor da Comunicação Social, ou Secom-PR, costuma ter por missão verificar se a marca publicitária do governo estará sendo exibida de forma apropriada, verificar se tudo o que está previsto contribui para tirar da viagem o rendimento projetado, em termos de repercussão da presença do Presidente, e assegurar que o Presidente, quando em público, esteja sempre em condições de aparecer bem nas imagens que serão feitas, etc. A este último tópico, não raro, chamam "evitar que a imagem do presidente seja poluída" por outros elementos de cena, pela má disposição desses elementos em relação ao ponto de vista de fotógrafos, cinegrafistas e assim por diante.

A partir dessa visita do "Escav", fecha-se o roteiro pretensamente
definitivo da programação.

Depois, durante a viagem, um grupo semelhante, não raro as mesmas pessoas
que participaram do "Escav", acompanha o Presidente e vai zelando para que
tudo aconteça dentro do previsto.

Dada a característica do atual governo, de dar preferência, no preenchimento dos cargos de livre provimento (os DAS), a pessoas com histórico de atuação partidária e sindical, foi nomeado, para uma função na Secretaria de Comunicação de Governo e Gestão Estratégica - Secom, um metalúrgico de verdade, dono de expressiva folha de serviços prestados ao movimento sindical do ABC, chamado Cândido Hilário Garcia de Araújo, que é anistiado político e recebe indenização da União.

Pois, eis que Cândido Hilário foi colocado a trabalhar nos "Escavs" e nas
viagens presidenciais. Depois de passar por treinamento intensivo, teve
finalmente sua primeira participação solo em "Escav" e em viagem presidencial. E lá foi ele, zelar pela imagem do Presidente.

Parece que tudo ia bem, exceto por uma coisa, segundo a percepção de Cândido Hilário: um barbudinho teimava, volta e meia, em subir ao palco onde se encontrava o Presidente e cochichava-lhe ao ouvido.
E assim foram duas ou três vezes, em curto intervalo.
Ora, concluiu Hilário, aquele sujeito se aproximando a toda hora estava poluindo a imagem do Chefe da Nação. Esperou mais um pouco, para ver se a coisa parava. Não parou.
Então, não teve dúvidas. Quando o barbudinho subia apressadamente ao palco, fazendo menção de que se dirigiria mais uma vez ao Presidente, Hilário atalhou-o, segurou-o firmemente pelo braço e disse, bem discretamente, mas com decisão:

- Aqui o senhor não sobe mais. O senhor está poluindo a imagem do Presidente.

Diplomaticamente, como requer o Itamaraty, sem se desvencilhar, o barbudinho virou-se, calmamente, para Cândido Hilário:

- Tudo bem. Posso fazer isso que o senhor me pede, mas desde que o senhor passe a fazer o trabalho que eu faço.

- E qual é o seu trabalho?

- Sou o Chefe do Cerimonial do Presidente da República.

- A gente logo vê, pelo seu comportamento, que o senhor é uma pessoa
importante. Mas isso não interessa. O senhor não vai mais poluir a imagem do Presidente.

Tudo se passou numa fração de segundos e... muito discretamente. O Embaixador Paulo César de Oliveira Campos, Chefe do Cerimonial da Presidência, a quem os colegas e amigos chamam carinhosamente de POC, como era de se esperar pela sua experiência e competência, administrou a situação.

Mas, o incidente não poderia passar sem conseqüências. O Cerimonial faz
parte da exclusivíssima cota de órgãos integrantes do gabinete pessoal do
Presidente da República. Nenhum departamento palaciano tem mais
responsabilidade e zelo pela imagem pública do Presidente da República do que o Cerimonial.

Começaram então as conversas e trocas de telefonemas, para assegurar que Cândido Hilário estaria devidamente encostado tão logo pisasse novamente o solo brasiliense.

Já definida a providência restauradora da ordem e dos tradicionais costumes palacianos, ocorre a surpresa. Terminada a cerimônia, Lula, que nada percebera, vislumbra um companheiro lá embaixo do palco. Era o velho Cândido Hilário. Desce, abre um sorriso, abre mais ainda os braços e não se contem:

- Bigode, meu irmão e companheiro! Que bom te ver aqui! Quanta saudade!

Diante de tão inequívoca demonstração de prestígio, amizade e companheirismo novos telefonemas prontamente desmancharam a cogitada demissão.

Cândido Hilário Garcia de Araújo é muito mais do que um ferrenho defensor da imagem do Presidente da República.

É o Bigode! Tem história e faz história!

26 de fevereiro de 2012
Silvestre Gorgulho

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