"A verdade será sempre um escândalo". (In Adriano, M. Yourcenar)

"Quero imaginar sob que novos traços o despotismo poderia produzir-se no mundo... Depois de ter colhido em suas mãos poderosas cada indivíduo e de moldá-los a seu gosto, o soberno estende seus braços sobre toda a sociedade... Não quebra as vontades, mas as amolece, submete e dirige... Raramente força a agir, mas opõe-se sem cessar a que se aja; não destrói, impede que se nasça; não tiraniza, incomoda, oprime, extingue, abestalha e reduz enfim cada nação a não ser mais que um rebanho de animais tímidos, do qual o governo é o pastor. (...)
A imprensa é, por excelência, o instrumento democrático da liberdade."
Alexis de Tocqueville (1805-1859)



domingo, 8 de janeiro de 2012

SEMIÓLOGO NEOLUDITA ITALIANO AINDA NÃO ENTENDEU A INTERNET

Há dois anos, comentei as restrições de Umberto Eco ao livro eletrônico. No artigo "Da efemeridade das mídias", o semiólogo italiano brandia um único argumento a favor do livro impresso: uma pane ou um vírus nos computadores pode levar a perder definitivamente uma grande quantidade de informação, é por isso que os livros impressos seriam ainda importantes. Isso quer dizer que bibliotecas e museus terão a mesma finalidade?

Grossa bobagem de quem ainda não havia entendido o mundo da Internet. Há múltiplas formas de preservar informação. Mais ainda, a informação computadorizada está imune a traças e à ação do tempo. Panes são temporárias e vírus são evitáveis.

Pelo jeito, o lúcido Eco ainda não havia ouvido falar de pendrives, HDs externos, DVDs, que têm uma capacidade quase ilimitada de armazenamento – mais do que muitas bibliotecas -, isso sem falar dos sites que a Internet oferece para a preservação de dados. O argumento é dos mais precários, quase de um neoludita. Em Não Contem com o Fim do Livro,publicado pela Record, em um diálogo com Jean-Claude Carrière, Eco repetia estas bobagens.

- O livro ainda é o meio mais fácil de transportar informação. Os eletrônicos chegaram, mas percebemos que sua vida útil não passa de dez anos. Afinal, ciência significa fazer novas experiências. Assim, quem poderia afirmar, anos atrás, que não teríamos hoje computadores capazes de ler os antigos disquetes? E que, ao contrário, temos livros que sobrevivem há mais de cinco séculos?

Isto não é mais verdade. O livro transporta informação, é claro. Mas o livro nem sempre está onde dele precisamos. Sem ir mais longe, cito este nosso país. Já não mais existem livrarias nas pequenas cidades do Brasil. Quando existem, só vendem best-sellers. Onde você vai encontrar uma obra de Platão, ou de Tomás de Aquino, ou de Descartes, numa cidade do interior? Já não vou tão longe. Procure um Nietzsche, Orwell ou Koestler. Não encontrará. Mas se há telefonia em sua aldeia, e se você tem um computador, poderá ter esses autores – talvez nem todos, mas pelo menos os clássicos – em poucos segundos em sua tela.

Em recente entrevista à revista Época, Eco confessa ter-se rendido ao livro eletrônico:

- Sou colecionador de livros. Defendi a sobrevivência do livro ao lado de Jean-Claude Carrière no volume Não contem com o fim do livro. Fizemos isso por motivos estéticos e gnoseológicos (relativo ao conhecimento). O livro ainda é o meio ideal para aprender. Não precisa de eletricidade, e você pode riscar à vontade. Achávamos impossível ler textos no monitor do computador. Mas isso faz dois anos. Em minha viagem pelos Estados Unidos, precisava carregar 20 livros comigo, e meu braço não me ajudava. Por isso, resolvi comprar um iPad. Foi útil na questão do transporte dos volumes. Comecei a ler no aparelho e não achei tão mau. Aliás, achei ótimo. E passei a ler no iPad, você acredita? Pois é. Mesmo assim, acho que os tablets e e-books servem como auxiliares de leitura. São mais para entretenimento que para estudo. Gosto de riscar, anotar e interferir nas páginas de um livro. Isso ainda não é possível fazer num tablet.

