"A verdade será sempre um escândalo". (In Adriano, M. Yourcenar)

"Quero imaginar sob que novos traços o despotismo poderia produzir-se no mundo... Depois de ter colhido em suas mãos poderosas cada indivíduo e de moldá-los a seu gosto, o soberno estende seus braços sobre toda a sociedade... Não quebra as vontades, mas as amolece, submete e dirige... Raramente força a agir, mas opõe-se sem cessar a que se aja; não destrói, impede que se nasça; não tiraniza, incomoda, oprime, extingue, abestalha e reduz enfim cada nação a não ser mais que um rebanho de animais tímidos, do qual o governo é o pastor. (...)
A imprensa é, por excelência, o instrumento democrático da liberdade."
Alexis de Tocqueville (1805-1859)



sábado, 10 de março de 2012

O AUTO-ELOGIO DE DILMA NA ECONOMIST

Dilma Rousseff assina um artigo na edição especial O mundo em 2012 da revista The Economist, licenciada no Brasil para a Carta Capital. É assaz curioso ventilar hipóteses para uma revista séria como a Economist ser traduzida e licenciada pela Carta Capital no Brasil. A resposta aparece como óbvio ululante com poucas sinapses: os leitores da Carta Capital raramente lêem ou entendem os ensaios da Economist, e quando o lêem, pensam-nos como “idéias exploratórias que estão me mostrando para que eu discorde”.

Dilma Rousseff se rasga rendendo loas a si própria em seu artigo. Intitulado O modelo brasileiro, a presidente começa com o chavão “O mundo está mudando rapidamente.” É a última frase no artigo com a qual conseguimos concordar.

De acordo com a presidente, o mundo vive uma mudança nos centros econômicos mundiais, e o Brasil é um dos novos centros. É uma análise comumente feita, mas perspicaz em sua simploriedade. De todos os fatores que tornam o Brasil um importante pólo econômico hoje, o principal é sua enorme população, além de vastas áreas rurais que garantem um alto número de consumidores para quem quer investir, criar empresas, fazer negócios e ter alguma certeza de lucro, porque fatalmente alguém vai acabar entrando no seu mercado. Mesmo com carros populares custando o mesmo que sedans de luxo nos EUA ou outros países liberais, as cidades têm um trânsito impossível e estão entupidas: o Brasil, país riquíssimo, dá mais de um terço do que ganha para burocratas no governo em troca de muito pouco em serviços e muito em corrupção. Ainda assim, o mercado é fervilhante: 190 milhões de pessoas num país em ascensão não se despreza assim.

Compare-se o caso com outros países cuja ascensão nos últimos anos foi meteórica (ao contrário do Brasil, que se assemelha ao Pequeno Príncipe segurando um foguete com uma peneira, balangando as pernas tentando se acostumar com o vôo): Coréia do Sul, Singapura, Chile, Malásia, Dubai, Irlanda, Hong Kong. À exceção de Hong Kong e Malásia, são todos países de população diminuta, em que não se pensaria repentinamente como hipotéticos nomes de importância mundial para o comércio, pautando mercados de países de proporções continentais. Em compensação, é tirar a população do Brasil e… será que mesmo aproveitando só a área mais rica das cidades mais ricas, teríamos algo comparável a uma Coréia do Sul fazendo peso de “centro de desenvolvimento econômico”?

Dilma prossegue afirmando:

Mais importante, nos últimos oito anos, nós levamos mais de 40 milhões de brasileiros – quase o tamnho da população da Espanha – da pobreza para as classes médias, com acesso à saúde, educação, crédito e emprego formal.

