"A verdade será sempre um escândalo". (In Adriano, M. Yourcenar)

"Quero imaginar sob que novos traços o despotismo poderia produzir-se no mundo... Depois de ter colhido em suas mãos poderosas cada indivíduo e de moldá-los a seu gosto, o soberno estende seus braços sobre toda a sociedade... Não quebra as vontades, mas as amolece, submete e dirige... Raramente força a agir, mas opõe-se sem cessar a que se aja; não destrói, impede que se nasça; não tiraniza, incomoda, oprime, extingue, abestalha e reduz enfim cada nação a não ser mais que um rebanho de animais tímidos, do qual o governo é o pastor. (...)
A imprensa é, por excelência, o instrumento democrático da liberdade."
Alexis de Tocqueville (1805-1859)



quarta-feira, 28 de março de 2012

O GENERAL INDIGNADO

Preocupado com o futuro do Brasil

Militar reformado, 85 anos de vida, o general Torres de Melo mantem um ritmo de atividades impressionante. No Lar Torres de Melo, na coordenação do grupo Guararapes, trocando emails com todo o Brasil ou acompanhando a política e a vida do País. Ou, como diz e enfatiza, “do meu País”

Torres de Melo é, em essência, um indignado. Mais do que isso, é um militar reformado que caminha para as nove décadas de vida sem perder o foco na preocupação com o futuro do Brasil. Ninguém precisa concordar com as teses que defende, e nem ele diz que pretende que assim o seja, mas sua visão sobre o mundo, especialmente sobre a realidade nacional, a de hoje e a histórica, contemplam uma parte do pensamento nacional que encontra no seu entusiasmo uma voz enfática de manifestação.

Às portas de completar 85 anos de vida, o general Francisco Batista Torres de Melo é daqueles que, goste-se ou não do que diz, aceite-se ou não suas teses, não desperdiça qualquer chance que lhe seja apresentada para defendê-las. Aquela que lhe entusiasma com ênfase maior nos dias atuais aponta a sociedade brasileira contemporânea como resultado de uma “degenerescência” que vem sendo construída ao longo dos anos. E, adverte, que se não for revertida pode levar a uma “revolução social ou coisa pior”.

Reformado do Exército após 44 anos de vida militar ativa, Torres de Melo cumpre uma rotina diária de trabalho como voluntário no Lar Torres de Melo (nome em homenagem ao pai dele), pela manhã. À tarde, numa atividade que entra noite adentro, senta-se diante do computador do escritório montado em seu apartamento para trocar correspondências, responder emails e fazer movimentar o pensamento do Grupo Guararapes (que coordena) sobre a realidade brasileira. Foi no apartamento dele, em Fortaleza, que O POVO conversou com o general Torres de Melo na tarde de 1o de abril.

O POVO – Como o senhor analisa a conjuntura brasileira atual?

Torres de Melo - Nós, hoje, recebemos uma massa de informações que nos coloca numa situação muito complicada. Um fato que aconteça na Indochina entra na nossa casa quase ao mesmo tempo, Nós pensamos, então, que o mundo vai se acabar e isso não é verdade. O mundo continua dentro de sua normalidade e o difícil é você compreender essa complexidade de informações que se recebe.

OP - O senhor é otimista em relação ao futuro, já que contraria a ideia de que o mundo caminha para o fim?

Torres de Melo – O problema, para mim, é que o homem esmagou a pessoa humana. O homem não conseguiu se adaptar à vida moderna e, hoje, sofre muito mais do que antigamente. Quando eu era mais novo, na década de 40, 50, o mundo era outro, era uma maravilha. Fortaleza era uma cidade calma, tranquila, porque vivíamos onde nós estávamos morando. O mundo, para nós, não tinha tanta importância e, por exemplo,uma revolta que acontecesse na África do Sul não chegava aqui do jeito que é hoje, dando a impressão de que é diante da nossa própria casa. Quem conseguir passar uma semana sem ler jornal, ver televisão ou ouvir rádio será uma pessoa absolutamente feliz.

OP - Está mais difícil, portanto, lidar com o mundo de hoje…

Torres de Melo - Muito mais difícil. Vamos à cidade de Fortaleza onde, no passado, os homens se davam mais, se amavam mais, pensavam mais uns nos outros, eles eram menos egoístas. Já esse mundo de hoje é muito materialista e a pessoa quer ficar rica a qualquer preço, precisa se afirmar de qualquer maneira, o que traz conseqüências terríveis para a sociedade.

