"A verdade será sempre um escândalo". (In Adriano, M. Yourcenar)

"Quero imaginar sob que novos traços o despotismo poderia produzir-se no mundo... Depois de ter colhido em suas mãos poderosas cada indivíduo e de moldá-los a seu gosto, o soberno estende seus braços sobre toda a sociedade... Não quebra as vontades, mas as amolece, submete e dirige... Raramente força a agir, mas opõe-se sem cessar a que se aja; não destrói, impede que se nasça; não tiraniza, incomoda, oprime, extingue, abestalha e reduz enfim cada nação a não ser mais que um rebanho de animais tímidos, do qual o governo é o pastor. (...)
A imprensa é, por excelência, o instrumento democrático da liberdade."
Alexis de Tocqueville (1805-1859)



segunda-feira, 12 de setembro de 2011

DEZ PRINCÍPIOS DE ECONOMIA POLÍTICA (PARTE 3)

Em artigos anteriores (veja aqui e aqui), listei dez princípios que me parecem razoavelmente consensuais na literatura de economia política e tratei dos sete primeiros deles de forma um pouco mais aprofundada. Neste terceiro e último artigo da série, tecerei algumas considerações sobre os três últimos princípios.

Os três princípios que serão tratados neste artigo versam sobre organizações – i.e., grupos de indivíduos estruturados por meio de normas, hierarquias, rotinas e orçamentos. Uma vez incorporados, esses princípios permitirão aos analistas de economia política responder por que algumas organizações são mais eficientes (ou eficazes) do que outras na consecução dos objetivos ou propósitos que motivaram a sua constituição. Em outras palavras, quais estruturas internas e externas à organização mais favorecem a identificação de problemas, a elaboração de alternativas de ação, a decisão sobre o que fazer e como estimular a cooperação e a coordenação das ações dos diversos indivíduos envolvidos na ação coletiva. Vamos a eles.

8. “a qualidade das decisões políticas e a eficiência das regulações da economia dependem: (a) do controle independente exercido “de fora” sobre os agentes públicos; (b) da prevalência do mérito individual como elemento estruturador das organizações públicas; e (c) da prevalência de regras universais e relativamente estáveis aplicáveis ao funcionamento dessas agências”

As decisões políticas ou públicas são tomadas por órgãos ou agências do estado. Tais agências constituem um tipo muito particular de organização, uma vez que seus membros são nomeados por processos qualitativamente diferentes daqueles que tendem a prevalecer em suas congêneres privadas – empresas, associações civis (ONG’s, associações de interesses, igrejas e mesmo sindicatos – estes últimos sendo normalmente casos intermediários entre organizações públicas e privadas).

Decisões públicas (i) criam e reformam instituições – leis, normas, regulamentos e regras de conduta aplicáveis a toda a sociedade (e.g., a Constituição), a uma parte desta (e.g., o Código Florestal ou a regulação do setor elétrico) ou aos indivíduos que integram as próprias organizações públicas (e.g., o código de ética do servidor público); (ii) estabelecem prioridades e estratégias de ação para as agências públicas (políticas públicas); (iii) definem e manipulam orçamentos; e (iv) organizam os processos de nomeação de integrantes (políticos, funcionários, etc.), divisão do trabalho entre eles, ascensão hierárquica, remuneração e demissão.

Pois bem, o princípio 8 estabelece que tais decisões serão tanto mais favoráveis ao estabelecimento de um quadro regulatório condizente com a necessidade de estimular o crescimento da produtividade em toda a sociedade [princípio 6] e no âmbito das próprias agências governamentais quanto mais efetivo for o controle externo do funcionamento das agências públicas – nos termos do item iv do parágrafo anterior. O estabelecimento do mérito e de regras universais e relativamente estáveis como princípios básicos para a estruturação e o funcionamento do estado funciona como um anteparo à vigência de qualquer forma de particularismo no âmbito do estado. Minimizar ou eliminar o peso dos interesses particulares (dos agentes públicos e/ou de agentes privados com acesso privilegiado a eles) é essencial para que as decisões reflitam interesses gerais do conjunto (complexo) da sociedade.

9. “organizações submetidas à concorrência são mais estimuladas a buscar ganhos de produtividade que organizações monopolistas”

A concorrência é uma das expressões da liberdade econômica mais importantes para a dinâmica da economia. Um novo concorrente normalmente implica um crescimento do volume e da diversidade do que é ofertado na economia. Mais e melhores fornecedores tendem a elevar as opções do conjunto dos consumidores, famílias e empresas, o que traz o potencial de aumento do bem-estar, da poupança, do investimento e do emprego na sociedade.

A concorrência também é um fator positivo para provocar aumentos da eficiência de indivíduos e empresas uma vez que implica no risco de perder espaço para outros mais produtivos. Este é, particularmente, o sentido do Princípio 9. Sejam públicas ou privadas, organizações submetidas à concorrência são impulsionadas pelo risco de “perder mercado” a refletir sobre e a implementar estruturas e processos de gestão que aumentam o rendimento final por insumo empregado. Não se trata de uma garantia, afinal, abundam exemplos de empresas privadas que sucumbem diante da concorrência justamente porque incapazes de perseguir estratégias consistentes de elevação da produtividade.

Mesmo impondo esse risco de falência às organizações incapazes de se reestruturarem a tempo de igualar os níveis de eficiência das rivais mais dinâmicas, a concorrência é um estímulo fundamental (e inigualável) para ações voltadas à economia de recursos escassos.