Descontando os dados duvidosos após a palavra “pobreza”, Dilma deveria disfarçar mais ao manipular dados para favorecer a gestão petista: muito antes de Lula ter alguma chance de subir à Alvorada a pobreza já vinha diminuindo. Vide este estudo de Ricardo Paes de Barros, Ricardo Henriques e Rosane Mendonça para o Ipea:

(CLIQUE SOBRE A IMAGEM)

Como se vê, a pobreza vem diminuindo, com seus percalços, desde antes da democratização, e é um tabu nacional lembrar qual foi o governo que começou a fincar uma estaca em seu tamanho. É difícil imaginar como seria diminuir a pobreza sem conquistas anteriores ao governo petista: sem o Plano Real, que provocou um boom, com um dos maiores saltos na diminuição da pobreza em dois anos (4,9% na redução de indigentes e nada menos que 7,8% da diminuição do número de pobres entre 1994 e 1996, um número inconfundivelmente maior do que qualquer período anterior analisado desde 77, descontando um discutível número do período militar).

Fora as turbulências nas crises (Tigres Asiáticos, México e Rússia), um detalhe curioso é que o número esconde o número total de pobres do Brasil: 1% em 1980 significa bem menos do que 1% hoje. Significa que muitos pobres saíram da pobreza: mas, ainda assim, não há uma diminuição tão grande do número de pobres conforme se pensa. Na verdade, muitas vezes o número total aumenta. No mais, a pobreza extrema simplesmente caiu no mundo inteiro com a abertura dos mercados – onde não caiu foi em países que não aderiram à liberdade econômica do capitalismo como a África subsaariana e ditaduras socialistas. Estas até hoje justificam sua miséria com “embargos econômicos” – esperam por um disk 1-800-AMERICA para se livrarem da miséria.

Há uma continuidade clara com o modelo anterior. É ótimo que ela exista – mas não dá grandes méritos a quem a continua, se seu discurso é e foi de rompimento. Há de discutir então a gestão de cada modelo. Tanto o PSDB quanto o PT privatizaram e criaram programas sociais. Por que um só é lembrado por uma coisa, e outro só pela outra?

Basicamente, o programa social do PT era a unificação de diversos programas da gestão tucana. Foi chamado de Fome Zero e quase rendeu um Nobel da Paz a Lula, após arrancar muitas lágrimas na Suíça em sua apresentação. O fiasco é conhecido: sua gestão baseava-se em taxas sobre gorjetas de restaurantes e outras idéias doidivanas. Mas até hoje você consegue fazer doações ao programa em agências do Banco do Brasil. É um grande ato de fé. O Bolsa Família causou o rompimento definitivo de Lula e Frei Betto – há explicação: unificava diversos programas geridos por Ruth Cardoso, os quais foram alvo de feroz crítica no período de oposição.

O custo de tais manobras foi elevado: a carga tributária média ficou em 33,47% na gestão Lula, contra já elevadíssimos 30,07% de FHC. Com maior carga tributária sobre mais pessoas que enriqueceram mais, faz muito sentido alardear que só durante os oito anos de gestão petista é que se fez tanto pelo país? Melhor nem comparar com outros dados, como, quem sabe, aumento do número de telefones por habitante em cada período (alguém tem coragem de averiguar este ótimo indicador de crescimento de renda?), queda da inflação, queda da evasão escolar, crescimento das matrículas nas universidades, crescimento do PIB em relação ao governo anterior (e o mais importante: quanto o PIB cresceu em relação ao mundo) e, sobretudo, aumento da dívida pública para se fazer tudo isso? Há uma tabelinha bem interessante aqui.

A presidente também espezinha as “economias avançadas”, afirmando que aumento de salários não substitui aumento de dívidas. Bastante curioso para quem se gaba de facilitar crédito, e para quem elogia um governo que deixou uma dívida de R$98,580 bilhões, comparada a R$56,082 de seu antecessor (quase duplicou). Que tal comparar o aumento do poder de consumo de sua gestão com a gestão passada, se é essa a lição que Dilma quer ensinar aos ensinadores? Basta lembrar do aumento da dívida interna, usado de maneira que deveria ser criminosa para vender a idéia falsa de que “quitamos a dívida externa”. Mas Dilma afirma que nosso modelo é “autoalimentável” e “focado no mercado interno”. Vamos perguntar pros chineses que compram nossa soja se a informação procede.