OP – Trazendo a discussão para um foco mais pessoal, por que o senhor decidiu ser militar?

Torres de Melo – O meu pai nos conduziu para que entrássemos no Colégio Militar. Eu fui, gostei, meus irmãos, também, um deles ainda está conosco ai, e adorei a carreira, senti que era a minha vida, não tinha outra vida.

OP – O senhor esteve na ativa durante quanto tempo?

Torres de Melo - Foram 44 anos.

OP – O que ainda permanece na memória do senhor como lembrança inesquecível desse período?

Torres de Melo – Considero ter sido um militar de muita sorte, porque o sonho de todo militar é comandar, é dirigir homens. E eu comandei em 18 desses 44 anos. Na Polícia Militar de São Paulo, na PM do Piauí, no CPOR, no Mato Grosso.

OP – A história, na avaliação do senhor, faz justiça com os militares no Brasil?

Torres de Melo – Não. O que acontece é que o militar brasileiro participou de todo o processo de evolução desse País. O grande desenvolvimento do Brasil está montado em duas grandes escolas que ainda estão ai: o IME (Instituto Militar de Engenharia) que proporcionou as cabeças para a siderurgia, levou São Paulo, em especial a ter o progresso que apresenta hoje, e o ITA (Instituto Tecnológico da Aeronáutica), que possibilitaria depois a Embraer. Ou seja, os militares estavam sempre à frente, não apenas do programa desenvolvimentista do País como sempre estiveram, também, ao lado dos governos. É muita injustiça, portanto, dizer que nós éramos contra o governo. O militar, normalmente, é sempre governo. Por exemplo, em 30 não foram os militares que fizeram a revolta que levou à queda de Washington Luis. Houve, de fato, militares que fizeram parte daquele movimento, mas, na verdade, quem fez a revolta foi Minas Gerais, foi o Rio Grande do Sul, foi a Paraíba, foram os políticos que revoltaram-se contra Washington Luis. Não foram os militares os responsáveis pela revolta de 32, em São Paulo, foram os políticos paulistas em reação ao governo de Getúlio Vargas, que era um ditador. Os militares não fizeram a revolta de 35, consequência da ação de pessoas de fora, pagas por pessoas de fora, o senhor sabe que a coisa nasce lá pela União Soviética, que a dona Olga veio pra cá como uma espiã alemã, custeada pelos russos. Em 45, quando o Getúlio caiu, mais uma vez não foram os militares que o derrubaram, foram os mineiros, lembremos do grande Manifesto Mineiro, que balançou o sistema político. Se o senhor for em 54, não foram os militares que mataram Getúlio, foram os elementos que o cercavam, o exploravam e basta ler o livro “Chatô” para ver que coisa horrível. Eram elementos podres cercando-o e que levaram àquela explosão. No caso do Jânio, ele, na sua loucura, talvez querendo se manter no poder a todo custo, largou o governo e foi embora, não fomos nós. Da mesma maneira que não fomos nós, militares, que botamos o João Goulart pra fora do governo. Ninguém fala, ninguém diz, todo mundo permanece calado, mas Magalhães Pinto, Carlos Lacerda, Meneghetti , no Rio Grande do Sul, Ney Braga, no Paraná…

OP – Todos eles civis.

Torres de Melo - Todos, à exceção do Ney Braga, que era coronel da reserva, mas, àquela altura, era praticamente um civil. O que aconteceu? O povo foi às ruas, chamou as Forças Armadas e o Castelo Branco foi escolhido porque eles não se ajeitavam. O Castelo foi passando o poder para outros, não teve oba-oba. O que acontece é que é preciso, na luta política, a esquerda, que saiu derrotada em todas as situações históricas, em 35, em 61 e em 64, precisa, até hoje, justificar a situação e investe na tese de que os militares não prestam, os militares são os causadores de tudo. No entanto, o senhor não vê, nessa confusão toda que está ai, nesses roubos todos, nenhum militar envolvido.

OP – Os militares não teriam, então, uma autocrítica a fazer diante de todos esses fatos, especialmente o período em que governaram o País?

Torres de Melo - Não, não governamos. Apenas o presidente da República era um militar e, assim como o médico e qualquer outro brasileiro que apresente condições, o militar também pode ser presidente da República. Se o senhor olhar o gabinete do presidente Castelo Branco era composto, basicamente, por civis.

OP – A escolha do presidente da República naquele momento, general, se dava dentro do ambiente militar.

