"A verdade será sempre um escândalo". (In Adriano, M. Yourcenar)

"Quero imaginar sob que novos traços o despotismo poderia produzir-se no mundo... Depois de ter colhido em suas mãos poderosas cada indivíduo e de moldá-los a seu gosto, o soberno estende seus braços sobre toda a sociedade... Não quebra as vontades, mas as amolece, submete e dirige... Raramente força a agir, mas opõe-se sem cessar a que se aja; não destrói, impede que se nasça; não tiraniza, incomoda, oprime, extingue, abestalha e reduz enfim cada nação a não ser mais que um rebanho de animais tímidos, do qual o governo é o pastor. (...)
A imprensa é, por excelência, o instrumento democrático da liberdade."
Alexis de Tocqueville (1805-1859)



domingo, 20 de maio de 2012

A EXPERIÊNCIA DE MUNIQUE

A EXPERIÊNCIA DE MUNIQUE

Por: Luiz Nazario
jan.24.2010
Caminhando pela Unter den Linden, Carlo Rondi era feliz naquele verão de 1928. Estudava em Berlim graças a uma bolsa que a Universidade de Bolonha concedera à melhor monografia sobre a literatura alemã. Com um ensaio sobre o herói no teatro de Schiller, Carlo conquistara o cobiçado prêmio. E, agora, podia viver um ano inteiro no estrangeiro, como nunca pudera viver em seu próprio país: livre da família e com dinheiro suficiente para acompanhar a agitação cultural daquela grande metrópole.

Carlo tinha apenas um encargo: assistir ao curso de literatura alemã ministrado pelo Professor Markus Epstein, na Universidade de Berlim. Essas aulas tinham seus momentos interessantes, especialmente quando Prof. Markus dispunha-se a comentar as atualidades culturais, ao fim de cada palestra. Mas a distância que ele pretendia manter em relação aos alunos incomodava o impulsivo Carlo quase sub-repticiamente.

Markus não tinha tempo para os espetáculos, nem o dissipava em mesas de cafés. Lecionava há sete anos na Universidade e contava apenas 37 anos. Como não sentia nenhuma atração física por homens ou mulheres, a vida só lhe interessava sob a forma de literatura. Dispensava o estímulo dos sentidos, os apelos da carne, e vivia feliz entre os livros. Nada lhe dava mais prazer que obter e transmitir o conhecimento.

Markus era um bom professor, e acompanhava com interesse quase paternal o desenvolvimento de seus alunos. Detestava a política e raramente lia os jornais: aí só encontrava fatos imprecisos, arbitrariamente dispostos em quadriláteros de tamanho variado, redigidos às pressas, em estilo opaco e sonolento. Sentia o presente como um momento insignificante da História, que só provava sua realidade muito tempo depois de passado. Assim, terminada a aula, Markus seguia diretamente para casa, localizada bem defronte ao Pergamonmuseum, ansioso para retomar a leitura de algum volume que começara de manhã.

O livro que tinha agora em mãos saíra há alguns anos, e fizera algum barulho: intitulava-se Mein Kampf, escrito por certo Adolf Hitler, político da direita radical, que vinha da ralé e agitava as massas em Munique. Markus terminou de ler o volume cheio de apreensão. Algo parecido já existia na Itália, lá Mussolini também enaltecia o princípio do chefe, a hierarquia e a ditadura. Mas as propostas de Hitler eram mais radicais, tingidas de um virulento racismo. Markus lembrou-se do aluno estrangeiro, Carlo Rondi, e pensou que ele talvez devesse levar para seu país o livro de um escritor ainda pouco conhecido que servia como um antídoto contra essa nova onda que se espalhava pela Europa. No dia seguinte, no fim da aula, Markus dirigiu-se ao italiano:

– Gostaria que o senhor lesse esta novela que saiu recentemente. Causou-me profunda impressão. Trata-se de um autor pouco conhecido, mas de tal força visionária que certamente se tornará um dos pilares da literatura moderna. Tenho distribuído exemplares deste livro aos meus melhores alunos.

Ainda surpreso com essa distinção, Carlo Rondi agradeceu a lembrança, prometendo ler o livro no fim de semana. Mas ele só se dedicava à leitura quando não tinha coisa melhor a fazer. Ao chegar à pensão em que morava, guardou o volume na estante, junto a outros que ia comprando e que não tinha tempo de ler. Esses dias radiantes em Berlim passavam tão depressa que suas leituras acumulavam-se nas prateleiras. A rua solicitava-o com mais força – a força de suas luzes, de seus ruídos, de suas cores. Confiava na sua ótima memória para prosseguir com os estudos, e preferia passar o tempo livre no bar Viktoria, onde encontrava os tipos mais incríveis.