Há também o clichê de que mercados desregulamentados produzem instabilidade e desigualdade. O mercado financeiro é o mais regulamentado e estatizado de todos, estamos patinando nas últimas posições em liberdade econômica como todas as economias que estão precisando pedir dinheiro justamente para as mais liberais e, afinal, é preciso desconhecer bastante o sistema econômico para acreditar que a crise é culpa do capitalismo sem interferência do Estado – uma crise acontece quando gastamos mais do que arrecadamos, e qualquer empresa simplesmente vai à falência se assim atua – a não ser quando tem conchavo com o governo. Aí a conta é de todo mundo. Não parece ser o que está ocorrendo? E os próprios dados que comemora vieram atrelados à abertura do mercado. É difícil pescar uma contraditório?

O cuidado com as palavras é esmerado. Dilma comenta sobre “transferência governamental”. É um velho mito que precisa ruir: o governo não tem um centavo. O governo não transferiu nada do próprio bolso. Tudo o que o governo dá ele tira de alguém. Esse discurso costuma enganar muitos adolescentes que pensam em desigualdade e empresários que “visam o lucro”, e acreditam que monopólios do Estado na economia fazem com que políticos dêem dinheiro ao povo. É difícil imaginar o que são milhares de empregos públicos perto do que um simples banco ou empresa de telefonia consegue empregar – do zelador do prédio até o presidente, estariam todos desempregados, sem poder desfrutar da riqueza que só surge com a administração competente de todos organizados em uma empresa. É a sinergia do mercado. E só o maior banco da América Latina já tem como clientes exatamente o mesmo equivalente à população da Espanha que Dilma diz que seu governo tirou da pobreza. Será que são pessoas ainda abaixo da faixa da pobreza que fazem a máquina funcionar? E como ficam os primeiros empregos (não era nome de um falido programa estatal petista, aliás?) com telemarketing e derivados?

Não é senão a própria Dilma quem confirma:

Hoje o mercado do Brasil, em crescimento rápido, suporta o desenvolvimento autossustentável não só no Brasil, como em toda a nossa região.

O mercado, afinal, são as pessoas, não só as empresas. Não faz muito sentido trocá-lo por burocratas e acreditar que se conseguirá produzir riqueza que atingirá os pobres. Há conquistas sociais importantes a serem comemoradas, mas o auto-elogio de Dilma são apenas platitudes que não unem causa á conseqüência (pelo contrário, apenas joga ao ar premissas aleatórias sem algo que as una) bem afeito ao bom mocismo que domina o debate. Mas nada se sustenta a uma breve lufada de verdade.

Resta apelar para a evasão escolar (mais atenuada no governo tucano), igualdade sexual (como se Lady Gaga e a ondinha lésbica fosse obra do governo), o papel da mulher… mas quem disse que é a mulher que está galgando novos degraus? Basta observar os nomes das mulheres em sua gestão, a começar por ela própria: Dilma Rousseff, Gleisi Hoffmann, Ideli Salvatti… são sobrenomes facilmente encontráveis por aí? Também há uma grande predominância de sulistas. Será que há mais diferença entre uma mulher e um homem qualquer, ou entre um gaúcho cercado de colonização alemã e italiana e um paraense, sejam ambos homens ou mulheres? (vide o artigo Dilma e sua equipe ítalo-alemã, no Valor Econômico)

Dilma se aproveita de coincidências. Infelizmente, o que pode ser elogiado na gestão petista é derivado mesmo disso: ou alguém esquece do papel da internet nos últimos 10 anos, e atribui o quanto mudou nossas vidas ao PT? Por ora, prosseguimos com o mesmo: o PT fez coisas boas e novas – o problema é que as boas não foram novas, e as novas não foram boas.

10 de março de 2012
Flavio Morgenstern é redator, tradutor e analista de mídia.

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