"A verdade será sempre um escândalo". (In Adriano, M. Yourcenar)

"Quero imaginar sob que novos traços o despotismo poderia produzir-se no mundo... Depois de ter colhido em suas mãos poderosas cada indivíduo e de moldá-los a seu gosto, o soberno estende seus braços sobre toda a sociedade... Não quebra as vontades, mas as amolece, submete e dirige... Raramente força a agir, mas opõe-se sem cessar a que se aja; não destrói, impede que se nasça; não tiraniza, incomoda, oprime, extingue, abestalha e reduz enfim cada nação a não ser mais que um rebanho de animais tímidos, do qual o governo é o pastor. (...)
A imprensa é, por excelência, o instrumento democrático da liberdade."
Alexis de Tocqueville (1805-1859)



terça-feira, 19 de junho de 2012

O TESTAMENTO DE JEAN GENET


Jean Genet foi o autor maldito por excelência da primeira metade do século XX. Nascido de pai desconhecido, abandonado pela mãe aos sete meses, criado no orfanato, Genet, − homossexual declarado numa época em que opções sexuais eram ocultas, − fez todo tipo de biscates, passou pelo reformatório e acabou preso, já adulto, por vários pequenos roubos e crimes.

Com esse perfil, dificilmente teria chegado a qualquer destaque, não fosse seu fabuloso gênio literário, que cedo chamou a atenção de luminares como Jean Cocteau e muitos outros intelectuais franceses, que também manifestaram intensa admiração por sua poesia, suas peças de teatro e seus romances.

Jean-Paul Sartre − de tão impressionado com as circunstâncias e o talento avassalador de Genet, − chegou a escrever um ensaio de 500 páginas a seu respeito, intitulado “São Genet, ator e mártir”, publicado em 1952, quando Genet tinha 42 anos.

Genet vivia como nômade, e numa de suas muitas peregrinações pelo mundo, já famoso, esteve no Brasil nos anos 1970 para acompanhar a montagem de uma peça sua por Ruth Escobar. Esta chegou a revelar mais tarde, a um de seus biógrafos, que o escritor, hospedado em sua casa em São Paulo, pulava de manhã na cama apenas para bater papo, “com os pés cheirando a camembert”.

O documento reproduzido nesta página é o testamento manuscrito que Genet fez em agosto de 1964. Um documento sucinto e breve para alguém cujo único bem era sua obra e os direitos de autor:

“Este é meu testamento, que anula os testamentos anteriores:
Deixo a totalidade de meus direitos literários, cinematográficos, teatrais, enfim, todos os direitos relativos à minha obra ao senhor Ahmed Lahoussine.
Peço à senhora Monique Lange e ao senhor Juan Goytisolo de encarregarem-se da estrita observância do meu testamento.

Peço a senhora Rosika Colin e ao senhor Flechtman para passar todos os meus direitos ao senhor Ahmed Lahoussine”.


 Genet assinou e Monique Lange − com quem ficou este documento − serviu de testemunha.
Genet estava então encantado por um rapaz de origem norte-africana, Ahmed Lahoussine, e resolveu, como não tinha nenhum parente, deixar-lhe o que tinha de mais valioso.
Genet, que só viria a falecer 25 anos mais tarde, em 1989, mudou mais tarde seu testamento, que continuou a favorecer Ahmed, mas não mais exclusivamente.
Não se conhece o quanto Ahmed sabia das intenções de Genet, mas o fato é que após a morte do escritor, num modesto hotel parisiense, o amigo preparou o enterro de seu protetor num pequeno cemitério no Marrocos, e foi dos poucos presentes na breve cerimônia de seu sepultamento.

Monique Lange conservou o documento em seus arquivos até sua morte, no início deste século, quando seus papéis foram leiloados em Paris.


Pedro Corrêa do Lago
19 de junho de 2012

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