Desenvolvia seu alemão freqüentando teatros e cabarés, misturando-se às discussões de rua, rondando os bordéis. Carlo viu assim crescer, ao seu redor, o número de uniformes marrons do Partido Nacional-Socialista. Seus militantes distribuíam panfletos incitando o boicote aos judeus e o combate aos comunistas. Esses também faziam uma intensa propaganda de rua. Mas eram os SA que prevaleciam, andando em grupos de quatro ou cinco, às vezes armados de cassetetes, intimidando os passantes, atacando os adversários.

Durante um fim de semana em que se sentia enfastiado da rotina berlinense, Carlo resolveu tomar um trem para Munique, a fim de assistir a um dos famosos comícios de Hitler. O jovem italiano que se divertia com os campeões de ioiô, as mulheres emancipadas, os atletas musculosos, os travestis, os videntes, os dançarinos de Charleston, os músicos de jazz e outros tipos decadentes de Berlim, quis também conhecer de perto o homem que prometia, por um lado, acabar com a desordem que desmoralizava o país, supostamente promovida pelos judeus, fossem banqueiros ou bolchevistas; e, por outro, dar uma nova dignidade ao trabalho, restabelecendo o serviço militar obrigatório, nacionalizando a economia, a política, a imprensa, a cultura.

Chegando a Munique, Carlo não precisou esperar muito para certificar-se do carinho que o povo nutria por Hitler. O comício estava marcado para as oito da noite, mas desde o começo da tarde as ruas já se apinhavam de homens e mulheres de todas as idades. Conforme as horas iam passando, o número de espectadores aumentava ao redor do palanque reservado aos oradores, equipado com potentes microfones.

Soldados e generais, professores e sapateiros, operários em macacões e senhoras elegantes mesclavam-se numa estranha comunhão espiritual. Nos rostos mais duros estampava-se um ar de contentamento de quem estava a realizar um desejo há muito acalentado. Acontecia alguma coisa de novo na Terra e a alegria daquela gente era a de participar de um movimento cujo triunfo mudaria os destinos humanos, colocando a Alemanha no topo do mundo. O Partido Nazista prometia uma revolução total da vida, como nunca fora antes tentada.

Gigantescas bandeiras vermelhas tremulavam no fundo do palco. Os militantes diziam orgulhosos que fora o próprio Hitler quem criara sua estampa, assim como as dos cartazes. Esse homem fora um pintor promissor, um artista sensível, que abdicara de seu mundo de beleza e fantasia para salvar da miséria os pobres, os humildes e os desesperados. As insígnias, as fileiras de rapazes em uniforme e a expectativa geral que tornavam o momento tão solene eram apenas o prólogo da festa que se preparava.

A multidão aguardava em transe a chegada do orador. A espera fazia crescer o desejo de ouvi-lo. Em meio à inquietação, uma jovem comunista ousou insinuar-se, distribuindo folhetos que alertavam os operários contra a política militarista do nacional-socialismo. Logo foi abordada por militantes de camisa parda, que a derrubaram no chão. A moça recebeu tantos pontapés que foi levada dali sem sentidos, a face banhada em sangue. Em torno do grupo, populares haviam aplaudido o feito, como se tivessem assistido a uma luta livre.

Como estrangeiro no país, Carlo não ousara tomar partido, embora a atitude dos guardas de assalto o tivesse deixado fora de si. Com um nó na garganta, Carlo conteve sua indignação recriminando mentalmente a jovem comunista por ter provocado a serpente em seu ninho. Contudo, ele sabia por que não reagira: tivera medo de ser igualmente linchado. Não demorou, portanto, a convencer-se de que era apenas por curiosidade que acompanhava o comício. E passou a observar friamente, como um veterinário diante de um animal doente, a excitação da turba: uns riam histericamente, outros comentavam o discurso anterior de Hitler, outros alternavam movimentos frenéticos de cabeça com um olhar perdido e sem expressão, enquanto grupos de jovens discutiam acaloradamente.

Quando o comentado Führer chegou, trazido numa Mercedes preta por seu motorista particular, um rumor percorreu a platéia. Todos gritavam: “Sieg Heil! Sieg Heil!”. Velhos desempregados gemiam parados no lugar. Algumas mulheres soluçavam, outras faziam um visível esforço para não urinar. Alguns anos atrás, aquele povo fora desvalorizado com a grande inflação. Todos se lembravam de que até para comprar o leite e o pão tinham de carregar na bicicleta um caixote cheio de dinheiro. Só os ricos podiam pagar vinte bilhões de marcos para jantar num restaurante. E alguns restaurantes de luxo chegavam a atar com correntinhas os seus talheres de prata, evitando assim que seus clientes empobrecidos os roubassem.

