"A verdade será sempre um escândalo". (In Adriano, M. Yourcenar)

"Quero imaginar sob que novos traços o despotismo poderia produzir-se no mundo... Depois de ter colhido em suas mãos poderosas cada indivíduo e de moldá-los a seu gosto, o soberno estende seus braços sobre toda a sociedade... Não quebra as vontades, mas as amolece, submete e dirige... Raramente força a agir, mas opõe-se sem cessar a que se aja; não destrói, impede que se nasça; não tiraniza, incomoda, oprime, extingue, abestalha e reduz enfim cada nação a não ser mais que um rebanho de animais tímidos, do qual o governo é o pastor. (...)
A imprensa é, por excelência, o instrumento democrático da liberdade."
Alexis de Tocqueville (1805-1859)



segunda-feira, 12 de setembro de 2011

PONTO DE CHEGADA

"No transcurso de sua existência, o ser humano só possui uma certeza: a da morte. Por silogismo, é fácil deduzir o desejo inconsciente de morte metaforicamente contido em toda busca de certeza." (Pierre Rey)

O liberalismo clássico rejeita utopias. Ele rejeita dogmas. Uma das premissas mais básicas de um liberal é que o mundo é um lugar complexo demais para ser compreendido por modelos simplistas. Seres imperfeitos não são capazes de produzir sistemas perfeitos. Falíveis e com razão limitada, os homens precisam tatear com certa humildade temas delicados, tais como a ética e a justiça, abandonando qualquer meta mais ambiciosa de construir uma sociedade “plenamente” livre ou justa.

Nunca vai existir algo parecido com um “paraíso terrestre” onde um ambiente de liberdade “plena” seja real. Sequer seria possível definir de forma racional e irredutível o que é uma liberdade plena. Visões conflitantes sobre isso poderiam ser igualmente razoáveis. Liberais, portanto, rejeitam a tentativa de monopolizar os fins nobres, como se apenas um único destino final fosse compatível com a “verdadeira” noção de liberdade. A existência de visões conflitantes sobre a própria liberdade faz parte da doutrina liberal.

A causa liberal consiste, então, numa luta contínua pelo máximo de liberdade individual possível, que jamais será total. Viver em sociedade é abrir mão de parte das liberdades, aceitando divergências inclusive sobre certos valores e princípios. Liberais não pensam ter encontrado uma “pedra filosofal”, um princípio absoluto que seja capaz de fornecer respostas em quaisquer circunstâncias. Ainda que respeitem conceitos como o “direito natural”, os liberais não costumam ignorar a utilidade de suas crenças. De nada vale pregar a “liberdade” dentro de um Gulag. Os fins podem não justificar os meios, mas os resultados importam.

O rancho de Galt, na novela “A Revolta de Atlas”, de Ayn Rand, só pode ser criado no mundo da ficção. Sua existência e sobrevivência dependem da condição de que todos os habitantes compartilhem o mesmo princípio. É como nas comunidades hippies de “paz e amor”: ignora-se o que acontece quando alguém, de dentro ou de fora, discorda do estilo de vida das pombas, e decide ser um gavião. As pombas acabam devoradas.

No rancho, os empresários que compartilhavam os mesmos princípios libertários abandonaram o mundo e buscaram refúgio, isolados do restante. Todos ali dividiam os mesmos ideais, respeitavam voluntariamente o mesmo princípio. Era um paraíso de inúmeras figuras praticamente iguais à própria Ayn Rand. Narciso acha feio o que não é espelho.

Mas, no mundo real, precisamos conviver com pessoas que não compartilham os mesmos ideais, ou até os mesmos valores. A postura mais arrogante – e intolerante – é aquela que trata essas divergências como fruto da pura alienação ou má-fé, e que acha que a liberdade é necessária apenas como um meio para que todos possam, finalmente, chegar às mesmas conclusões e abraçar o mesmo ideal de mundo. A liberdade, para estes, nada mais é do que o instrumento para que um consenso possa ser formado; o consenso que convirja para o que eu acredito, naturalmente. Divergências costumam ser motivo para brigas feias, pois são todos “inimigos da liberdade”.

Outra postura possível diante do problema, aquela que considero mais alinhada com o liberalismo clássico, é respeitar as diferenças inclusive sobre o que seria uma sociedade livre, dentro de certas fronteiras. Claro que isso não é o mesmo que aderir ao relativismo total, que rejeita qualquer possibilidade de conhecimento objetivo. Tampouco é sinônimo de flexibilizar tanto o liberalismo a ponto de ele perder qualquer sentido lógico. É apenas negar a possibilidade de certezas sobre algo tão complexo. Parece evidente que o socialismo jamais será visto como compatível com qualquer concepção de sociedade livre. O mesmo vale para o nazismo e o fascismo. Mas existem regiões mais cinzentas que os liberais não são capazes de evitar.

Deixa de ser livre uma sociedade que impede o discurso racista que incita o ódio e a violência contra minorias étnicas? O direito de propriedade privada pode ser claramente prejudicado nesse caso, mas como fica o direito destas minorias, na prática, sem tal impedimento? Uma sociedade que proíbe um partido nazista perde seu status de liberal por conta disso? A legalização de drogas pesadas como o crack, com rápida capacidade de vício, representa necessariamente uma bandeira liberal, independentemente dos seus resultados práticos? Qualquer um pode portar a arma que desejar, com base no direito de propriedade privada? Imposto é sempre roubo e, portanto, incompatível com a liberdade? Permitir o aborto é uma postura liberal? A propriedade intelectual é incompatível com a liberdade individual, ou, ao contrário, necessária para garanti-la?

Enfim, podemos pensar em inúmeros exemplos onde visões da liberdade conflitam, e não há resposta simples para decidir qual partido tomar. Ambos os lados podem ser razoáveis e racionais. Diante de questões tão complexas, o liberal terá a humildade para evitar posturas radicais e intransigentes. O menos razoável talvez seja responder enfaticamente essas perguntas, como se fosse algo muito simples e evidente. Não é.

O liberal não pretende posar como o dono da razão. Ele sabe que esta pode levar a caminhos diferentes ou mesmo conflitantes, sem solução aparente. O que o liberal vai defender, nestas ocasiões, são “soluções” imperfeitas. O debate aberto e civilizado, a democracia, ainda que carregada de riscos de abusos, a convivência pacífica entre as visões discordantes. O liberal não precisa enxergar como um inimigo aquele que adota visões diferentes sobre a própria liberdade, desde que suas liberdades individuais mais básicas não estejam ameaçadas. À exceção destes casos extremos e evidentes, onde basta bom senso, há toda uma zona nebulosa, em que parece legítimo discordar. O pluralismo é uma bandeira liberal.

Em suma, o liberal não prega e não acredita num ponto de chegada, no destino final de uma sociedade perfeitamente livre. Ele está mais preocupado com o caminho, com o processo inesgotável de busca por melhorias e por mais liberdade, mas sempre sob a restrição de que nossa razão é falível e limitada para fornecer todas as respostas. Nos termos de Karl Popper, o liberalismo é uma “grande sociedade aberta” permanentemente em construção, que não negocia com seus princípios mais básicos, mas que tolera divergências razoáveis com a mente aberta. O liberal está ciente de que o melhor lugar para as utopias e as ideologias intransigentes é a lata do lixo.

11 de setembro de 2011
Rodrigo Constantino é economista pela PUC-Rio, com MBA de Finanças pelo IBMEC. Trabalha no mercado financeiro desde 1997. É articulista e autor de diversos livros, dentre os quais o novo Uma Luz na Escuridão - As idéias de Grandes Pensadores da Humanidade.

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