Torres de Melo - Quem escolheu o presidente castelo Branco foi o (Carlos) Lacerda.

OP - Não foi uma escolha dos militares?

Torres de Melo – Não, não foi.

OP – Quanto à autocrítica, o senhor considera que não houve erros, ela não é necessária?

Torres de Melo - O que aconteceu, na minha observação, é que houve um pouco de demora no poder. A verdade é que o poder desgasta e a permanência nele por 20 anos, quer dizer, desde 1964 até 1984, acabou desgastando. Se nós tivéssemos entregue um pouco antes, talvez tivesse sido melhor. Por exemplo, se o doutor Petrônio Portela não tivesse morrido a história do Brasil seria outra.

OP – A transição teria se dado naquele momento, mais pra trás?

Torres de Melo – Exatamente. O (Ernesto) Geisel teria feito o Petrônio Portela presidente da República. Então, essas coisas acontecem, a história é assim.

OP – E as disputas internas entre os próprios militares, com a existência de uma linha dura?

Torres de Melo – Isso ai se enfeita muito. A questão é que 64 ainda está muito próximo e há necessidade da coisa se assentar mais para que a história seja contada com mais calma. O problema é que, além disso, a ideologia cega. Volto a dizer que se o Brasil é um grande País, hoje, é porque tudo, tudo que foi planejado deu-se entre 64 e 82. Tucuruí, Carajás, todas as grandes hidrelétricas, as estradas, os portos, de Itaqui (MA), de Sepetiba (RJ), a energia nuclear, tudo. Quando veio a pseudo-democracia, pseudo porque democracia é o cumprimento da lei, coisa que não acontece no Brasil atual, onde sequer a Constituição é respeitada.

OP – Não vivemos,então, num estado democrático de Direito?

Torres de Melo - Não, não vivemos. É triste dizer isso. Não se cumpre o artigo 220 da Constituição, o artigo 221, a propaganda é direta. O governo gastando 2 bilhões de reais com propaganda, segundo li, dinheiro que poderia servir para construir hidrelétricas no Amazonas, por exemplo. Não é a pessoa “a”, “b” ou “c”.

OP - O regime militar brasileiro foi violento ou é injustiçado quando é chamado de ditadura? Houve uma polêmica recente no País quando um grande jornal, a Folha de S. Paulo, defendeu que em comparação com países vizinhos, como a Argentina, até se poderia chamar o caso brasileiro de ditabranda….

Torres de Melo - Graças a Deus, no Brasil, nós não tivemos.. O que é que aconteceu no Brasil? Os civis se revoltaram, o senhor Magalhães Pinto desceu com a polícia dele, o Exército entrou em apoio etc, e o senhor João Goulart foi posto pra correr. O Costa e Silva assumiu em pleno estado democrático de Direito, porque não é eleição direta ou indireta que define isso. A Alemanha nunca elegeu seu presidente diretamente, por exemplo. Em 1956 aconteceu um fato que abalou o mundo: foi o 20° Congresso do Partido Comunista da União Soviética. O senhor tem conhecimento disso! A partir dali passou a haver uma divisão nas esquerdas, na qual a esquerda da União Soviética achava que era preciso tomar o poder através do voto, na democracia, enquanto a esquerda que tinha referência na China, na Albânia, em Cuba, defendia que o poder deveria ser tomado pela força. Isso acabou repercutindo aqui no Brasil e aconteceu que a briga, de tão violenta, resultou na expulsão de (Luiz Carlos) Prestes. O Prestes foi expulso do partido! A facção da luta armada, isso é contado com maestria pelo Jacob Gorender, um comunista, no livro “Cobate nas Trevas”, que queria assumir o poder pela força, partiu para a guerra. Em 1966 começou a coisa a se deteriorar e aconteceu o atentado no aeroporto do Guararapes, em Recife, onde jogaram três bombas. Começou ai a luta armada, porque a esquerda, orientada pela China, por Cuba, Che Guevara, Albânia, queria a tomada do poder pela força. Mas, o Brasil é um país de sorte e aconteceu que a esquerda foi derrotada rapidamente.

OP - O AI-5 não foi um dos erros que mereceriam, hoje, uma autocrítica?