A situação chegara a tal ponto que o governo fez circular, como dinheiro, tirinhas de jornal carimbadas. Os alemães sentiam-se arruinados por dentro, em sua capacidade de trabalho, em sua dignidade humana: nada do que faziam tinha mais valor, nada que pudessem projetar para o futuro valia a pena. O pior não era o espectro da miséria rondando os lares: era o pavor metafísico do nada, a vergonha de uma submissão infinita, a retração do futuro aos limites do corpo. Por isso tantos haviam se suicidado. Agora, a estabilidade conseguira aliviar as tensões. Mas o horror vacui não fora esquecido. Pelo contrário, ele era relembrado por Hitler, que pretendia valorizar o homem alemão de uma vez por todas. Esse estranho surgira na Alemanha disposto a mudar tudo o que estava errado. Carlo conhecia bem tal postura.

Mussolini também empregara a retórica socialista para impor sua ditadura. Na juventude, antes de tornar-se um nacionalista ferrenho, Benito militava com ardor pelos pobres. Mas a paixão do Duce pela violência ultrapassava a lorota ideológica. O que no fundo ele mais desejava era destruir e matar. Foi por atos violentos de militância que fora preso. Na prisão, sentiu-se à vontade entre os criminosos. Libertado, fundou um jornal que apelava à insurreição. A todo o momento dizia que uma bomba valia mais que cem discursos. Ao tornar-se o diretor do maior jornal político do país, incitou os militantes à conquista da rua.
 A cada manifestação tornava-se mais violento, exigindo o poder a qualquer preço. Quando a Grande Guerra estourou, colocou-se, como todos os socialistas, contra os beligerantes. Mas não conseguiu resistir por muito tempo à tentação daquela orgia de sangue e, dois meses depois, fundou seu próprio jornal de combate, francamente favorável à guerra. Arrebanhando a simpatia dos futuristas e dos decadentistas, dos nacionalistas e dos combatentes, Mussolini criou seu movimento fascista. O trabalho tornou-se sua religião.
Apoiados pelos grandes proprietários, armados pelo Exército, defendidos pelos magistrados, abençoados pela Igreja e financiados pelos banqueiros, os fascistas de uniformes negros espalharam o terror. Com gritos selvagens de “Eia, eia, alalà!”, matavam os camponeses rebeldes, destruíam as redações dos jornais de esquerda, tomavam de assalto as cidades. Também as províncias foram ocupadas por pequenos Mussolinis, que assassinavam os opositores, fechavam os sindicatos, impondo leis de exceção, promovendo espionagens e delações. E desde então o Duce governava uma nação trabalhadora e obediente!

Carlo despertou de seu devaneio assim que Hitler começou a falar. O homenzinho arqueava o corpo para frente como se um peso o estivesse oprimindo. Os cabelos negros e lisos encobriam-lhe os olhos azuis; o bigode cortado nas pontas dava-lhe um ar patético – a um só tempo cômico e sinistro. Sua voz era como um gemido. Com as mãos contorcidas, ele relembrava que a derrota da Alemanha na guerra devia ser creditada à traição judaica na retaguarda, que as ideologias reinantes na Alemanha – o liberalismo, o socialismo, o comunismo – eram fraudes disseminadas pela conspiração judaico-marxista internacional para enfraquecer o espírito germânico. Vago e sonolento a princípio, pouco a pouco seu discurso ganhou o tom firme e decidido de quem havia descoberto o fio da meada e se propunha a puxá-lo até desemaranhar toda a trama.

Carlo olhou ao redor e viu como as faces sem expressão de antes agora se mostravam luminosas e até coradas. Quando Hitler disse que não queria lutar contra os judeus e sim encurralá-los “como animais selvagens” para desferir-lhes um “golpe no coração”, o público vibrou de emoção. Quando atacou a “ralé vermelha” e a “democracia pestilenta”, o auditório aplaudiu com frenesi. E quando jurou “amor eterno à pátria”, todos sapatearam no chão em desvario.
De repente, Hitler estacou seu discurso no auge, e o eco de suas últimas palavras, “Alemanha, desperta!”, estalou como um chicote no vácuo silencioso. Foi como se o céu se abrisse em dois, convidando aquela multidão a entrar no Paraíso. Todos se puseram de pé, jogando os braços para o alto numa saudação selvagem.
Os gritos ensurdeceram Carlo, que sentiu a energia da massa cercar e abraçar a figura de Hitler como uma corrente elétrica que parecia elevá-lo do solo, banhando-o no manancial que o purificava e endurecia ainda mais. Sua voz crescera e diminuíra numa alternância quase cromática de tons fortes e esmorecidos e, agora, o orador e a audiência pareciam rodopiar acima do chão numa torrente de felicidade. Carlo não sabia quanto tempo aquele êxtase tinha durado: um segundo? Um minuto? Uma hora? Ele se sentia nauseado e com vontade de vomitar; queria sair dali o mais depressa possível, voltar para casa e esquecer tudo isso.

