"A verdade será sempre um escândalo". (In Adriano, M. Yourcenar)

"Quero imaginar sob que novos traços o despotismo poderia produzir-se no mundo... Depois de ter colhido em suas mãos poderosas cada indivíduo e de moldá-los a seu gosto, o soberno estende seus braços sobre toda a sociedade... Não quebra as vontades, mas as amolece, submete e dirige... Raramente força a agir, mas opõe-se sem cessar a que se aja; não destrói, impede que se nasça; não tiraniza, incomoda, oprime, extingue, abestalha e reduz enfim cada nação a não ser mais que um rebanho de animais tímidos, do qual o governo é o pastor. (...)
A imprensa é, por excelência, o instrumento democrático da liberdade."
Alexis de Tocqueville (1805-1859)



domingo, 16 de dezembro de 2012

DÂNDIS E MALABARISTAS DA POLÍTICA

 

O convívio intenso e longo com o poder tem um poderoso efeito narcotizante. Transforma pessoas simples e humildes, gente com histórias iguais a de seus semelhantes, em “deuses” de um Olimpo.A figura dos “olimpianos”, vale lembrar, foi emoldurada pelo sociólogo francês, Edgar Morin (Cultura de Massas no Século XX). Agrupa as celebridades das esferas das artes, do lazer, da cultura e da política, como artistas, músicos, reis, rainhas e princesas.
 
Nas últimas décadas, o habitat das celebridades se expandiu na esteira do Estado circense, onde os atores políticos se engalfinham na luta por maior visibilidade. Ao verem holofotes midiáticos correm em sua direção, na perspectiva de ganhar espaço e adornar a imagem.
 
E assim, os palcos da representação política se transformam em espelhos de Narciso, jogando os seus participantes na armadilha do falso retrato, da autocontemplação. Os homens públicos, daqui e d’alhures, acabam afixados à moldura narcisista.
 
Como conta a lenda, Narciso foi condenado pelos deuses a se apaixonar pela própria imagem. Tomou-se de amores pela imagem quando se contemplava nas águas transparentes de uma fonte. Obcecado pelo reflexo, Narciso não mais se afastava da fonte, definhando ali até a morte.
 
Hoje, ele se refestela na fosforescência do Estado-Midiático. Como lembra Roger-Gérard Schwartzenberg, em seu clássico O Estado-Espetáculo, os profissionais do espetáculo e da política compartilham frequentemente as mesmas atitudes e os mesmos vezos, como se, diante de problemas de representação comparáveis, “reagissem recorrendo a procedimentos análogos.”
 
O Brasil está recheado de narcisistas, pessoas fascinadas pelo seu próprio brilho, um brilho ilusório, porque muitas perderam o poder, mas não o orgulho.
 
Que tipo de mal os narcisistas cometem contra si mesmos e contra a sociedade? O maior dos males é o da inação, o da inércia, o da perda do sentido de realidade. Presos no simulacro do poder, exibem um prestígio falso, que frequentemente conduz ao ócio.
 
Aliás, praestigium, do latim, significa nada mais nada menos que artifício, ilusão, malabarismo. Os malabaristas da política promovem a mistificação das massas, fazendo-as crer que o discurso é a ação, o verbo é a obra, a palavra é sinônimo de verdade.
 
Muitos se transformam em dândis, com seu prazer em surpreender, espantar. O mestre Baudelaire dizia: “creio que existe na ação política certa dose de provocação, por ser preciso suscitar uma reação”.
 
O dândi quer chamar a atenção, provocar, criar impacto. E, não raro, cai no exagero, fazendo da estética sua ação política mais forte. É useiro e vezeiro na arte do exagero. O dandismo é chegado à verborragia. Por isso, seus cultores são também conhecidos por exagerar na expressão.
 
Ademais, a cultura oral é uma das tradições mais ricas de nosso país, como demonstra a mais fecunda e abrangente obra sobre a cultura popular brasileira, do incomparável Luís da Câmara Cascudo, um patrimônio do Rio Grande do Norte.
 
A tradição de oralidade penetrou profundamente nas veias, mentes e corações da representação política, a ponto de se atribuir, por muito tempo, a grandeza dos homens públicos não aos projetos e feitos empreendidos, mas ao domínio do verbo no palanque ou na tribuna parlamentar.
 
Duas historinhas mostram os polos do discurso tradicional da política. A primeira é a do baiano, embevecido com a retórica complicada de seu candidato em comício numa pequena cidade interiorana. Não se cansou de bater palmas, concluindo categórico: “não entendi nada do que o homem falou, mas falou bonito; vai levar meu voto”.
 
A segunda historinha é a do candidato, que, arrebatado, enérgico, espumando de civismo, discorria sobre o sentido da liberdade. Argumentava que um povo livre sabe escolher os seus caminhos, seus governantes, eleger os seus vereadores, prefeitos e deputados. Para entusiasmar a multidão, levou um passarinho numa gaiola, que deveria ser solto no clímax do discurso.
 
No momento certo, tirou o passarinho da gaiola, e com ele na mão direita, jogou o verbo: “a liberdade é o sonho do homem, o desejo de construir seu espaço, sua vida, com orgulho, sem subserviência, sem opressão; Deus (citar Deus é sempre bom) nos deu a liberdade para fazermos dela o instrumento de nossa dignidade; quero que todos vocês, hoje, aqui e agora, comprometam-se com o ideal do homem livre. Para simbolizar esse compromisso, vamos aplaudir soltar esse passarinho, que vai ganhar o céu da liberdade”.
 
Ao abrir a mão, esmagara o passarinho. A frustração por ter matado o bichinho acabou com a euforia e as vaias substituíram os aplausos. Foi um desastre. É sempre assim quando não se controla a emoção. Em se tratando do discurso político, a emoção mata frequentemente a razão.
 
Juntando-se, então, o narcisista e o demagogo, o verborrágico e o reizinho cheio de empáfia, chega-se à receita do perfil que ainda teima em se apresentar às massas nacionais.
 
É o encontro do ruim com o pior, de Narciso com aquela figura canhestra – Justo Veríssimo - tão bem caracterizada pelo inesquecível Chico Anísio.
 
E quando isso ocorre, a política volta a ser aquilo que Paul Valéry mais temia: “a arte de impedir que as pessoas cuidem do que lhes dizem respeito”. Nesses tempos de grande influência da mídia, é bom ter cuidado, porque a espetacularização da política pode significar a ruína dos atores.
 
Não enganam mais como antigamente; são pegos quando escondem o lixo debaixo do tapete; e flagrados quando a maquiagem procura disfarçar a deficiência do pensamento. Como mostram esses tempos de denúncias e escândalos.
 
Neste apagar de luzes de 2012, reflitamos sobre o exercício da representação coletiva. Muito cuidado com os efeitos mágicos do Estado-Espetáculo. Luis XIV costumava lembrar que “os povos gostam do espetáculo; através dele, dominamos seu espírito e seu coração”.
 
Mas há um limite para tudo. Um dia, mais cedo ou mais tarde, o povo, cansado de ver tanto malabarismo, fará a mágica que nenhum representante gostaria de ver: mandá-lo de volta para sua casa sem o passaporte do mandato popular.

16 de dezembro de 2012
Gaudêncio Torquato, jornalista, professor titular da USP, consultor político e de comunicação

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