Torres de Melo - O AI-5 foi uma necessidade. Havia uma divisão no governo, uma parte era a favor e outra parte era contra. O vice-presidente da República, doutor Pedro Aleixo, era contra, enquanto o ministro da Justiça, um civil, era a favor. O Magalhães Pinto era contra, um outro era a favor. Agora, se não houvesse o AI-5 o que é que teria acontecido? O AI-5, em si, não é nada. A vitória contra o desmando da guerrilha, da morte, porque o senhor há de compreender uma situação em que a pessoa está na sua casa, chega alguém e joga uma bomba. O senhor não vai gostar! Não tem quem goste, né? Então, foi uma luta na qual morreram 400 pessoas, não sei…

OP - A ocorrência de mortes, na quantidade que fosse, não seria evitável?

Torres de Melo - Não, na medida em que eles é que começaram a matar. Quem jogou a bomba no aeroporto de Guararapes? Fomos nós? Não! Lá, mataram um almirante reformado, mataram um jornalista e um pobre de um jogador de futebol, um grande jogador de futebol, perdeu uma perna. Se eles estavam na disposição de tomar o poder pela força, por isso criaram a Guerrilha do Araguaia, na certeza de que teriam um território livre para atuar. Como eles estavam na teoria da força, a reação só poderia se dar na base, também, da força.

OP – O senhor concorda, portanto, que o regime militar brasileiro, comparado ao que aconteceu em outros países….

Torres de Melo - Meu amigo, estou acabando de ler um livro, que até aconselho ao senhor, chamado “Cisnes Selvagens”, que é a história da China de Mao Tsé-Tung. Ai o senhor vai ver o que é uma desgraça. Quem conhece a história, como eu conheço, de (Josef) Stálin, de (Adolf) Hitler, de Fidel Castro, de Mao, não é possível se querer implantar um regime semelhante, isso não cabe na cabeça de ninguém. Foi Deus quem quis que no Brasil não tivéssemos isso.

OP - É simples assim a explicação para o fato de termos tido um processo, aparentemente, menos violento?

Torres de Melo - O brasileiro é tão sensacional que eu tinha um médico muito meu amigo, amicissimo do meu pai, doutor Pontes Neto, que era um sonhador. O que acontece com ele? Vai preso no 23 BC, cujo comandante era muito amigo dele, tinham sido colegas de Colégio Militar. Só no Brasil poderia acontecer um negócio desses. Naquela época, o general comandante da 10a Região, André Fernandes, adoece de apendicite aguda. Sabe quem foi operá-lo? O Pontes Neto. Quer dizer, isso só no Brasil poderia acontecer algo assim. O brasileiro não é dado a violências, mas meterem na cabeça de alguns jovens que a violência iria resolver. Deu nisso, deu nisso. Por exemplo, quando fui vereador com meu amigo Chico Lopes (hoje deputado federal pelo PCdoB), meu amigo Chico Lopes, ao me despedir da Câmara ele chorou. Porque eu acredito nas idéias do Chico Lopes, ele acredita na minha e, mais importante, nos respeitamos. Este é o verdadeiro brasileiro, não aquele que pega e joga uma bomba, sai atirando, assaltando, roubando.

OP - No caso ainda do AI-5, o senhor entende que aquele ato de força sobre o Congresso…

Torres de Melo – Não foi assim, o Congresso aceitou. O problema, meu amigo, é que estávamos tratando de uma situação de sobrevivência. da democracia no Brasil. E nós fomos salvos. O senhor já imaginou se tivesse sido instalada aqui uma ditadura nos moldes de Cuba? Quantos teriam ido para o “paredon”? Se em Cuba foram 17 mil, aqui seriam 100 mil! Essa é que é a realidade.

OP – O senhor falava da autocrítica, que talvez fosse melhor ter passado menos tempo no poder.

Torres de Melo – Talvez tenha sido um erro político, de visão política, mas a história tá ai.

OP – E o que veio depois do período militar, com a redemocratização, como o senhor analisa?

Torres de Melo – O que veio depois merece uma análise sociológica. O homem é o homem, no Brasil, na China ou na Rússia, ele quer suas oportunidades. E, conforme a evolução da sociedade ele sofre mais ou sofre menos, mas, se você olhar o Brasil de 1930 eram outros homens. A sociedade brasileira veio, desde então, se degenerando, foi se tornando permissiva, por isso, por aquilo ou por aquilo outro. O Castelo (Branco) era um homem equilibrado, que não admitia que pusessem a mão no ombro dele. Um dia, um irmão dele que ocupava uma função pública ganhou um Volkswagen de presente. O que ele fez? Ligou para perguntar quando ele iria devolver o veículo, porque demitido da função já estava! Então, veja a retidão moral de um Castelo, de um (Ernesto) Geisel, de um (Emílio) Médici.

