"A verdade será sempre um escândalo". (In Adriano, M. Yourcenar)

"Quero imaginar sob que novos traços o despotismo poderia produzir-se no mundo... Depois de ter colhido em suas mãos poderosas cada indivíduo e de moldá-los a seu gosto, o soberno estende seus braços sobre toda a sociedade... Não quebra as vontades, mas as amolece, submete e dirige... Raramente força a agir, mas opõe-se sem cessar a que se aja; não destrói, impede que se nasça; não tiraniza, incomoda, oprime, extingue, abestalha e reduz enfim cada nação a não ser mais que um rebanho de animais tímidos, do qual o governo é o pastor. (...)
A imprensa é, por excelência, o instrumento democrático da liberdade."
Alexis de Tocqueville (1805-1859)



domingo, 17 de junho de 2012

A ARTE DA GUERRA, COM UMA TAÇA DE VINHO

PARIS – Lá estava ela, desocupada como que por passe de mágica, num canto discreto, jamais tocada pela onda magmática de turistas: minha mesinha favorita desde os anos 1980 no Café de Flore em St. Germain. Tomei posse, pedi um Welsh rarebit e uma taça de Chablis, e voltei ao batente, lendo e assistindo ao mundo que passa, pela primeira vez desde a queda do Rei Sarkô.

Primeira impressão: onde, diabos, meteu-se a minha livraria? A venerável La Hune, bem em frente de onde eu olhava, parecia atingida por um míssil Hellfire; graças a Zeus, mudou-se para outra loja, ali perto. Segunda e mais festiva impressão; o Flore está imunizado, à prova de BHL: o filósofo francês Bernard-Henri Levy, também conhecido como BHL, anda ocupado, longe, promovendo sua próxima guerra.

BHL não é mero filósofo/escritor/cineasta: é, sobretudo, presidente-executivo-em-chefe de uma gigantesca operação de Relações Públicas erguida para perene glorificação de BHL. O homem virtualmente comanda a arena cultural francesa, do jeito que Christopher Hitchens pensava que comandava nos EUA e Grã-Bretanha.

Que vivamos tempos mais sórdidos: se Sartre, pelo menos, estivesse vivo, para chutar BHL de volta ao seu quintalzinho intelectual. BHL chegou recentemente ao Festival de Cinema de Cannes, carregando como mascotes dois rebeldes falastrões da OTAN Líbia – companheiros de sua aventura de “libertação”: Mustapha El-Zagizli de Benghazi, orgulhosamente apresentado como “príncipe shabab [jovem guerreiro]”, e o general Ramadan Zarmouth de Misrata.

O coronel Gaddafi armava sua tenda em Roma e tinha a barra de suas lindas túnicas beijada pelos potentados ocidentais. Mas os rebeldes da OTAN líbios, eles, pareciam tontos e perdidos, na explosiva experiência sobre o tapete vermelho de Cannes.

Importantíssimo: além dos mascotes líbias e a ladainha sobre a “unidade da revolução”, BHL trouxe também – e o que poderia trazer? – mascotes sírias: dois curdos e dois personagens tenebrosos, de óculos escuros e a cabeça coberta com bandeiras sírias, descritos como “combatentes que deixaram clandestinamente a Síria fazia pouco tempo, “para o lançamento de Le Serment de Tobruk [O juramento de Tobruk]”.

Ali estavam, pois, BHL, sionista com certificado, e seus mascotes-troféus árabes, para assistir ao lançamento mundial do novo filme de BHL. Sim, a coisa toda tinha de ser parte de mais um exercício de glorificação/Relações Públicas de BHL. Depois de vencer (de fato, sozinho!) a guerra da Líbia – segundo sua própria autonarrativa – BHL repetia que “o que foi feito em Benghazi não foi mais fácil do que tem de ser feito em Homs”. Garçon, por favor, sirva-me um pouco de mudança de regime, com meu Chablis.

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A GUERRA C’EST MOI


Quanto ao filme, em cartaz na França e já comprado para o mercado norte-americano, pode concorrer na categoria “obra-prima surrealista” digna de Alfred Jarry. Mas, pavão hiperativo, BHL não tem qualquer traço de autodesqualificação, e o que sobra é BHL, diretor do filme, filmando-se, ele mesmo, como diretor da história ao calor da hora. Acabou nisso a secular tradição literária/filosófica francesa: O Intelectual como Inventador de Guerras.

A coisa-lá foi editada com – e o que poderia ser? – BHL em voz off que não cala nunca; um monólogo-catarata neoproustiano em flerte com Sun Tzu. BHL flana pelas ruas de Benghazi à caça de um herói rebelde pós-moderno; e o encontra personificado em Abdul OTAN Jalil.

O cenário está montado para BHL das Arábias representar o seu épico de libertação, perenemente metido num paletó negro, camisa Charvet branca meticulosamente aberta para exibir pele branca e telefone por satélite grudado numa orelha, dos desertos e montanhas para os salons do Palácio do Eliseu e – claro – o Café de Flore, que se revela para uma ofuscada delegação líbia.

Todos, do Rei Sarkô à Rainha Hilária (“viemos, vimos, ele morreu”) Clinton e David (das Arábias) Cameron, são manipulados como extras, na guerra de libertação delirada por BHL. Quem se interessa pelo que realmente aconteceu na Líbia, como o Asia Times Online noticiou durante meses?

BHL inevitavelmente encena o hoje infame telefonema que, dizem, converteu o Rei Sarkô à mudança de regime. O próprio Sarkô alimenta o mito, contando à televisão francesa, em março de 2011, como o tal telefonema o levou a unir-se aos rebeldes da OTAN e iniciar uma ofensiva franco-britânica. Lixo. A mudança de regime já estava decidida em Paris desde outubro de 2010, quando o chefe de protocolo de Gaddafi desertou e viajou para a França.

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“AMIGOS DA SÍRIA”

Agora, BHL anda ocupadíssimo lembrando ao novo presidente da França Francois Hollande que “a França fará por Houla e Homs o que fez por Benghazi e Misrata”. Pelo menos, a coalizão de vontades já está lá: França, Grã-Bretanha, EUA, Turquia e a Liga Árabe controlada pelo Conselho de Cooperação do Golfo. Autodenominam-se “Amigos da Síria” e, no início de julho, em Paris, decidirão seus próximos passos de mudança de regime.

BHL concede que “salvar o euro é dever imperioso”, mas o drama grego não deve impedir que Hollande dê um telefonema, como fizeram BHL e o antecessor de Hollande, o Rei Sarkô, e convença Rússia e China de que o estado terrorista sírio é águas passadas. BHL, claro, nunca reconhecerá o estado terrorista de Israel contra os palestinos, nem para escapar de ser esmagado por um tanque do exército de Israel. Se não funcionar com Hollande, o alvo seguinte de BHL é David das Arábias Cameron.

BHL insiste que filmou “O juramento de Tobruk” pela Síria. Na Líbia, diz ele, houve “uma real coalizão com países árabes reunidos em coalizão com forças dos Emirados e do Qatar.”
Deve soar com um toque de “the hills are alive with the sound of music” de noviça rebelde, aos ouvidos do Emir do Qatar.
Afinal, o Qatar já comprou metade da Place Vendôme, boa parte da avenida dos Champs-Elysees e praticamente tudo entre a Madeleine e a Opera.
Nada resta a BHL, além de dar um telefonema, ele mesmo, para o francófilo emir, e pedir que financie sua próxima guerra. Mas… Calma lá! O Qatar já está armando os rebeldes sírios. O que resta a BHL? O Irã.

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