Um enorme desafio, muitas vezes intransponível, é justamente como impor concorrência a organizações públicas ou estatais. Muitas vezes, essas agências desempenham funções essenciais para a economia – no que esta exige de ordem e estabilidade, por um lado, e de dinamismo, de outro – e simplesmente não parece haver alternativa à provisão por um monopolista. É o caso das garantias ao direito de propriedade, por exemplo, por meio das funções de polícia, Justiça e segurança nacional, que são sempre exercidas por agências estatais monopolistas. Da mesma forma, a estabilidade do valor da moeda nacional (meio de troca que viabiliza baixos custos aos negócios privados entre os cidadãos) requer o exercício monopolístico de funções estatais indelegáveis, como a determinação da taxa de juros e o equilíbrio entre receitas e despesas governamentais.

Afora casos semelhantes, muitas funções comumente exercidas de modo monopolista por agência estatais poderiam vir a ser (ao menos parcialmente) servidas por meio de agências não-estatais, com ganhos potencialmente elevados em termos de volume e diversidade da oferta. É o caso de serviços de infraestrutura, saúde, educação e formação profissional, seguridade social, etc.

Diante da ausência da possibilidade de estimular o aparecimento de concorrentes às agências estatais, parece-me válido dizer que será necessário tolerar algum grau de ineficiência na provisão de seus serviços. Esse fato deve, portanto, reforçar a importância do que se expôs especialmente no Princípio 8, acima. Em todos os demais casos, a busca de maneiras de elevar a provisão não-estatal de funções e serviços públicos – por empresas voltadas para o lucro ou por organizações civis não-lucrativas (ONGs, igrejas, associações de moradores, etc.) motivadas pela ampliação do acesso a serviços públicos em comunidades específicas – deve ser incentivada e seus resultados analisados com os das agências estatais a fim de provocar a ampliação do volume e da diversidade do que é ofertado.

10. “planejamento é mecanismo necessário para tomar e implementar decisões, mas não garante o sucesso das mesmas”

Como compreende qualquer estudioso da administração de empresas, liberdade econômica e planejamento não são incompatíveis, muito pelo contrário. Para crescer e eleger estratégias consistentes e inovadoras de atuação, assim como para desenvolver produtos novos, as empresas precisam estruturar fluxos de informação e de análise de dados; selecionar, testar e implementar soluções tecnológicas e gerenciais; avaliar e reformar modelos de concorrência e cooperação com outras empresas. Isso tudo compõe o que se convenciona chamar de “planejamento”.

Como já identificou o economista norte-americano Ronald Coase, nos anos 1930, a própria existência das firmas é sinal inquestionável de que podem haver ganhos de eficiência não desprezíveis em modelos de gestão baseados em hierarquia e contratos de longa duração – duas características aparentemente distorsivas da “lógica de mercado”. Pois bem, “planejar a produção” é um requisito para minimizar eventuais ineficiências derivadas dessa lógica hierarquizada e de longo prazo da produção no âmbito das firmas.

Não há qualquer diferença entre as empresas privadas e uma organização estatal qualquer no que diz respeito aos fatores que tornam desejáveis os ganhos de eficiência gerados pelo planejamento interno de suas atividades. Assim, em ambas é primordial criar bons incentivos ao trabalho árduo e criativo, o que se obtém por meio da adoção de modelos testados e comprovados de gestão de informações, pessoas e processos com vistas a economizar recursos escassos e maximizar o atingimento das metas.

Mas que fique bem claro: o planejamento interno das organizações (estatais ou não) não assegura resultados! As tarefas básicas dos planejadores, adoção e reforma dos modelos gerenciais, são desempenhadas sob informação imperfeita, envolvem conflito entre interesses e visões de mundo distintas, e visam atingir resultados para um mundo em transformação (como se se tratasse de um “alvo móvel”). O fato de que haja firmas que vão à falência e agências estatais que servem de maneira ineficiente suas funções indica que planejamento não implica sucesso.

Se não é intrinsecamente incompatível com a estrutura e o funcionamento das organizações, o planejamento passa a ser um entrave fundamental à promoção da eficiência das agências (públicas ou privadas) quando é deslocado para um nível distante daquele em que são colhidas as informações mais sensíveis para o sucesso da gestão. Em outras palavras, os gestores diretos das organizações são aqueles que estão melhor posicionados para colher e analisar informações, transformá-las em estratégias para reformar os incentivos ao trabalho e os processos de produção e implementá-las. Se eles não o fizerem – ou o fizerem mal – as chances de sucesso do planejamento caem ainda mais se a função de planejar for transferida para um nível mais elevado de administração, distante do problema concreto.

A explicação disto foi-nos oferecida pelo mesmo Coase – o rigor da concorrência é sentido apenas pelos gestores dos processos (e das firmas) sob concorrência direta. Uma obviedade! Mas uma que faz toda a diferença para explicar os riscos e as drásticas consequências negativas das iniciativas de “planejar toda a economia” a partir de um conjunto de agências estatais (que não sofrem concorrência) muito distantes do âmbito em que são colhidas informações sensíveis e implementadas as regras e estratégias que organizam a produção – seja em firmas privadas ou não.

É por esta razão que a defesa da liberdade de concorrer com os produtores já estabelecidos (independentemente da nacionalidade de um e de outro) é uma força que promove bons incentivos à eficiência, à poupança, ao investimento, ao emprego e à inovação no território de qualquer país. Ou seja, à prosperidade!

9 de setembro de 2011
Carlos Pio é doutor em Ciência Política, professor do Instituto de Relações Internacionais da Universidade de Brasília, Professor Titular do Instituto Rio Branco e autor do livro Relações Internacionais – economia política e globalização (Brasília, Funag/Ibri, 2001).

Nenhum comentário:

Postar um comentário