OP – Hoje, para o senhor, este tipo de coisa não acontece mais?

Torres de Melo - Os processos foram se degenerando. Outro exemplo, que não foi contado por mim, foi contado pelo Delfim Neto. Delfim chegou para o Médici, era ministro dele na época, e disse que havia necessidade de aumentar o preço da carne. Médici foi claro e firme: não admitia. Delfim diz que tentou argumentar, mas ele cortou o assunto e disse assim: “não admito!”. Vinte dias depois, segundo conta o senhor Delfim Neto, o Médici lhe chama e autoriza o aumento do preço da carne. Delfim pergunta, então: por que, presidente? Médici explicou que tinha mandado vender seus bois antes do aumento ser autorizado. Você entendeu? Pra não dizerem, depois, que ele teria autorizado o aumento para ganhar dinheiro! Hoje, não, o sujeito rouba aqui, rouba acolá, defende aqui, defende acolá. A coisa vem se degenerando, perdeu-se o sentido do valor ético da vida. Esta degenerescência é perigosa!

OP – O senhor foi vereador por Fortaleza nos anos 90. O que ficou de importante dessa experiência, além, como já ressaltou antes, da amizade com o comunista Chico Lopes?

Torres de Melo - Na Câmara, tentei demonstrar que nós estávamos ali para estudar os grandes problemas da cidade. Nós precisariamos estar pensando alto, mas, às vezes, ficava meio perdido. Eu, Chico Lopes, aquele menino do PT, o José Maria Pontes, ficávamos perdidos, porque ninguém pensava na cidade, ninguém ali pensa na cidade. Não há substância. Quando vejo que Londres tem 15 conselheiros municipais, contra 41 vereadores em Fortaleza, noto que alguma coisa está errada. Eu fui, eu vi, quando ia passando por uma rua na Suécia, o primeiro-ministro, que até seria assassinado logo depois, em cima de um banquinho vendendo a sua idéia, fazendo seu comício, sozinho. Quando lembro disso e vejo essa confusão que está ai, sem que existam idéias, sem sonhos, onde o único objetivo aparente é ver como sair ganhando, como tirar proveito. Não pode ser assim, não é possível que continue.

OP – Como é possível reverter essa situação sem que haja necessidade de um rompimento institucional, que venha um golpe….

Torres de Melo – O problema não é de golpe. O que acontece é que, na América Latina, a mediocridade está dominando.

OP - Só na América Latina?

Torres de Melo - Aqui, mas também na África, em parte da Ásia..

OP - Hoje discute-se a qualidade dos políticos no mundo todo, na verdade.

Torres de Melo – Não. O senhor veja que o Primeiro-ministro da Inglaterra é um homem altamente preparado.

OP – Já o mesmo não se pode dizer, parece, do chefe do Governo da Itália, Silvia Berlusconi, que….

Torres de Melo – O italiano também, mas, como dizem que ele é de direita então o pau ronca. O certo é que a mediocridade é uma doença terrível que assola o Brasil. Se o senhor for ao Congresso do Brasil, não tenho nada contra ninguém, nem a favor de ninguém, vejo sempre o meu Brasil, o País dos meus filhos, dos meus netos, meus bisnetos, e comparar a situação de hoje com aquela em que já tivemos um Milton Campos, o pai do Virgílio Távora, o próprio Coronel Virgílio…

OP – O senhor não considera que a situação se deve, também, ao fato de hoje haver mais exposição, existirem as tevês que transmitem as sessões para o público, por exemplo?

Torres de Melo – Não, não. É uma doença sociológica, aconteceu em Roma, que já dominou o mundo e, quando começou a degradar na sua política interna, deixando que os medíocres começassem a assumir o poder pelo dinheiro, se desmoronou. Hoje em dia, por mais que você seja competente, não conseguirá sequer se candidatar porque a primeira coisa que vão perguntar é se ele tem munição, que foi o que fizeram comigo quando cheguei a pensar em disputar a prefeitura de Fortaleza pela última vez. Um cidadão chegou pra mim e perguntou se eu tinha munição. O sistema está montado de uma tal maneira que, de maneira simplificada, define que devem ser eleitos os que interessam a ele, “vamos eleger os nossos”. Isso é no Brasil todo e é grave. Pode levar o País para uma revolução social ou coisa pior.

OP - Uma reforma política, que é o que se fala no momento, poderia resolver?