De regresso a Berlim, Carlo quis comunicar sua estranha experiência ao professor Epstein. Depois da aula, pediu-lhe uma entrevista em particular. Dispensando as formalidades, Markus cedeu ao convite do italiano e foi encontrá-lo numa mesa isolada do Romanisches Café.

– E então, Herr Rondi, decidiu-se finalmente a comentar o livro que lhe dei?
– Não, Herr Professor. É algo mais importante que me obriga a este encontro. Desculpe-me o atrevimento desta pergunta… Mas o senhor é judeu, não é?
– Meus pais eram. Mas eu perdi a fé, e vivo completamente alheio às tradições de meus antepassados. Sou um bom alemão e um homem do mundo. Mas não me diga que o senhor também pretende aderir ao nazismo.
– Bem, Herr Professor… Fui a Munique assistir a um comício de Hitler, mas não por interesse político. Fui assim como um turista. E o que vi me espantou. Hitler é um fenômeno! Consegue encantar as massas como nenhum outro orador que eu tenha visto. Na minha terra, Mussolini também desperta o fanatismo das massas. Mas Hitler é pior, professor. Ele não quer apenas mandar num país, ele quer a eternidade… Há algo de insano em suas gesticulações e na euforia que elas provocam. Ele será capaz de tudo para atingir sua meta e seus seguidores tudo farão para que ele a alcance.
– E devemos esperar seu triunfo?
– Creio que sim, Herr Professor. A ascensão de Hitler parece-me irresistível. E penso que o senhor, como judeu, deveria deixar o país.
– Não pretendo abandonar minha pátria por causa de um louco. Creio que o pior da crise econômica já passou. Hitler tentou dar seu golpe em 1923 e fracassou. Podemos, pois, respirar aliviados, e tratar do que realmente interessa ao homem em sua breve existência na Terra: a arte, que nos consola do sofrimento e da morte.
– Gostaria de poder falar do livro com que tão gentilmente me presenteou Herr Professor, mas devo confessar ao senhor que não o li. E não sei se conseguirei. A experiência de Munique tirou-me o gosto de continuar a estudar aqui.
– Mas o que o abalou tanto, Sr. Rondi?
– Herr Professor… Não leve a mal… Não sou alemão, não sei o que os judeus fizeram aqui para serem tão detestados… Só sinto medo por eles… Durante o comício, eu pouco a pouco esqueci que estava ali como um turista e comecei a sentir uma raiva misturada de impotência, uma espécie de inveja e ódio. E, de repente, sem me dar conta, eu quis gritar junto com eles: “Vitória! Salvação!”. Eu juro, nunca tive esses sentimentos. Mas ali, no meio daquela euforia, eu descobri, dentro de mim, um grão de loucura… Deve haver um grão de loucura dentro de todo mundo. E se Hitler tem o poder de fazê-lo germinar e crescer…
– Compreendo. O senhor pretende abandonar o curso?
– Já me decidi. Parto no próximo fim de semana.
– Foi muita gentileza o senhor ter se preocupado comigo. O senhor provavelmente tem razão. E ao voltar para casa procure terminar a leitura do livro que lhe dei.
– Claro Herr Professor…
– Quero que o leia e me escreva comentando. Tome meu cartão.
– Então, adeus, Herr Professor.
– Adeus, Sr. Rondi. E mais uma vez obrigado.

Os meses que se seguiram confirmaram as impressões pessimistas de Carlo Rondi, contrariando as apostas esperançosas do Professor Markus Epstein. A economia voltou a desarranjar-se, desempregando milhões de trabalhadores. O padrão de vida da classe média caiu vertiginosamente. Nas eleições de 1930, Hitler conseguiu um número tão expressivo de votos que converteu o Partido Nacional-Socialista no segundo partido político da Alemanha. Mas ainda esse ano Markus Epstein continuou lecionando. Agora, os que conseguiam trabalho só ganhavam o suficiente para continuar trabalhando – e isso já era considerado um privilégio. Quando o número de desempregados atingiu a casa dos seis milhões, todos sentiram que algo deveria acontecer – nem que fosse o Juízo Final. Nas eleições de julho, os nazistas conquistaram 13.700.000 votos.
E alguns meses depois, numa tarde fria de dezembro, Markus Epstein recebeu uma carta da Itália:

Roma, 23 de dezembro de 1933
Caro Professor Markus Epstein:
Não sei se o senhor ainda se lembra de mim. Fiz seu curso de Literatura há cinco anos. Eu ganhara uma bolsa da Universidade de Roma. E, imagine, agora sou professor dessa Universidade! Obtive o posto através de uma recomendação de meu tio Giuseppe Campedusa, que mantém boas relações com os dirigentes fascistas. Hesitei em aceitar o cargo, mas é preciso ganhar a vida…Como professor, terei bastante tempo para aprofundar-me no estudo da literatura alemã. A propósito, ainda não li aquele livro com que o senhor tão gentilmente presenteou-me. Espero agora tirar o atraso de tantas leituras que me pesam na consciência. O verdadeiro motivo desta carta, Prof. Markus, é a minha preocupação quanto ao seu destino na Alemanha. O senhor corre sérios riscos permanecendo nesse país. Se ainda não deixou a Alemanha por falta de ter para onde ir, saiba que pode contar comigo, aqui, em Roma.
Com todo o respeito,
Carlo Rondi.
Markus leu e releu a carta, tentando encontrar uma explicação para ela. Por que depois de um esquecimento de cinco anos um aluno estrangeiro se lembraria dele subitamente e ainda se preocuparia com sua sorte? Esse italiano não tinha um caráter sólido, mas ainda procurava, à sua maneira, fazer o bem. Isso Markus não encontrava à sua volta, onde todos pareciam ter se corrompido na prática cotidiana da maldade.

Markus sentia que o bem era tão raro no mundo quanto a beleza. Mas havia uma diferença: ninguém optava em ser feio ou bonito, e aqueles que nasciam bonitos tinham apenas tirado a sorte grande da natureza. Já o bem era uma escolha: todos podiam optar entre o bem e o mal. Por que a maioria optava pelo mal? Era isso o que Markus Epstein queria descobrir. Era a sua paixão pela verdade última das coisas que paralisava seus impulsos de fuga.
Como não se apegava aos bens materiais nem tinha compromissos familiares, podia, sem qualquer impedimento, empreender, por sua conta e risco, a investigação daquele mistério. Sem pena de si mesmo, Markus rasgou a carta e passou dormindo o resto do domingo, afogando no sono a sua depressão.

Na segunda-feira, Hitler tornou-se chanceler da Alemanha. Milhares de partidários desfilaram com tochas pelas ruas, cantando: “E quando o sangue judeu espirrar da ponta da faca, as coisas vão melhorar”. O rio de fogo passou pela rua em que Markus morava: eram como selvagens celebrando, com seus tambores, o triunfo da vida guerreira. Markus sentiu-se emparedado vivo. Era o último professor judeu a lecionar na Universidade.
Os colegas evitavam-no: assim que tentava aproximar-se de algum grupo, este se dispersava imediatamente. Quase não conseguia respirar. Menos de um mês depois, ouviu pelo rádio a notícia de que o Reichstag ardia em chamas. Os nazistas responsabilizavam os comunistas pelo atentado. As informações confusas soavam como uma ameaça. Os nazistas clamavam por vingança. Markus desligou o rádio, sentindo uma solidão tão grande que teve medo de morrer desse sentimento.

Lembrou-se de um velho companheiro, um professor de grego que certa vez o ajudara na tradução de um livro. Felizmente tinha guardado o número de Schmidt. Aquele homem bondoso haveria de ajudá-lo a superar esse momento de fraqueza. Markus não suportava mais a sensação de estar marcado, de ser olhado como um ser de outra espécie. Discou o número e aguardou o sinal. Do outro lado da linha ouviu, sem um traço de hesitação, calma e firme como um cumprimento de amizade, a voz calorosa de Schmidt:

Heil, Hitler!

Aquelas duas palavras soaram como uma trombeta do apocalipse. O aparelho que Markus segurava escorregou sozinho de suas mãos e caiu ao chão. O professor teve até medo de recolhê-lo, como se se tratasse de uma serpente venenosa. Até suas pernas fraquejaram. Markus Epstein soube, então, que já era tarde demais para obter qualquer solidariedade. Tentando refazer-se do choque, lembrou-se que seu aluno Felix Streicher contara-lhe uma vez que o nome de nascença de Hitler era Adolf Schicklgruber. Se ele, por motivos casuais, não tivesse herdado o sobrenome do avô, teria de ser saudado “Heil, Schicklgruber!” Ah, não, ele não teria chegado ao poder se continuasse a chamar-se Schicklgruber.
Então, também por causa de seu nome, Hitler tornara-se o líder da Alemanha! Quantas ironias do destino! Mais calmo, Markus pôs-se a arrumar seus livros nas estantes. O jovem Felix gostava tanto de ler, demonstrava tanta curiosidade pela vida, como poderia agora freqüentar aqueles bárbaros?

