"A verdade será sempre um escândalo". (In Adriano, M. Yourcenar)

"Quero imaginar sob que novos traços o despotismo poderia produzir-se no mundo... Depois de ter colhido em suas mãos poderosas cada indivíduo e de moldá-los a seu gosto, o soberno estende seus braços sobre toda a sociedade... Não quebra as vontades, mas as amolece, submete e dirige... Raramente força a agir, mas opõe-se sem cessar a que se aja; não destrói, impede que se nasça; não tiraniza, incomoda, oprime, extingue, abestalha e reduz enfim cada nação a não ser mais que um rebanho de animais tímidos, do qual o governo é o pastor. (...)
A imprensa é, por excelência, o instrumento democrático da liberdade."
Alexis de Tocqueville (1805-1859)



segunda-feira, 26 de novembro de 2012

INTELIGÊNCIA E VERDADE - PARTE 2

PARTE 2

2. Não existe inteligência artificial

Hoje em dia, quando se fala de "inteligência artificial", mais certo seria dizer pensamento artificial, ou talvez imaginação artificial, porque uma determinada sequência de pensamentos, um conjunto de operações da mente, pode ser imitado de várias maneiras. Um conjunto é imitado, por exemplo, na escrita. A escrita é uma imitação gráfica de sons, que por sua vez imitam idéias, que por sua vez imitam formas, funções e relações de coisas. A escrita foi a primeira forma de pensamento artificial. Toda e qualquer forma de registro que o homem use já é um tipo de pensamento artificial, uma vez que implica um código de conversões e permutações, e neste sentido um programa de computador não é muito diferente, por exemplo, de uma regra de jogo: como no jogo de xadrez, onde se concebe uma sequência de operações com muitas alternativas, cristalizadas num determinado esquema que pode ser imitado, repetido ou variado segundo um algoritmo básico. Existem muitas formas de pensamento artificial, ou de imaginação artificial. Porém a inteligência, propriamente dita, não tem como ser artificial. O pensamento artificial é essencialmente uma imitação de atos de pensamento segundo a fórmula das suas sequências e combinações. Do mesmo modo podemos imitar a imaginação e a memória, se em vez de utilizar uma correspondência biunívoca entre signo e significado recorrermos a uma rede de correspondências analógicas. Dá na mesma: em ambos os casos, trata-se de imitar um algoritmo, a fórmula de uma sequência ou rede de combinações, que por sua vez imitam as operações reais da mente. Acontece que a inteligência não é uma "operação da mente"; ela é o nome que damos a uma determinada qualidade do resultado dessas operações, pouco importando qual a faculdade que as realizou ou qual o código empregado. É legítimo dizer que um indivíduo inteligiu alguma coisa somente quando ele captou a verdade dessa coisa, seja pelo raciocínio, seja pela imaginação ou seja lá pelo caminho que for. Até mesmo o sentimento intelige, quando ama o que é verdadeiramente amável e odeia o que é verdadeiramente odioso: há uma inteligência do sentimento, como há uma burrice do sentimento. A inteligência não reside na mente, mas num certo tipo de relação entre o ato mental e o seu objeto, relação que denominamos "veracidade" do conteúdo desse ato mental ( notem bem: veracidade do conteúdo, e não do ato mesmo ).

Aqui alguém poderia objetar que, quando um ato de pensamento artificial chega a um resultado verdadeiro, por exemplo quando um computador nos assegura que 2 + 2 = 4, este é um ato de inteligência, uma vez que nos dá uma verdade. A diferença, aqui, é a seguinte: o computador não intelige que 2 + 2 = 4, mas apenas realiza as operações que dão por resultado 4, segundo um programa ou algoritmo pré-estabelecido. Se ele for programado segundo a regra de que 2 + 2 = 5, ele não somente dará sempre este resultado, mas ainda o generalizará para todos os casos similares, segundo a regra 2a + 2a = 5a. A inteligência não consiste somente em atinar com um resultado verdadeiro, mas em admitir esse resultado como verdadeiro. Que significa "admitir"? Significa, primeiro, estar livre para preferir um resultado falso ( um computador pode ser programado para preferir os resultados falsos num certo número de ocasiões, mas sempre segundo um padrão pré-estabelecido ). Significa, em segundo lugar, crer nesse resultado, isto é, assumir uma responsabilidade pessoal pela afirmação dele e pelas consequências que dele derivem. A inteligência, neste sentido, só é admissível em seres livres e responsáveis, e o primeiro ser livre e responsável que conhecemos na escala dos viventes é o homem: nenhum ser abaixo dele possui inteligência, e se há seres superiores ao homem é um problema que não nos interessa no momento e cuja solução não interferiria no que estamos examinando aqui. A inteligência é a relação que se estabelece entre o homem e a verdade, uma relação que só o homem tem com a verdade, e que só tem no momento em que intelige e admite a verdade, já que ele pode tornar-se ininteligente no instante seguinte, quando a esquece ou renega.