Torres de Melo - A reforma política, primeiro, não vai sair. Ela não interessa aos políticos que ai estão. O meu receio é que a coisa continue se degenerando até chegar ao ponto de explodir, o que não quero que aconteça. Seria ruim, não pra mim que já estou velho, mas para a sociedade que vai sofrer. Na universidade, o senhor acha que está certo um aluno frequentar a aula de calção? O sujeito pode usar lá seu calção, não sou contra nada, mas tudo tem seu tempo e seu lugar. Eu uso calção para ir à praia. Para assistir uma aula eu devo ir vestido, é como acontecia antigamente, não existia problema. Outra coisa grave: o ignorante total é a felicidade.

OP – A corrupção, que o senhor considera ser um mal da conjuntura política brasileira atual, na verdade é um problema muito mais antigo.

Torres de Melo – A corrupção é do homem, vem desde Caim e Abel. Na verdade, a combinação entre sexo, poder e dinheiro resulta, inevitavelmente, em corrupção. O que precisa é a sociedade ter determinadas normas, leis, que leve à punição imediata de quem praticá-la. Nos Estados Unidos, agora, um cidadão deu um golpe de não sei quantos bilhões de dólares, pegou 150 anos de prisão e já está preso. Aqui, não.

OP – Na época do governo Itamar Franco o senhor fez parte de uma comissão cuja tarefa era, exatamente, estudar casos de corrupção dentro do governo. No que resultou aquele trabalho?

Torres de Melo - Eu tremia. Tinha dias que vinha lá de Brasília certo de que iria ter um enfarto, com vergonha, de tristeza. O senador Pedro Simon (do PMDB do Rio Grande do Sul) contou a história recentemente da tribuna do Senado, disse que foi ao então presidente Fernando Henrique Cardoso, me citou, inclusive, ao ler os nomes dos integrantes da comissão. O que se apurou, meu amigo…

OP – No que é resultaram essas apurações?


Torres de Melo – Nada! O senhor Fernando Henrique Cardoso veio, após o Itamar, e, simplesmente, acabou com a comissão. Tinha dias que vinha para Fortaleza, no mesmo avião do Quintela, que era de Maceió, e nós diziamos um ao outro, durante a viagem, que um dos dois pifaria, não daria para aguentar. Era uma tristeza.

OP - De lá pra cá, então, o quadro piorou na avaliação do senhor?

Torres de Melo - E bota piorou nisso, meu amigo! O pior, mais ainda, é o cinismo.

OP - E a tese, defendida por alguns dentro do atual governo, de que está havendo hoje, na verdade, é um combate mais efetivo à corrupção?


Torres de Melo - Não, não, não. Há é um processo de degenerescência da sociedade. Por exemplo: não estou dizendo que, antigamente, governador não tinha amante. Tinha, mas antes havia maior respeito à majestade do cargo. Hoje a coisa acontece às claras, ninguém quer nem saber. Seja aqui, na União Soviética, onde o senhor quiser, quando a sociedade quebra os seus valores ela entra em pânico. Assim foi com a degenerescência dos costumes na corte francesa, foi com a degenerescência da corte do Czar Vermelho, do Stálin, li um livro no qual consta o que o Calinin correu atrás de menininha novinha pra ele é pra deixar qualquer um de cabelo arrepiado.

OP – Então, insistirei que não se trata de um fenômeno brasileiro a tal mediocridade da classe política. Os Estados Unidos, por exemplo, também tiveram exemplos bastante graves nos últimos tempos.

Torres de Melo – Os Estados Unidos, conforme dizia um amigo meu, morto recentemente, que dizia ter pena porque, sendo um país sensacional, vai se degenerar no álcool. O gelinho, o som do gelo. Quando uma sociedade está bebendo muito é porque está no caminho da degenerescência. É um sinal de que a sociedade está tremendo, então, meu amigo, muito cuidado com aquele barulho do gelo.

OP – O senhor acompanha o noticiário?

Torres de Melo - Acompanho tudo. Leio três jornais todo dia, leio duas revistas e ainda recebo cerca de mil mensagens por dia, através de email. Hoje, passei cerca de sete mil. Não fiquei pra trás.

OP – Depois daquela manifestação do senador Jarbas Vasconcelos (PMDB-PE), apontando corrupção no governo Lula, o senhor encaminhou uma carta a ele de solidariedade. Recebeu alguma resposta?

