"A verdade será sempre um escândalo". (In Adriano, M. Yourcenar)

"Quero imaginar sob que novos traços o despotismo poderia produzir-se no mundo... Depois de ter colhido em suas mãos poderosas cada indivíduo e de moldá-los a seu gosto, o soberno estende seus braços sobre toda a sociedade... Não quebra as vontades, mas as amolece, submete e dirige... Raramente força a agir, mas opõe-se sem cessar a que se aja; não destrói, impede que se nasça; não tiraniza, incomoda, oprime, extingue, abestalha e reduz enfim cada nação a não ser mais que um rebanho de animais tímidos, do qual o governo é o pastor. (...)
A imprensa é, por excelência, o instrumento democrático da liberdade."
Alexis de Tocqueville (1805-1859)



quinta-feira, 19 de abril de 2012

HISTÓRIAS DO JORNALISTA SEBASTIÃO NERY


A ORELHA MORDIDA

“Na hora do casamento, num incidente que daria o tom dos quarenta anos seguintes, dona Carlota deu uma mordida violenta na orelha de Dom João. No cerne dos problemas da família real portuguesa, estava um casamento tão desastroso que, em alguns momentos, suas conseqüências transbordariam para o domínio público.

Dona Carlota (Joaquina, infanta espanhola, filha do príncipe das Astúrias, futuro rei Carlos IV) fora convocada para desposar Dom João (príncipe de Portugal), então com 18 anos, em 1785, quando contava apenas 10 anos (o casamento só se consumou em 1790, quando ela fez 15 anos). Selada por razões de Estado, a união deu continuidade a uma tradição de casamentos entre as cortes espanhola e portuguesa. O casal teve nove filhos”

E foi assim, de uma mordida na orelha do noivo na hora do casamento, da demência da rainha-mãe louca e fugindo de Napoleão que invadia Portugal, que o “príncipe do Brasil”, Dom João (a partir de 1815, Dom João VI), desembarcou na Praça XV, no Rio de Janeiro, em 8 de março de 1808, e o Rio se transformou na capital do Império Português.


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A FROTA

Foi uma aventura para humilhar qualquer Manoel Carlos ou Glória Perez. Essa história “recheada de personagens extravagantes” é contada, dia a dia, pelo jornalista australiano, radicado em Londres, Patrick Wilcken, que se baseou em documentos brasileiros e portugueses, além de pesquisas no ministério de relações exteriores britânico: – Empire Adrift – The Portuguese Court in Rio de Janeiro – 1808-1821 (Império à Deriva – A Corte Portuguesa no Rio de Janeiro – 1808-1821).

“Talvez nunca saibamos quantos conseguiram embarcar na frota: 3 fragatas, 2 brigues, um navio de provisões, 8 navios de carreira, diversas chalupas e corvetas armados, alguns navios do Brasil e 4 navios britânicos de escolta – uma frota considerável. Parece que cerca de 10 mil pessoas viajaram para o Brasil na primeira leva – número gigantesco, considerando que a população de Lisboa na época era de pouco mais de 200 mil habitantes”.


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A VIAGEM

“A família real dividiu-se entre quatro navios. O Alfonso de Albuquerque trouxe dona Carlota e quatro de suas seis filhas. As duas filhas do meio viajaram no Rainha de Portugal, enquanto os membros inferiores do cortejo real – a tia e a cunhada idosas de Dom João, ficaram a bordo do Príncipe do Brasil. Na nau capitânea, a Príncipe Real, embarcaram Dom João, a Rainha Maria 1ª, a Louca, e os herdeiros varões Pedro e Miguel”.

“Saíram na manhã de 29 de novembro de 1807. Suportaram sete semanas de vida a bordo em alto-mar, mares revoltos, tormentas. Ancoraram em 22 de janeiro de 1808 em Salvador, que tinha sido a capital até 1763 e era a cidade mais populosa do império português. Era uma cidade mais africana que européia, com uma população predominantemente negra e mulata”.


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DONA CARLOTA

“Dona Carlota era minúscula, baixa, menos de um metro e meio, de feições andaluzas morenas e usando um curioso turbante para cobrir a cabeça raspada. Dom João, um homem baixo e corpulento, de cabeça grande e braços e pernas troncudos.
A família real passou um mês descansando em Salvador. Em 8 de março, desembarcaram no Rio. Durante um curto período, dom João e Dona Carlota dormiam em quartos situados no mesmo corredor, um em frente ao outro. Mas esse arranjo não durou muito. Os dois não tardaram a morar em extremos opostos da cidade, com os familiares divididos entre eles”.

“O Rio era menor do que Salvador: 60 mil habitantes na chegada da família real. O vice-rei invocou uma lei impopular que dava à coroa o direito de confiscar casas particulares. Funcionários percorriam a cidade, escolhendo arbitrariamente as residências adequadas e escrevendo a giz, em suas portas de entrada: PR (Príncipe Regente).
O sinal indicava que os moradores deveriam desocupar prontamente as propriedades. Essas iniciais tornaram-se popularmente conhecidas pelos cariocas exasperados como Ponha-se na Rua”.


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DOM JOÃO

“Dom João saía com um cortejo de autoridades. Logo, passou a cumprimentar muitos súditos pelo nome. Criou um sistema de concessão de honrarias, do qual nasceu a nobreza brasileira: fazendeiros, senhores de escravos e comerciantes ricos receberam títulos de marquês, conde, barão e cavaleiro, o que consolidou ainda mais a popularidade de Dom João. O príncipe regente era venerado. Dona Carlota galopava pela zona rural. As excentricidades de dona Carlota viraram temas de mexerico na cidade: o hábito pouco feminino de montar como um cavaleiro, com um rifle pendurado no ombro, suas expedições de caça pelas montanhas e o óbvio afastamento do marido chocaram a sociedade colonial conservadora”.
“Joaquim José de Azevedo, o funcionário da corte que havia supervisionado o embarque da família real, enriqueceu tanto no Brasil que acabou por se tornar o banqueiro da corte”.

De lá para cá, as coisas não mudaram muito. Continua-se a morder a orelha do povo.



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