Neste sentido, o resultado da conta de 2 + 2 que aparece na tela do computador é uma verdade, mas uma verdade que está no objeto e não ainda na inteligência; essa verdade está na tela como a verdadeira estrutura mineralógica de uma pedra está na pedra ou como a verdadeira fisiologia do animal está no animal: são verdades latentes, que jazem na obscuridade do mundo objetivo aguardando o instante em que se atualizarão na inteligência humana. Do mesmo modo, podemos pensar uma idéia verdadeira sem nos darmos conta de que é verdadeira; neste caso, a verdade está no pensamento como a verdade da pedra está na pedra: o ato de inteligência só se cumpre no instante em que percebemos e admitimos essa verdade como verdade. A inteligência é, neste sentido, mais "interior" a nós do que o pensamento. O pensamento, para nós, pode ser objeto. A inteligência, não. O ato de reflexão pelo qual retornamos a um pensamento para examiná-lo ou julgá-lo é um outro pensamento, de conteúdo diferente do primeiro. Mas a recordação de um ato de inteligência é o mesmíssimo ato de inteligência, reforçado e revivificado, numa nova afirmação de si mesmo. Não posso recordar o conteúdo de um ato de intelecção sem inteligir novamente os mesmos conteúdos, quase sempre com redobrada força de evidência.

Se definirmos o pensamento artificial como a imitação, por sinais eletrônicos, de certos atos de pensamento, entenderemos que o pensamento artificial é pensamento, que a imitação de pensamento é pensamento, pois pensar, afinal, é apenas usar sinais ou signos para representar certos dados internos ou externos. Mas a imitação de inteligência não é inteligência, de vez que só há inteligência no ato real pelo qual um ente humano real apreende realmente uma verdade no instante em que a apreende; na imitação teríamos somente um sujeito hipotético apreendendo hipoteticamente uma hipotética verdade, cuja veracidade ele não pode afirmar senão hipoteticamente. Tudo isto seria apenas pensamento, não inteligência.

A inteligência somente se exerce perante uma situação real, concreta: o inteligir é concentrar o foco da atenção numa evidência presente. Não se confunde com o meramente pensar uma verdade, pois consiste em captar a verdade desse pensamento; nem se confunde com o perceber uma cor, uma forma, pois consiste em apreender a veracidade dessa cor ou dessa forma; nem com o recordar ou imaginar uma figura, pois consiste em assumir a veracidade dessa recordação ou imaginação. Por isto não é possível imitar um ato de inteligência, pois sua imitação não poderia ser outra coisa senão a cópia do pensamento, ou da recordação, ou da imagem que lhe serviu de canal; mas, se esta cópia fosse acompanhada da captação de sua veracidade, não seria uma cópia, e sim o ato mesmo, revivido em modo pleno; e, se desacompanhado dessa captação, seria cópia do pensamento ou da imaginação apenas, e não do ato de inteligência. E esse pensamento ou essa imaginação, se verdadeiros em seu conteúdo, teriam apenas a verdade de um objeto, a verdade latente de uma pedra ou de um cálculo exibido na tela do computador, aguardando ser iluminada pelo ato de inteligência que a transformaria em verdade atual, efetiva, conhecida.

Um computador só pode julgar veracidade ou falsidade dentro de certos parâmetros que já estejam no programa dele, ou seja, falsidade ou veracidade relativas a um código dado de antemão, código esse que pode ser inteiramente convencional. Isto é, ele não julga a veracidade, mas apenas a logicidade das conclusões, sem poder por si mesmo estabelecer premissas ou princípios. Ora, a logicidade, a rigor, nada tem a ver com a veracidade, pois é apenas uma relação entre proposições, e não a relação entre uma proposição e a experiência real. Quando digo experiência real, não me refiro apenas à experiência cotidiana dos cinco sentidos, mas ao campo total da experiência humana, onde a experiência científica feita através de aparelhos e submetida a medições rigorosas se encaixa apenas como uma modalidade entre uma infinidade de outras. A inteligência, quando julga veracidade ou falsidade, pode fazê-lo em termos absolutos e incondicionais, independentemente dos parâmetros usados e da referência a um ou outro campo determinado da experiência; e é justamente este conhecimento incondicional da verdade incondicional que pode fundar em seguida os parâmetros da condicionalidade ou relatividade, assim como legitimar filosoficamente as divisões de campos de experiência, como por exemplo na delimitação das esferas das várias ciências.

25 de novembro de 2012
Olavo de Carvalho

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