As aulas que preparava com tanto carinho não tinham mais importância, outros professores, os piores, contavam mais que ele. Suas exposições eram apenas sintomas, estudados com sadismo pelos alunos, que só cuidavam de observar aquela recente e curiosa doença chamada judaísmo, contra a qual estavam imunizados pelo privilégio de pertencer a uma suposta “raça superior”.
Os alunos sorriam quando reconheciam, nas torções de sua boca, no tamanho de seu nariz, na curvatura de suas pernas, afirmações do senso comum. Markus queria ser um alemão, pertencer a essa terra, mas já não o podia, porque ainda que amasse a língua alemã, pensasse e sentisse como um alemão, simplesmente não tinha nas veias o “sangue puro” que brotava das “fontes originais” dos pais fundadores da pátria.

Que tudo isso pudesse acontecer dentro de sua classe era o que mais abalava Markus. Os nazistas não precisaram invadir a Universidade para converter seus alunos. Ele vira, um a um, Franz, Marthe, Hubert, Clara e até Felix adotarem a doutrina de Hitler, quase como um desafio à sua autoridade. Era isso que mais doía em Markus: ver os rostos que amava tornando-se cada vez mais duros, lançando-lhe olhares cínicos e sorrisos irônicos. Justamente os seus alunos prediletos…
E ele, que pensava que talvez chegasse o momento em que fosse preciso lutar fisicamente contra o nazismo, quando o nazismo ameaçasse fisicamente os jovens que ele amava, agora já não pensava nada, desarmado antes da luta: aquele momento passara por ele como um fantasma que atravessa paredes, e se quisesse defender aqueles a quem amava, teria de destruir, em primeiro lugar, aqueles mesmos a quem amava…
Enquanto devaneava assim dentro da noite, Markus ouviu três pancadas na porta. Mais intrigado que receoso, abriu-a sem demora. Mas o que ele viu fez com que estacasse no umbral. Diante de si, surgiu o rosto loiro, doce, quase feminino, de Felix Streicher. Markus mal teve forças para perguntar por que, e já ouvia a resposta que esperava:

– Existem forças cegas agindo dentro de nós, que nos arrastam para direções que nós próprios desconhecemos. Sei agora porque antes eu o temia tanto. Sei agora que aquele temor era apenas a forma imatura de meu desprezo, porque o senhor, apesar de todo seu saber, não passa de um judeu. E eu, como alemão, já não preciso desperdiçar minha vida tentando saber mais que um judeu, porque minha raça é superior à sua, e nada mais preciso provar!

Por um momento, Markus permaneceu calado, tentando compreender. Finalmente, ergueu o rosto e disse em voz baixa, mais para si que para Felix, que o observava, muito tenso:

– Admiro sua sinceridade. O senhor foi, por algum tempo, a minha maior esperança. Talvez, se não me tivesse temido antes, não me desprezasse agora. Ou talvez, se eu tivesse percebido esse conflito que existia dentro do senhor e que o impedia de absorver o conhecimento que me esforçava por transmitir-lhe, teria eu lutado com outras armas e me dirigido aos seus instintos e não à sua razão. Foi assim que Hitler me venceu no meu próprio campo de batalha. Ele ganhou as mentes dos jovens dirigindo-se aos seus corações. E os senhores foram conquistados, corpo e alma, e agora pertencem à Alemanha!

Subitamente, o jovem sentiu de novo aquele temor que o dominava na presença do mestre. Mas reagindo ao irracional, e antes que fosse tarde demais, Felix, com seus companheiros da SA, conduziram Markus Epstein à prisão. Enquanto era arrastado pela tropa, Markus presenciava verdadeiros pesadelos concretizando-se nas ruas de Berlim. Estudantes nazistas gritavam: “Estamos cagando para a liberdade”, arrastando moças do Partido Comunista pelos cabelos. Um jovem que usava óculos foi agarrado e chamado de “porco judeu”. Como ele negasse ser judeu, um corpulento dirigente nazista voltou-se aos seus guardas, dizendo: “Então vamos dar um jeito nisso.
Você será circuncidado segundo a lei talmúdica”. E, tomando de uma faca, arrancou as calças do rapaz, imobilizado pelos guardas, e castrou-o ali mesmo, entre as gargalhadas da assistência. Mais adiante, um rabino era obrigado a passear pelas ruas de cuecas, com uma corda no pescoço à maneira de um urso amestrado.
Professores judeus lavavam as ruas de joelhos, esfregando-as com escovas de dente, sob o olhar zombeteiro da multidão. Markus entendeu que o propósito de Hitler era tornar o sofrimento burlesco, destruir a dignidade humana, obrigar os judeus a representar o papel de animais no circo de horrores em que transformava a Alemanha.

