"A verdade será sempre um escândalo". (In Adriano, M. Yourcenar)

"Quero imaginar sob que novos traços o despotismo poderia produzir-se no mundo... Depois de ter colhido em suas mãos poderosas cada indivíduo e de moldá-los a seu gosto, o soberno estende seus braços sobre toda a sociedade... Não quebra as vontades, mas as amolece, submete e dirige... Raramente força a agir, mas opõe-se sem cessar a que se aja; não destrói, impede que se nasça; não tiraniza, incomoda, oprime, extingue, abestalha e reduz enfim cada nação a não ser mais que um rebanho de animais tímidos, do qual o governo é o pastor. (...)
A imprensa é, por excelência, o instrumento democrático da liberdade."
Alexis de Tocqueville (1805-1859)



sábado, 21 de abril de 2012

OPERAÇÃO CACHOEIRA: QUEM ABAFA QUEM?


O presidente do PT, Rui Falcão, divulgou um vídeo em que pede “uma CPI para apurar esse escândalo dos autores da farsa do mensalão”, em nome de todo o partido.
A expressão “farsa do mensalão” foi cunhada por Lula, em café da manhã com José Dirceu em novembro de 2010, quando prometeu que, assim que saísse do governo, iria criar uma ofensiva para provar a “farsa do mensalão”.


Promessa de campanha cumprida. Através de ordens verticais, João Paulo Cunha, um dos 36 réus do mensalão, foi alçado à Comissão de Constituição e Justiça (sic) da Câmara em 2011, o que lhe garantiu um canal aberto de comunicação justamente com a cúpula Judiciário.

Assim, amigos julgarão amigos. Sem nenhum disfarce, o réu José Genoíno, ex-presidente do PT, ex-nomeável para chefe do Executivo em São Paulo, com sua carreira jogada em um lamaçal e já incapaz de ganhar 1% de votos por aí, foi nomeado assessor especial do então ministro da Defesa Nelson Jobim, ex-presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), justamente onde Genoíno será julgado, conforme se vê na Veja dessa semana.

Enquanto isso, petistas com trânsito no Jurídico (o que, como já lembramos, é cada vez mais freqüente) tentam convencer os ministros do STF de que o julgamento deve ser um “parecer técnico”, sem sensibilização com a opinião pública em ano eleitoral. As máscara é óbvia: tenta-se proteger Dirceu e Genoíno, os nomes mais famosos que sucumbiram, para manter a força eleitoral do PT. Saiu na Folha:
O foco mais evidente do assédio petista é o ministro José Dias Toffoli, que foi assessor do PT e advogado-geral da União no governo Lula. Emissários do ex-presidente já fizeram chegar a Toffoli a preocupação com a possibilidade de ele se considerar sob suspeição durante o julgamento do mensalão.
Responsável pela indicação de Toffoli, o próprio Lula passou a reclamar dele. Segundo petistas, o ministro estaria emitindo “sinais trocados” sobre o julgamento.
É uma afirmação que esconde a tentação pizzaiola há tanto denunciada por aqui: o Jurídico indicado pelo PT por antigas relações de amizade julgará os próprios amigos.

Quem quer que sonhe com uma “imparcialidade” tem como resposta o óbvio: o ex-assessor do PT é o ministro mais assediado para “explicar” o mensalão, e quando dá mostras de não ser um “voto no PT” declarado, passa a ser criticado por seus “sinais trocados”.

Alguma dúvida de que a intenção óbvia, e desabridamente pavoneada em Brasília, é já ter um resultado declarado antes mesmo de o julgamento começar? Toffoli está sob risco de ser impedido: tem ligações com o PT, com o governo Lula e sua namorada foi advogada do ex-deputado Professor Luizinho (SP), que (surpresa!) também é réu no mensalão.
Alguém aí acredita que um juiz vai condenar o cliente de sua namorada?