Sem ainda ter optado pelos iPads ou Kindles da vida, vejo a declaração de Eco como um avanço. Claro que os leitores eletrônicos facilitam o transporte e armazenamento de livros. Uma Espasa Calpe em papel, sem ir mais longe, tem 115 volumes e exige uma estante especial em sua biblioteca. Imagine transportá-la. Em DVD, você poderia carregá-la no bolso. On line, ela está permanentemente à sua disposição, à distância de um clique, sem ocupar espaço algum. Isso sem falar que dispensaria os custos de impressão e papel. Opor-se aos livros eletrônicos é resistir ao amanhecer.

Em seu artigo, Eco questionava a capacidade de discernimento de quem está acessando a Internet. "Lá, encontramos tanto a Bíblia como Minha Luta, de Adolf Hitler. E o que fazer se uma obra não recomendável surgir na tela de alguém despreparado intelectualmente? Esse será o problema crucial da educação nos próximos anos".

Alto lá, companheiro! Em biblioteca que se preze, temos de ter acesso tanto à Bíblia quanto ao Minha Luta. Como entender o nazismo se não leio Hitler? Isso sem falar que encontramos na Bíblia massacres e convites ao genocídio que Hitler nenhum sonhou. Mas se Eco aderiu ao livro eletrônico, ainda reage como um neoludita à Internet:

- A internet ainda é um mundo selvagem e perigoso. Tudo surge lá sem hierarquia. A imensa quantidade de coisas que circula é pior que a falta de informação. O excesso de informação provoca a amnésia. Informação demais faz mal. Quando não lembramos o que aprendemos, ficamos parecidos com animais. Conhecer é cortar, é selecionar.

Que seja um mundo selvagem, caótico, sem hierarquia, disto não podemos discordar. Daí a considerá-la perigosa, me parece um exagero. É tão perigosa quanto a imprensa em papel. Os jornais manipularam a informação durante todo o século passado – particularmente no que dizia respeito ao comunismo – e continuam a manipulá-la neste.

Quanto ao excesso de informação, isto tampouco é novidade. Este excesso data de séculos atrás. Toda biblioteca gera um excesso de informação. O excesso de informação provoca amnésia? Claro que sim. A memória humana – ao contrário da do computador – tem seus limites. Se você tem uma mísera bibliotequinha de mil exemplares, já estará mais ou menos perdido em seus livros. Ou Eco acha que pode guardar em sua memória as quatro salas de livros que tem em seu apartamento em Milão?

Há uns três anos, comprei na Espanha Los Orígenes del Fundamentalismo, que li com muita atenção. Comentei, na época, como era bom estar em país onde se publicavam livros que não eram publicados no Brasil. Um leitor alertou-me que este livro havia sido publicado aqui no ano 2000, pela Companhia das Letras, com o título de Em Nome de Deus.

Fui pesquisar em minha biblioteca. O livro estava lá, e todo sublinhado por mim mesmo. Eu já nem lembrava dele. O problema destas obras de extrema erudição é que o autor joga tantos dados em uma só página que, mal acabamos de lê-la, não conseguimos memorizá-la. O remédio é sublinhar. Mas sublinhar tem seus limites. Quando o livro está quase todo sublinhado, é como se não estivesse. Se houve época em que tínhamos escassez de dados, hoje vivemos época inversa: os dados são tantos que nao conseguimos mais lembrá-los.

Eco profere outra bobagem ao condenar o excesso de dados que circulam na Internet. Este excesso é muito anterior. Pergunta o repórter: há uma solução para o problema do excesso de informação?

Responde o semiólogo:

- Seria preciso criar uma teoria da filtragem. Uma disciplina prática, baseada na experimentação cotidiana com a internet. Fica aí uma sugestão para as universidades: elaborar uma teoria e uma ferramenta de filtragem que funcionem para o bem do conhecimento. Conhecer é filtrar.

Ora, conhecer sempre foi filtrar. Eco está chovendo no molhado.

07 de janeiro de 2012
janer cristaldo

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