Markus passou uma semana na prisão. Quando voltou para casa, não encontrou seus livros, sua conta no banco fora bloqueada, estava destituído do cargo na Universidade. A partir de agora iria enfrentar de mãos vazias o cotidiano de um judeu na Alemanha nazista. E foram anos de humilhação, terror e privação crescentes. Quando as agressões psicológicas transformaram-se em agressões físicas, parecia que era esse o objetivo do regime. Mas logo as lojas dos judeus e suas sinagogas foram destruídas. Era o que Hitler queria? Não, ele não ficara absolutamente satisfeito. Bloqueou o acesso dos judeus a qualquer trabalho decente e confiscou seus bens. Obteve o que pretendia? Não mesmo. Obrigou os judeus a usar a estrela amarela e colocar o nome de “Saara” ou de “Israel” antes de seu verdadeiro nome nos documentos. Isso foi o bastante? Claro que não. Vetou a entrada de judeus em teatros, concertos, museus, clubes e piscinas, confinando-os em guetos. Era esse o objetivo? Que nada. Proibiu aos judeus a posse de objetos de ouro, pratarias, pedras preciosas, rádios, telefones. Ficou satisfeito? Não de todo. Impediu-os de reunirem-se, deportou-os, fuzilou-os. Contentou-se? Só um pouco. Passou então a exterminá-los em massa, sistematicamente, em câmaras de gás. E era isso, enfim, o que ele queria, desde o começo.
Para fazer o povo judeu desaparecer da face da Terra, Hitler o foi encurralando até que, de confisco em confisco, de decreto em decreto, de segregação em segregação, de fila em fila, de prisão em prisão, impediu-o simplesmente de mover-se no estreito matadouro que lhe foi preparado para o prometido golpe no coração.

Assim refletia, olhando para o número 134881 tatuado em seu braço esquerdo para arrancar seu nome, último vestígio de sua humanidade, o esqueleto vivo que antes fora o professor Markus Epstein. Longe dali, numa confortável poltrona de sua casa na Califórnia, Carlo Rondi aproveitava as férias do curso que ministrava na Universidade de Berkeley para colocar em dia suas leituras. Trouxera de Roma diversos caixotes de livros. Entre eles, encontrou um pequeno volume em alemão. Lembrou-se de que aquele livro fora-lhe dado, há muitos anos, por um professor judeu de Berlim. Como era mesmo o nome dele? Onde estaria agora?

Começou a ler o livrinho com a alegria de quem espera recuperar, por um momento, os dias felizes de sua juventude. Mas à medida que avançava no texto, uma sensação de angústia passou a dominá-lo quase fisicamente. Ele de fato recuperou uma lembrança, que estava enterrada no fundo de sua mente. Aquele livro lhe fora dado por Markus Epstein no dia em que Carlo contou-lhe sobre o mal-estar que sentira em Munique, durante um comício de Hitler. Nunca ouvira antes falar do autor daquele livro. Mas agora, terminada a leitura, parecia que jamais poderia esquecê-lo. A trama girava em torno de um indivíduo perseguido que, por uma magia da narrativa, transformava-se no símbolo de todo um povo e da própria humanidade. Ele chegou à última linha da novela com a respiração suspensa, o coração a saltar-lhe pela boca: “Como um cão!”.

Subitamente Carlo entendeu. Epstein lhe dera o livro de presente com um propósito. Era a sua mensagem, escrita por outras mãos, impressa na forma de um livro. Uma mensagem que Epstein fizera sua desde aquela época em que Carlo o tomara por um Luftmensch. E foi assim que a mensagem chegou até Carlo Rondi, naquela tarde fria de 1944, como um sussurro que conseguisse escapar dentre os mortos. Carlo tomou finalmente consciência de que era preciso fazer alguma coisa pelos judeus – agora, imediatamente, antes que fosse tarde demais! E permaneceu esticado na poltrona.

Markus Epstein sobreviveu ao extermínio. Por mero acaso, ainda que lutasse com todas as forças para não sucumbir ao frio, às doenças, à fome, às torturas, às experiências médicas, às seleções para a morte. Só não enlouqueceu porque tinha decidido ser um livro vivo. Sabia que o genocídio era possível desde que a propaganda tinha feito o seu trabalho, convencendo a todos de que os judeus eram vírus que precisavam ser combatidos como tal. Voluntariamente permaneceu na Alemanha enquanto seus conhecidos partiam para o exílio. Voluntariamente expôs-se ao mal absoluto. Sofrera como um cão: o nazismo passara sobre seu corpo como um tanque blindado. Mas ele sobrevivera e trazia consigo toda a memória da dor. Estava pronto para dar testemunho do abismo. Emigrado para os Estados Unidos, ele começou a escrever o livro que revelaria ao mundo o funcionamento dos campos de morte.