Não foi um caso isolado. Márcio Thomaz Bastos, o advogado mais caro da república, ex-ministro da Justiça de Lula e advogado de um ex-diretor do Banco Rural que também é réu (alguém aí está surpreso? ouço um “ooohhh!” nas últimas fileiras?) também enviou ao STF um pedido de ordem para manter apenas 3 réus, e mandar os que não têm foro privilegiado para a primeira instância. A corte já negou pedido semelhante em 2006, contra proposta dos advogados do empresário Marcos Valério. Traduzindo: mais tempo para recorrer, postergar, enrolar e prescrever.

O curioso é a corte ter escopo para rediscutir tal possibilidade. Só significa uma coisa óbvia: o crime perpetrado é de tão grandes proporções que não havia, até então, sequer jurisdição para saber o que fazer com tamanho descalabro, com tantas altas autoridades do país.

Porém, com a aproximação do julgamento do mensalão, que pode vir a acontecer nesse semestre, o desespero da base aliada mandou às favas qualquer seqüela de escrúpulos e partiu para um “tudo ou nada” que tenta vender uma velha tese: julgar o mensalão não seria interesse da república (em sentido lato, da res publica, ou “coisa pública”), e sim apenas interesse de grupos partidários opostos. A democracia, assim, ficaria reduzida a uma eterna disputa eleitoral, num episódio em loop infinito da Corrida Maluca.


O pivô foi a crise deflagrada por Carlos Cachoeira e as ligações flagrantes com o senador Demóstenes Torres (ex-DEM-GO), que até há pouco aparecia como paladino da ética, sempre a apontar o dedo para o PT.
Ao fisgar a oportunidade de tentar virar o jogo do carisma frente à opinião pública (aquele sentimento geral, que não se mede, mas se sente no ar, de tentar enxergar “quem está mais certo” e torcer para o mocinho), a base governista resolveu abrir o jogo sem medo do perigo: é o recado de Rui Falcão agora em seu vídeo.

Como as ligações de Cachoeira atingem um “bom nome” da oposição e também um grande desafeto de Lula, o governador tucano de Goiás, Marconi Perillo, que se tornou um perigo por afirmar que alertara Lula sobre o mensalão em 2005.

A argumentação é bastante torta e denuncia o vale-tudo. Para Falcão, “setores políticos e veículos de comunicação tentam a qualquer custo impedir que se esclareça plenamente toda a organização criminosa montada por Carlinhos Cachoeira em conluio com o senador Demóstenes”, além de “criminosos e falsos moralistas”.
Uma denúncia genérica, a lembrar os bons tempos de Heloísa Helena: não cita nomes, fala em coletivos e diz que a culpa é sempre “deles”, uma massa amorfa que, se bem analisada, é composta por praticamente qualquer pessoa envolvida com política no país, com a provável exceção do PT (“partidos e veículos de comunicação”).

Claro que, ao descer do virginal reino ideário platônico para as minudências mais confusas da realidade, as coisas se complicam um pouco. A tese do jogo de gato e rato entre governo e oposição dá com os burros n’água. Para começar, quando Rui fala em nome de todo o partido, mal consegue abraçar o PT paulista. Josias de Souza, na Folha, entrevistou seis congressistas petistas sobre a tática da CPI que Falcão quer instaurar para averiguar o “escândalo” que seria a “farsa do mensalão”:
Um dos petistas que conversaram com o repórter disse: “Essa CPI é uma burrice. A associação com o mensalão é idiotice.”
A iniciativa seria burra porque “oferece palco para a oposição num instante em que ela estava na defensiva”. A tática seria idiota porque, “em vez de desviar o foco do julgamento do STF, alimenta o noticiário negativo do mensalão.”
Causa e circunstância. Ademais, a própria idéia da CPI, além de queima-filme, já seria inútil:
“O local para discutir o mensalão é o Supremo”, declarou outro. “Quem foi acusado que se defenda.”
“Nada disso foi discutido nesses termos”, queixou-se um senador. “Foi tudo feito meio de afogadilho. Nós, do Senado, não pensávamos em CPI. Começaram a falar nisso depois que o Supremo negou o envio de cópia do inquérito da Operação Monte Carlo ao Congresso.”