Torres de Melo – Não. A posição do doutor Jarbas é muito delicada. Tem dois senadores, o próprio Jarbas e o Pedro Simon, este, inclusive, não sei como é que ainda está vivo. Lembro quando ele pediu uma CPI para investigar as empreiteiras, baseado em muita coisa que tinha sido levantada pela Comissão Especial de Combate à Corrupção no governo Itamar. É a mesma coisa do Jarbas Vasconcelos.

OP – No caso do Jarbas, porém, o senhor não considera que há um certo oportunismo, á que ele era aliado do governo FHC e nunca se manifestou, por exemplo, contra a medida que extinguiu a comissão de combate à corrupção?


Torres de Melo – Ele poderia ter dito o que disse antes ou depois, mas a Bíblia diz que há tempo pra tudo. Tempo pra plantar e tempo pra colher. Ele achou que o tempo era agora, para o senhor deveria ter sido antes, outro pode entender que deveria ser mais adiante.

OP - Qual a avaliação que o senhor faz do governo Lula?

Torres de Melo - Medíocre. E o problema não é apenas do atual governo, trata-se de um processo que vem caindo de algum tempo, ele está pegando apenas o rabinho do coelho.

OP - O governo anterior, que era comandado por uma pessoa preparada, considerada de grande peso intelectual, padecia da mesma mediocridade então?

Torres de Melo – O problema não está na formação. Essa mediocridade é uma doença desgraçada.

OP – Como sair dela, então?

Torres de Melo - Só há duas maneiras: através da educação, mas educação mesmo. Educar distribuindo camisinhas não funciona, o que defendo é a volta do respeito aos idosos, às normas, ao professor, o fim da anarquia. Só vai por ai, isso é cultura, leva tempo.

OP - Tempo e dinheiro?

Torres de Melo - Não, gasta-se muito em educação. O problema maior é que gasta-se mal. No governo Virgílio Távora uma professora ganhava oito salários mínimos, mas a professora era professora.

OP – O senhor não imagina, claro, uma volta ao passado do jeito que eram as coisas no passado?

Torres de Melo - Não, claro que é necessário adaptar às condições de momento. O que não pode é continuar do jeito que está agora. Outra coisa que não cabe na minha cabeça, eu que servi no Exército em todo o País, de São Paulo a Manaus, do Rio de Janeiro ao Mato Grosso, nos 44 anos de ativa, nós tratarmos de maneira diferente alguém porque é preto, ou porque é índio, é branco. É brasileiro e pronto. Servi na Amazônia e incorporávamos o índio porque era brasileiro, não porque era índio. Hoje é índio pra cá.

OP – É uma crítica à política de cotas do governo, às ações afirmativas?

Torres de Melo – Que não deram certo nos Estados Unidos. O que dá certo é o mérito, o que está errado não é a cota, o que está errado é o ensino público. O certo é que no nosso Exército tinha preto, tinha branco, amarelo, tem general japonês, general preto. Eu mesmo, fui promovido por um general preto.

OP - Ex-comandante da Polícia Militar, no São Paulo e no Piauí, como o senhor analisa o cenário atual da segurança pública no Brasil?

Torres de Melo – Segurança pública não é um problema de polícia, é um problema de sociedade. Para a sociedade desorganizada, torta, que vive no tóxico e no álcool, que não tem regras, na qual tudo vale, não há segurança pública que dê jeito. Quando fui comandar a Polícia Militar do Piauí durante quatro anos só registramos um crime, de motivação passional. Durante quatro anos só um crime. Arrumei a polícia direitinho, ajeitei, pronto! Fui pra São Paulo, era a década de 70…

OP – O mundo, então, era bastante diferente do atual?


Torres de Melo – Era, ainda tinha um restinho daquela coisa de estudantes, faculdade de Direito, mas já começavam os assaltos, que foram ensinados aos criminosos comuns pelos guerrilheiros da esquerda. Eles viveram juntos dentro das cadeias. Nós colocávamos as viaturas nas ruas em São Paulo e tinha dia em que não havia assalto na cidade. São Paulo! Uma vez, conversando com o ministro Armando Falcão, me dava muito com ele, disse a ele que daquele jeito não daria certo, que a coisa iria degenerar. Estava vivendo o problema e estava falando de perspectiva, que aquele negócio de afrouxar as leis de tóxicos não iria dar certo. Naquela época, a classe média começava a entrar no tóxico e auto-defesa dela fez com que as leis fossem afrouxando. O problema estava apenas começando e lembro ter dito a ele: ‘doutor Armando, isso não vai dar certo’. O que temos ai, hoje, é o tóxico dominando a sociedade.

