"A verdade será sempre um escândalo". (In Adriano, M. Yourcenar)

"Quero imaginar sob que novos traços o despotismo poderia produzir-se no mundo... Depois de ter colhido em suas mãos poderosas cada indivíduo e de moldá-los a seu gosto, o soberno estende seus braços sobre toda a sociedade... Não quebra as vontades, mas as amolece, submete e dirige... Raramente força a agir, mas opõe-se sem cessar a que se aja; não destrói, impede que se nasça; não tiraniza, incomoda, oprime, extingue, abestalha e reduz enfim cada nação a não ser mais que um rebanho de animais tímidos, do qual o governo é o pastor. (...)
A imprensa é, por excelência, o instrumento democrático da liberdade."
Alexis de Tocqueville (1805-1859)



quarta-feira, 21 de setembro de 2011

UM MODELO DE COTAS

Escrevo este artigo na condição de advogada voluntária de partidos políticos perante o STF em razão de não conseguir ficar inerte diante da política de cotas raciais no Brasil.

A política de cotas raciais foi criada nos Estados Unidos pelo então presidente Nixon. Republicano, racista e conservador, Nixon realmente não se enquadrava como legítimo representante dos anseios de qualquer minoria. O que motivou a política de cotas raciais nos EUA foi a situação de caos e de violência instalados naquele país no fim da década de 60.

Após a abolição da escravatura, seguiu-se um século de segregação racial institucionalizada. Os conflitos raciais surgiram justamente após o Estado ter legislado com base na raça, dividindo direitos em razão da cor da pele.

Do hospital em que o bebê nascia, até o cemitério onde seria enterrado, todas as instituições sociais eram rigidamente separadas pela cor. Por tal motivo, até hoje o país se ressente pelo fato de haver construído uma sociedade polarizada e dividida entre valores pertencentes aos negros e valores do branco, com cultura e ambientes próprios. Mesmo assim, nos EUA, as cotas vigoraram por menos de dez anos e foram logo declaradas inconstitucionais pela Suprema Corte.

Existem inúmeras dificuldades para a importação do modelo:

(1) no Brasil, nunca houve uma política de segregação institucionalizada após a abolição da escravatura. Nesse sentido, ser negro no Brasil não significa ter uma barreira intransponível para acesso a cargos de prestígio, como aconteceu alhures. Nos EUA, pouco importava a renda: ao negro, ainda que rico, era vedado o acesso.

Por aqui, a duras penas, conseguimos formar uma sociedade na qual são compartilhados todos os valores, com a formação de uma única identidade nacional;

(2) o grande problema a impedir os negros no Brasil de assumirem postos sociais de destaque é a pobreza: 70% dos pobres no Brasil são negros. Se o problema de fato fosse o racismo, os negros seriam a maioria em concursos públicos, mas infelizmente não são porque não conseguem ter acesso ao preparo adequado, por serem pobres.

Neste sentido, devemos implementar uma política de cotas sociais para acesso às universidades: por meio delas, os negros que mais precisam da ajuda estatal serão integrados, sem haver o risco da polarização entre duas “raças” distintas;

(3) para se implementar uma política de distribuição de direitos, é preciso haver um critério objetivo para identificação dos beneficiários.

Talvez aqui resida o maior problema para a cota racial: nunca houve neste país um critério objetivo para identificação do negro, considerando que esta categoria é a soma de pretos mais pardos. Nos EUA, a política foi conduzida a partir do critério objetivo da gota de sangue, na qual bastava uma gota de “sangue negro” na ascendência do indivíduo para que este também fosse considerado negro, apesar de na aparência poder ser louro dos olhos azuis.
Desta forma, muitas instituições que adotaram a política de cotas raciais no Brasil resolveram instituir “Tribunais Raciais” de composição secreta e que com base em critérios secretos, “magicamente” decidem quem é pardo e quem é branco no país;

(4) o racismo existente no Brasil se combate com punição exemplar.

Não podemos tolerar o racismo. Entretanto, o mito sobre a existência de raças humanas é relativamente recente. As primeiras classificações raciais são do século XVIII. A recente decodificação do genoma humano mostra que biologicamente raças humanas não existem: somos todos igualmente diferentes. Tal como a crença nas bruxas, é preciso desmistificar a crença em raças!
Ora, se o Estado pretender legislar com base na “raça”, em vez de enfraquecer o mito, termina-se por fortalecê-lo, perpetuando a crença que legitimou o racismo.

Nós não precisamos copiar um modelo que foi pensado para resolver problemas de outras realidades. Podemos ser criativos e instituir um modelo próprio de ação afirmativa, à brasileira, para integrar aqueles que mais precisam da ajuda estatal, sem corrermos os riscos do incentivo ao ódio, à instituição de identidades paralelas e à racialização do país. Cotas sociais sim, porque a pobreza, no Brasil, é a verdadeira causa da segregação.

Fonte: O Globo, 21/09/2011
21 de setembro de 2011
Roberta Fragoso Kaufmann

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