"A verdade será sempre um escândalo". (In Adriano, M. Yourcenar)

"Quero imaginar sob que novos traços o despotismo poderia produzir-se no mundo... Depois de ter colhido em suas mãos poderosas cada indivíduo e de moldá-los a seu gosto, o soberno estende seus braços sobre toda a sociedade... Não quebra as vontades, mas as amolece, submete e dirige... Raramente força a agir, mas opõe-se sem cessar a que se aja; não destrói, impede que se nasça; não tiraniza, incomoda, oprime, extingue, abestalha e reduz enfim cada nação a não ser mais que um rebanho de animais tímidos, do qual o governo é o pastor. (...)
A imprensa é, por excelência, o instrumento democrático da liberdade."
Alexis de Tocqueville (1805-1859)



domingo, 16 de dezembro de 2012

O STF DEVE SE LEMBRAR DE ADAUTO LÚCIO CARDOSO

 

Se não prevalecerem as almas de bom-senso, o Supremo Tribunal Federal irá para um conflito de poderes com o Congresso por causa dos mensaleiros condenados pela Corte. Por quatro votos contra quatro, está empatada a votação que poderá determinar a cassação dos mandatos de parlamentares delinquentes. O desempate virá do ministro Celso de Mello.
Os juízes do Supremo são os guardiães da Constituição e suas decisões projetam-se sobre o funcionamento das instituições. Se a votação está empatada, é porque a Corte dividiu-se quanto ao nó da questão: o mandato dos mensaleiros é deles ou encarna a vontade de seus eleitores?

Se é deles, uma vez condenados pelo Judiciário, é razoável que o percam, como perderia o emprego um motorista. Se o mandato é dos eleitores, paciência, a decisão é do Legislativo. Essa posição foi serenamente exposta pela ministra Rosa Weber.

Uma trapaça da História jogou em cima do ministro Celso de Mello a questão maior. Seu voto decidirá se o Judiciário pode cassar mandatos a partir de condenações criminais.

Interpretando a legislação da ditadura, o STF mandou para a cadeia o deputado Francisco Pinto por ter chamado o general Augusto Pinochet de ditador. Apequenou-se. Já o Congresso foi fechado em duas ocasiões porque defendeu a sua prerrogativa de julgar parlamentares. Engrandeceu-se.

Hoje, o Supremo está na gloriosa situação que Luiz de Camões chamou de “outro valor mais alto (que) se alevanta”. Fez o que muita gente gostaria que se fizesse e esperava por isso há tempo.

Mesmo assim, a poética camoniana pode ser tóxica para as instituições. Os três Poderes da República são independentes. O Judiciário condena, mas quem cassa é o Congresso. Se o Supremo decidir que os mensaleiros devem perder o mandato, cria-se um desequilíbrio entre os Poderes da República que só tem a ver com as delinquências dos mensaleiros num aspecto pontual.

Estabelece-se uma norma: 11 magistrados escolhidos monocraticamente pelo presidente da República podem cassar mandatos de parlamentares eleitos pelo povo. Essa responsabilidade é temerária e excessiva.

Hoje, se um larápio continua na Câmara ou no Senado, a responsabilidade é do Legislativo. Amanhã, outro Supremo poderá encarcerar outro Chico Pinto.

Ressalvada a diferença entre o regime democrático de hoje e a ditadura envergonhada do governo do marechal Castello Branco, vale relembrar um episódio no qual havia um poder mais alto alevantado.
Em 1966, mesmo tendo garantido que não cassaria mandatos de parlamentares, o Executivo passou a faca em seis deputados.
O presidente da Câmara, Adauto Lúcio Cardoso, recusou-se a aceitar a decisão. Ele não era maluco, era apenas um liberal valente. Enfrentara a esquerda no governo João Goulart e apanhara da polícia de Carlos Lacerda defendendo-a.

O marechal chamou a tropa e Adauto teve o seguinte diálogo com o coronel Meira Mattos, que comandou o sítio:
“Estou admirado de vê-lo aqui, coronel, não para cumprir um decreto, para o cerco ao Congresso”.
“E eu, admirado por sua atitude antirrevolucionária”, respondeu Meira Mattos.
“Eu sou, antes de mais nada, um servidor do poder civil”.
“E eu, deputado, um servidor do poder militar”.

Mais tarde, Castello nomeou Adauto para o Supremo Tribunal e lá ele abandonou a Corte quando seus pares legitimaram a censura à imprensa.

O Poder Judiciário de hoje nada tem a ver com o poder revolucionário do coronel. Sua tropa é a da opinião pública. Hoje, como em 1966, o que está em questão é a independência do Congresso, em cuja defesa Adauto foi a um extremo simbólico. Ele sabia que os seis deputados estavam fritos.
Se a decisão de cassar os mensaleiros ficar com a Câmara, é quase certo que eles perderão os mandatos.

Admita-se, contudo, que isso não aconteça. Dois ministros levantaram essa hipótese. Gilmar Mendes expôs o absurdo que seria a situação de um deputado ter mandato com hora para se apresentar na cadeia.

Joaquim Barbosa foi a um paralelo: “Na vida política dos Estados Unidos, essa discussão sequer chega a ocorrer. Um parlamentar envolvido em crimes tão graves como esses renuncia imediatamente, não permanece na Câmara à espera de uma proteção”.

Barbosa acertou quanto aos costumes, mas a Constituição americana não dá ao Judiciário o poder de cassar mandatos. É comum que os mensaleiros americanos renunciem para não serem expelidos pelas Casas legislativas.

Contudo, indo-se ao cenário extremo do caso brasileiro, nos Estados Unidos ocorre o contrário. Três deputados condenados mantiveram-se nos mandatos. Dois foram reeleitos enquanto estavam na cadeia. O terceiro, Jay Kim, em 1998, foi condenado a um ano de prisão domiciliar por ter embolsado US$ 250 mil pelo caixa dois. Como era deputado, o juiz colocou-lhe uma pulseira eletrônica no tornozelo e ele só podia sair de casa para ir ao Congresso. Foi cassado pelos eleitores, nas prévias de seu partido.

16 de dezembro de 2012
Elio Gaspari, O Globo
 

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