Prosseguiu: “A rigor, não precisamos de cópia do processo para fazer o que tem que ser feito. Já há elementos para cassar o Demóstenes [Torres]. Ele mentiu no plenário. No mais, sempre dissemos que denúncias já investigadas pela PF dispensam CPI. Por que mudar esse entendimento numa hora em que o governo precisa de calma?”
Parece que o jogo não é bem entre governo x oposição: parece apenas que nem dentro do PT a turma que quer negar o mensalão é dominante: continua morrendo de medo do caso ser julgado e de alguém lembrar de Marcos Valério, Duda Mendonça, Maurício Marinho, Waldomiro Diniz, Delúbio Soares, Luiz Gushiken, Márcio Lacerda, Gilberto Carvalho, João Paulo Cunha, Josias Gomes, Professor Luizinho, Rogério Buratti, Silvio Pereira, Valdemar Costa Neto, Wilmar Lacerda, Paulo Okamoto, Severino Cavalcanti, Bispo Rodrigues, Antonio Palocci, Angela Guadagnin… a lista só de “caídos”  é pior que o Antigo Testamento.

Abafa-abafa

Mas Rui Falcão jura que há uma “operação abafa” da oposição. Ou da mídia. Ou de sei lá quem (os tais “partidos e veículos de comunicação”). O DEM foi célere, com parlamentares exigindo a renúncia de Demóstenes para não ser expulso do partido, o que não se viu no caso do mensalão.

Mas a própria idéia de haver uma “operação abafa” soa estranha. Até a ombudman da Folha, que é paga para ser a leitora mais insuportável do jornal (algo como se nossos críticos na caixa de comentários recebessem de nós para serem ainda mais pentelhos… conosco), mandou com sangue nos olhos:
Não sei o que o presidente do PT anda lendo para achar que estão querendo colocar panos quentes no caso, já que os principais jornais e revistas do país não param de publicar grampos e denúncias.
Sobre os tais “vínculos obscuros”, o que veio a público, por enquanto, foi um diálogo entre Carlos Cachoeira e um de seus auxiliares, citando um jornalista da “Veja”. Na conversa, publicada pela própria revista, Cachoeira diz que os “grandes furos” dados pelo jornalista foram passados por ele, mas que não recebeu nenhum favor em troca.
A Folha enxergou na fala do PT a intenção de investir, uma vez mais, contra a mídia. E saiu em defesa da imprensa, ao afirmar que a “produção de reportagens investigativas naturalmente envolve contato de jornalistas com fontes de informação de vários matizes”.
Se já é estranho, reportagens que surgiram, que nasceram quase ao mesmo tempo tornam tudo ainda mais confuso.
O que há, na verdade, é igualmente uma verdadeira “operação abafa” para inocentar petistas e aliados ligados a Cachoeira citados na Operação Monte Carlo da Polícia Federal. No Estadão:
Ficariam fora do radar deputados flagrados em escutas com integrantes do esquema, os governadores petista Agnelo Queiroz (DF) e o tucano Marconi Perillo (GO), além do ex-ministro José Dirceu. A única exceção seria o senador Demóstenes Torres (sem partido-GO), que teve 298 conversas telefônicas com Cachoeira grampeadas pela PF nos últimos três anos.
O senador está sendo investigado também pelo Conselho de Ética e pelo Supremo Tribunal Federal (STF).
A “operação abafa” é resultado da pressão da presidente Dilma Rousseff para que setores do PT defensores da CPI do Cachoeira tenham calma e não usem a comissão como palco de vingança, o que poderia causar danos políticos ao governo. Dilma conversou com o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva sobre a CPI na sexta-feira, em São Paulo, conforme revelou o Estado.
A justificativa é clara como petróleo: há motivo para investigar todo mundo que é inimigo, nenhum para investigar os amigos:
Até a semana passada arauto de uma investigação que atingisse as entranhas da oposição, o líder do PT na Câmara, Jilmar Tatto (SP), adotou um discurso conciliador. “Acho um exagero chamar o Agnelo Queiroz (governador do Distrito Federal, do PT) e o Marconi Perillo (governador de Goiás, do PSDB)”, disse o líder, ao responder se os dois deveriam ser convocados pela CPI. Em seguida, porém, retomou a luta política: “O envolvimento do governador do PSDB com Cachoeira é muito maior. É mais razoável chamar o Marconi do que o Agnelo”.
Curiosamente, isso é dito como prova de diplomacia e de que vão investigar todos, como disse o presidente da Câmara, Marco Maia (PT-RS):
“Queremos é desmantelar esta rede de poder paralelo que foi constituída por esse cidadão chamado Cachoeira e que vai desde o Legislativo, passa pelo Executivo e pelo Judiciário, pelo setor privado e pela imprensa brasileira.”
“Todos serão investigados independente de onde estejam, de qual papel tenham cumprido”, afirmou Maia, a despeito da operação abafa em curso no Congresso. Ele negou que o PT queira barrar as investigações.
Ou seja: há uma rede que perpassa todo o poder. Vamos investigar tudo, pois não é uma luta entre governo e oposição. Mas vamos poupar o governo, embora o PT não queira barrar as investigações.
Entretanto, nem essa tática parece que irá livrar muito o governo da lambança:
O movimento em gestação no Congresso visa a salvar os políticos ao mesmo tempo em que tentará fazer com que a CPI concentre suas investigações no contraventor Carlinhos Cachoeira e nos empresários mais citados nos grampos da Polícia Federal, como Fernando Cavendish, dono da Delta Construções S.A. e Cláudio Abreu, representante da empresa no Centro-Oeste.
A Delta Construções é uma das principais empreiteiras do PAC. Novos grampos da polícia mostram como a empresa agia para fazer seus negócios (no Estadão):
O áudio de uma reunião do empresário Fernando Cavendish, presidente da Delta Construções, com sócios e executivos da empresa traz novos indícios de como a empresa agiria para obter obras públicas. ”Se eu botar 30 milhões na mão de políticos, sou convidado para coisa pra c…”.
Uma das sete maiores construtoras no ranking do País, a Delta faturou mais de R$ 860 milhões em 2011 em obras diversas que toca nos estados e no governo federal, inclusive no Plano de Aceleração do Crescimento (PAC), conforme levantamento dos órgãos de controle da União. (…)