OP - As drogas estariam na origem de grande parte dos problemas atuais da sociedade?

Torres de Melo - Exato, é o tóxico, a sociedade se desmanchou. Lembro que a gente ia na Boca do Lixo, na Boca do Luxo, lá em São Paulo, e havia drogas, mas a gente controlava a situação, havia um controle. Hoje, a polícia está inibida, não pode agir. Se há uma pessoa que é contra qualquer ato de violência esta sou eu, porque sofri na minha carne, o meu pai teve, em 30, a sua casa invadida pela polícia porque era contra o governo. Papai era revolucionário de 30, ao lado de Juarez Távora, então, quando vejo qualquer violência aquilo me faz mal.

OP – O senhor gosta da política de segurança do atual governador, Cid Gomes? A apóia, especialmente quanto à idéia da polícia comunitária, do programa Ronda do Quarteirão?

Torres de Melo - Acho equilibrada, a coisa está melhorando, mas acho que seria necessário prestigiar mais a Polícia Militar. Eu comandei duas polícias e sei o quanto é complicado o nosso sistema.

OP – O que seria prestigiar mais?

Torres de Melo – Sou a favor da organização policial chilena, da organização chilena..

OP – Qual é essa organização?

Torres de Melo – É um modelo hierarquizado. No Chile, por exemplo, tem o general policial. A polícia tem que agir violentamente contra os maus elementos dela, não tem esse negócio. Não presta, é botar pra fora mesmo. O problema é o seguinte, também: se um general chega de calção no quartel, o soldado vai de cueca. O senhor entende o que eu quero dizer? Tudo tem que ter referência senão não vai. Na minha idéia vem tudo hierarquizado e, por exemplo, o delegado, seria delegado e coronel. Não se trata de eu ser militarizado, mas é porque a sociedade precisa se organizar.

OP - Hoje, comparado à época em que o senhor foi comandante de instituições do gênero, respeita-se menos a polícia?

Torres de Melo - Não é problema de respeito à polícia, mas de respeito à ordem. O brasileiro não cumpre ordem, nem norma, todo mundo acha-se com direito de ultrapassar pela direita, eu passo no sinal vermelho e acabou. É um vale-tudo! Na época em que eu estava em São Paulo e fui participar de um almoço, a convite de um Clube Rotary, algo do tipo. Tudo lá é grande e estavam ali cerca de 500 pessoas. Mostrei o que estávamos fazendo etc e, ao final, abriram-se às perguntas. Um dos presentes, então, diz na minha cara: coronel, a sua polícia é corrupta, com 50 reais e compro seus soldados. Terminou? Terminei. Eu disse, e o senhor é um corruptor safado e ordinário. É, inclusive, pior do que ele! Acabou a reunião. A verdade é esssa, que só existe o corrupto porque há o corruptor. Existe quem venda porque existe quem compre. A verdade é que a sociedade degenerou-se.

OP – O País vive a iminência de uma disputa pela presidência da República que, apontam as expectativas, terá de um lado o governador José Serra e do outro a ministra Dilma Rousseff. Os dois participantes de destaque na resistência ao regime militar, Serra como presidente da UNE na época e Dilma como participante da luta armada. Qual a simbologia disso, se, claro, na visão do senhor há alguma?

Torres de Melo - O que me preocupa para 2010 não é a candidatura de Serra, de Dilma, mas é a situação do meu País. O governo vai gastar o último tostão, vai quebrar o País para eleger o candidato dele, no caso que o senhor está falando, a doutora Dilma. Não haverá o mínimo escrúpulo em tudo isso, ou seja, este é um País infeliz. Essa é a minha ansiedade. Minha questão não é ideológica, é uma questão de Brasil. O sujeito pode ser o que for, pode ser assaltante, pode ser o que for, teve voto, compra. O quanto custa não interessa. Isto é grave e a imprensa sabe disso. A degenerescência política do País é de tal ordem que ninguém sabe para onde vai, nem o governo sabe quem vai apoiar dona Dilma e nem o José Serra sabe quem vai apoiá-lo. É quem tem mais poder, quem tiver mais munição para comprar as consciências. Consciência não, porque quem se vende não tem consciência. Estou preocupado com o que vai ser do meu País, não estarei mais por aqui, mas a coisa é essa.

27 de março de 2012
Postado por Pedro Bougleux

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