"A verdade será sempre um escândalo". (In Adriano, M. Yourcenar)

"Quero imaginar sob que novos traços o despotismo poderia produzir-se no mundo... Depois de ter colhido em suas mãos poderosas cada indivíduo e de moldá-los a seu gosto, o soberno estende seus braços sobre toda a sociedade... Não quebra as vontades, mas as amolece, submete e dirige... Raramente força a agir, mas opõe-se sem cessar a que se aja; não destrói, impede que se nasça; não tiraniza, incomoda, oprime, extingue, abestalha e reduz enfim cada nação a não ser mais que um rebanho de animais tímidos, do qual o governo é o pastor. (...)
A imprensa é, por excelência, o instrumento democrático da liberdade."
Alexis de Tocqueville (1805-1859)



sábado, 21 de abril de 2012

VARGAS LLOSA E A OUTRA NUVEM


Cultura é palavra abrangente, de difícil definição. Em seu sentido mais lato, eu diria que cultura é tudo o que o homem faz. Assim, tanto um anzol como a bomba atômica, um ábaco ou um computador, uma ópera ou show de rock, um tacape ou a pedra de Rosetta constituem cultura. Já num sentido restrito, para efeitos pessoais delimito a cultura àquela área das grandes produções do espírito. Neste sentido, fazem parte da cultura tanto a lei da gravidade como a da termodinâmica, a Bíblia ou o Quixote, tanto Mozart como Shakespeare, Platão ou Dante, Schliemann ou Champollion. Mas jamais Rowling ou Paulo Coelho, Madonna ou Lady Gaga, Roberto Carlos ou Chico Buarque, Beatles ou U2.

Falava há pouco da nuvem de mediocridade que paira sobre as cidades contemporâneas. Este fenômeno foi produzido em boa parte pelos jornais, particularmente por seus ditos suplementos culturais. Sob a rubrica cultura, joga-se tanto um concerto como um show de rock, uma obra literária de peso como um best-seller. É nessas páginas que você vai encontrar todo o lixo cultural oferecido pelo mercado das futilidades, desde novelas televisivas a BBBs, desde entrevistas com “celebridades” a confissões de vedetinhas do cinema ou demais artes. É lá que você encontra solenes bobagens como Rambo ou predadores do futuro, filmes piegas como Titanic ou cretinos como Avatar, vampiras lésbicas ou zumbi canibais. Para os jornais, hoje, tudo isto constitui cultura.

Não espanta pois a existência da nuvem. Para um leitor novato, para quem toda palavra impressa goza de autoridade, o estrago está feito. Ainda mais quando são jornais de prestígio que vendem este embuste. Quem vai duvidar que rock é cultura, quando Estadão ou Folha de São Paulo dão páginas e páginas em seus suplementos culturais aos drogados ianques, britânicos e escandinavos que vêm “fazer o Brasil”? Como ousar pensar – já nem digo afirmar – que estádios repletos, filas quilométricas para ingressos, endeusamento na imprensa, nada têm a ver com cultura?

Como se não bastasse esta acepção de cultura, há três anos o funk – antes uma questão de polícia – tornou-se oficialmente cultura. O ritmo foi reconhecido, em setembro de 2009, como patrimônio cultural pela Assembléia Legislativa do Rio de Janeiro. No mesmo dia, a Alerj revogou uma lei que restringia a realização de bailes funk e raves do Estado.

E ai de quem disser que funk nada tem a ver com cultura. Será estigmatizado como racista. Segundo Marcelo Freixo (PSOL), um dos autores do requerimento, "não tem por que calar o funk porque é som de preto e favelado que quando toca ninguém fica parado". De notícia das páginas policiais a evento cultural. Só porque deputados à cata de votos assim o querem. Mais um pouco, e os bailes funks receberão – se é que já não recebem – subsídios da lei Rouanet.

- É possível que a cultura já não seja possível em nossa época – diz Mario Vargas Llosa, em entrevista para El Mundo -. E isso afeta também a educação, que se desnaturalizou. Queríamos acabar com a idéia de que a “cultura é das elites”, mas conseguimos uma vitória de Pirro, um remédio pior que a enfermidade: viver na confusão de um mundo que, paradoxalmente, ao democratizar a cultura propiciou seu empobrecimento.

Em seu último ensaio, La civilización del espetáculo, lançado recentemente pela Alfaguara, o autor peruano demonstra seu desalento com o que hoje se chama cultura. Em janeiro do ano passado, ao anunciar seu livro em entrevista para El País, dizia Llosa:

- Hoje, o que chamamos cultura é um mecanismo que permite ignorar os assuntos problemáticos, distrair-nos do que é sério, submergirnos em um momentâneo “paraíso artificial”, pouco menos que o sucedâneo de um baseado de maconha ou uma fileira de coca, isto é, umas pequenas férias da realidade.

- Todos estes são temas profundos e complexos que não cabem nas pretensões, muito mais limitadas, deste livro. Este só quer ser um testemunho pessoal, no qual aquelas questões se refletem na experiência de alguém que, desde que descobriu, através dos livros, a aventura espiritual, teve sempre por modelo aquelas pessoas cultas, que se moviam com desenvoltura no mundo das idéias e que tinham mais ou menos claros alguns valores estéticos que lhes permitiam opinar com segurança sobre o que era bom ou mau, original ou epígono, revolucionário ou rotineiro, na literatura, nas artes plásticas, na filosofia, na música.

- Muito consciente das deficiências de minha formação escolar e universitária, durante toda minha vida procurei suprir esses vazios, estudando, lendo, visitando museus e galerias, conferências e concertos. Não havia nisso sacrifício algum. Mas o imenso prazer de ir, pouco a pouco, descobrindo que se alargava meu horizonte intelectual, que entender Nietzsche ou Popper, ler Homero, decifrar o Ulisses, de Joyce, degustar a poesia de Góngora, de Baudelaire, de T. S. Elliot, explorar o universo de Goya, de Rembrandt, de Picasso, de Mozart, de Mahler, de Basrtók, de Tchekov, de O’Neil, de Ibsen, de Brecht, enriquecia extraordinariamente minha fantasia, meus apetites e minha sensibilidade.

- Até que, de repente, comecei a sentir que muitos artistas, pensadores e escritores contemporâneos estavam gozando com minha cara. E que não era um fato isolado, casual e transitivo, mas um verdadeiro processo do qual pareciam cúmplices, além de certos criadores, seus críticos, editores, galeristas, produtores, e um público de bobocas inconscientes manipulados a gosto por aqueles, fazendo-os comprar gato por lebre, por razões pecuniárias às vezes e às vezes por pura frivolidade.

Se na culta Europa – onde funk ainda não é cultura – Vargas Llosa se sente submergido pela nuvem de mediocridade que paira sobre o continente, certamente sufocaria se vivesse em Pindorama. O testemunho do prêmio Nobel podia muito bem servir como epitáfio ao último homem culto do século. Verdade que, cá e lá, encontramos quem resista heroicamente a este aviltamento da palavra cultura.

Mas somos cada vez mais raros. Apesar do ceticismo de Llosa, a cultura ainda é possível em nossa época. Enquanto não chega o dia em que ser culto será uma ofensa aos bons costumes, cultivemos o que resta de boa arte, boa música, boa literatura. Que ainda é muito, apesar dos avanços das hordas bárbaras.


21 de abril de 2012
janer cristaldo

Nenhum comentário:

Postar um comentário