Aparentando mostrar poder e prestígio político, o dono da Delta diz que “até por R$ 6 milhões” ele consegue se aproximar de um senador para inserir a empresa em grandes obras federais. “Ó! Nem precisa tanto dinheiro não… eu sou muito competente nisso… senador fulano de tal, se (me) convidar, eu boto o dinheiro na tua mão”, explicou.
Maior empreiteira do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), a Delta Construções S.A teria negociado facilidades em contratos diretamente com a cúpula do Governo do Distrito Federal (GDF), em troca de favores de campanha eleitoral, como indicam grampos da Polícia Federal

Em conversas gravadas na Operação Monte Carlo, aliados do contraventor Carlinhos Cachoeira – acusado de comandar uma rede de jogos ilegais no País – revelam que a diretoria da empresa no Rio ‘cobrava a fatura’ de doações eleitorais ao pressionar o Palácio do Buriti por nomeações e a liberação de verbas.

Em 2010, a Delta consta como doadora de R$ 2,3 milhões apenas a comitês partidários no País. Do total, R$ 1,1 milhão foi destinado ao Comitê Nacional do PT e o restante ao PMDB. Não consta na prestação de contas do governador do Distrito Federal eleito, Agnelo Queiroz (PT), ao Tribunal Superior Eleitoral (TSE) doação da construtora. Agnelo e a empresa negam a existência de qualquer doação e pressão da empreiteira.
Alguém pergunte para o Rui Falcão quem é que anda abafando investigações por aí…

21 de abril de 2012
Flavio Morgenstern é redator, tradutor e analista de mídia. Só aceita ser julgado por seus cupinchas.

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