Em 1964, Markus Epstein liderava a campanha de protesto contra a energia atômica. Era o candidato favorito ao Prêmio Nobel da Paz. Sofrera dois atentados nos Estados Unidos e, a um jornalista que lhe perguntara por que continuava a arriscar sua vida, respondeu com outra pergunta: “E não é arriscado conviver com bombas nucleares?”. No trem, a caminho da Universidade de San Diego, percebeu que um homem gordo parecia encará-lo com uma expressão ansiosa. Depois de muita hesitação, o homem aproximou-se e disse:

– Professor Markus Epstein?
– Sim?
– Desculpe incomodá-lo… Mas… Fui seu aluno num curso de literatura alemã, em Berlim, no ano de 1928. Meu nome é Carlo Rondi.
– Carlo Rondi… Ah, creio que me lembro…
– Tenho sido um grande admirador de seu trabalho. Suas obras estão todas em minha biblioteca.
– Verdade?
– Sim, considero ‘O conglomerado’ uma obra-prima da filosofia política. Mas uma coisa eu sempre quis saber do senhor.
– O quê?
– Lembra-se daquele livro que me deu de presente, de um autor que ninguém conhecia ainda?
– Foi ‘O processo’, não?
– Por que me deu aquele livro antes de eu partir de Berlim? Eu não era um bom aluno. Houve algum motivo especial? Só o li em 1944. Mas fiquei impressionado, e desde então li tudo o que se escreveu sobre ele.
– Quando me aconselhou a fugir da Alemanha, era essa a coisa certa a fazer. Eu o teria feito, se quisesse salvar minha pele. Como o senhor sabe, muitos judeus ficaram na Alemanha por apego aos seus bens, às suas relações familiares; outros adivinharam a extensão da catástrofe e conseguiram escapar a tempo; outros quiseram fugir mas não tinham recursos ou não obtiveram vistos, pois poucos países mostraram-se dispostos a recebê-los. Posso dizer que meu caso foi singular, porque eu escolhi ficar mesmo podendo fugir e sabendo mais ou menos a que me arriscava. Quando li ‘Mein Kampf’, em 1928, se não me falha a memória, preparei-me para o pior. Quis a princípio fugir e organizei minha vida com esse fim. Mas logo a realidade ultrapassou em horror tudo o que eu podia imaginar. Percebi que minha vida não valia tanto, ou melhor, que ela teria um valor maior se fosse dedicada a um objetivo. E desde então o objetivo de minha vida tornou-se compreender a natureza do mal absoluto, mesmo ao custo da vida que eu estava disposto a sacrificar. Escolhi compartilhar o destino daqueles que iam morrer como cães. Se eu morresse, a verdade morreria comigo. Mas se eu sobrevivesse – havia essa remota possibilidade – eu teria muito que contar ao mundo. Dei aquele livro ao senhor como uma prova de que eu me dispunha a morrer como um cão nas mãos dos nazistas. Foi uma piada macabra.
– Que estranho… Não posso compreender…
– Eu estava louco. E ninguém pode compreender a loucura. E o senhor, que faz atualmente?
– Leciono literatura alemã em San Diego.
– Que coincidência! É para lá que me dirijo.
– É mesmo? Sabe, incluí Franz Kafka no meu programa deste semestre. O senhor não gostaria de assistir à minha aula?
– Desde que o senhor compareça à minha conferência sobre o desarmamento nuclear!
– Não a perderia por nada!

E o trem seguiu para San Diego, levando os dois viajantes que, por um momento, fora do tempo e do espaço, pareciam ter finalmente se encontrado.

[Imagem: Procissão de tochas em Berlim em 30 de janeiro de 1933, Arthur Kampf, Die Kunst im Dritten Reich, 1938.]

20 DE MAIO DE 2012

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Um comentário em “A EXPERIÊNCIA DE MUNIQUE”

25 jan 2010

APRESENTAÇÃO

[...] A experiência de Munique fora-me encomendado por uma grande editora como texto paradidático a ser usado em aulas de História sobre o período nazista. Recorri, para tanto, a diversas fontes, entre as quais A República de Weimar, de Lionel Richard; A vida cotidiana em Berlim no tempo de Hitler, de Jean Marabini; O último trem de Berlim, de Howard Smith; A última valsa em Viena, de George Clare; Minha luta, de Adolf Hitler; Eu fui chefe da policia de Mussolini, de Carmine Senise; Eu fui médico de Hitler, de Kurt Krueger; Por dentro do ‘Terceiro Reich’, de Albert Speer.
O personagem do professor é um amálgama de Primo Levi, Bruno Bettelheim, Victor Klemperer e Herbert Marcuse. Embora eu procurasse um tom didático, o conto foi recusado pelos editores, em três versões sucessivas, por o considerarem, mesmo depois das simplificações que tive de fazer, “acima do padrão da coleção”.
Foi publicado, em 2007, no primeiro número da revista eletrônica Arquivo Maaravi, do Núcleo de Estudos Judaicos da UFMG, coordenado por Lyslei Nascimento. [...]

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